Lua Azul escrita por Mr Ferazza


Capítulo 13
XII. O DIÁRIO.


Notas iniciais do capítulo

Quis fazer, no começo e no final, uma "homenagem" ao dois primeiros livros da Saga Twilight. Reescrevi os trechos de trás dos livros em uma versão para Lua Azul.



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XII. O DIÁRIO.

Jane

De três coisas eu estava convicta:

Primeira, Alec era um idiota.

Segunda, Havia uma parte idiota nessa história idiota — e eu não tinha ideia de qual parte era — que estava muitíssimo mal contada. Parecia que faltava alguma parte nela.

Terceira, Eu estava incondicional e irrevogavelmente desacreditada dessa história toda.

Tudo bem. Talvez fosse um exagero, mas eu não conseguia ver sentido algum naquela história, mesmo ela tendo sido contada por um adulto.

Enquanto eu estava aqui, calada e sem acreditar em palavra alguma, Alec estava com os olhos pregados naquele livro idiota. Será que tinha muitas figuras? Desenhos de demônios ou algo do tipo? Era a única explicação; ele, assim como eu, não sabia ler. Sequer tínhamos alguma noção de alfabeto. Papai fora alfabetizado em francês, o que certamente não era o caso daquele diário.

O pequeno caderno parecia velho demais para que ainda estivesse inteiro ou para que não tivesse algumas páginas pendendo de lado, quase separadas do restante do objeto realmente velho. Na verdade, era uma surpresa que ele não tivesse virado pó, mesmo sob condições de conservação extremamente favoráveis.

Alec ainda fitava o diário de uma forma muito concentrada, o que sugeria que os desenhos eram realmente muito bonitos. O que será que havia ali? Certamente ele não poderia estar lendo. O que, naquelas páginas, poderia se aproveitar? Gente narrando suas paranoias e acreditando que tinham algum poder especial com certeza não prenderiam a atenção de Alec... A não ser, é claro, que ele próprio acreditasse nessas coisas idiotas. O que, certamente, era o caso. Mas aquilo não poderia ser; Alec não sabia ler.

Enquanto toda aquela história absurda assentava em minha mente, pensei sobre como aquilo era ridículo. Seres humanos simplesmente não poderiam de não deveriam ser daquele jeito; poderes especiais, mesmo os que atuam ou se manifestam pela força da mente, não existiam. E, mesmo que fosse possível, o que era toda aquela história de gerações, fenótipos e blá blá blá? Simplesmente fora de questão acreditar naquelas besteiras.

E o pior, o mais frustrante, o que eu já sabia e estava cansada de saber, era que Alec acreditava naquilo tanto como acreditava que dois mais dois eram quatro. O que, em nome de alguma entidade mentalmente sã, eu poderia fazer com aquilo? Como poderia ter alguma normalidade em minha vida? Minha vida louca, cercada de mitos e gente que acreditava neles, assim como era cheia de gente que, por acreditar nisso, pensava que eu era uma aberração.

Será que ninguém era lúcido o suficiente para entender que aquele tipo de coisa não podia existir? A história que papai contara a Alec e a mim — embora eu não tivesse escutado tudo —, ainda que, segundo ele, estivesse sendo sincero, não me parecia certa. Eu, obviamente, não gostava de especular tanto quanto Alec, mas tinha de admitir que nem tudo deveria ser só flores para alguém que possua esses tais poderes. Será que eles não se davam conta disso tudo? Não deveria existir alguém com esses talentos e que, mesmo assim, as pessoas tolerassem. Se havia uma coisa que eu tinha aprendido com toda essa confusão de supostos dons, era que as pessoas eram extremamente intolerantes com o que, eventualmente, pudesse ser diferente.

Em primeiro lugar: Por que alguém acreditaria nisso? Nada daquilo fazia sentido algum. Meu cérebro parecia estar sendo bombardeado com aquele monte de informação que não servia para nada. Absolutamente nada. A não ser, é claro, que eu considerasse o que papai me havia dito, como se eu, de fato, pudesse acreditar nele:

“...A vida de muitas pessoas, durante muitas gerações, foi tão difícil quanto a de vocês...”

Poderia até ser verdade, e eu sabia disso. Mas porque mais alguém acreditaria em tudo aquilo? Só se fossem masoquistas! Acreditar em algo tão idiota seria, no mínimo, o mesmo que procurar por encrenca.

Nosso pai dissera que todos os retardados... , digo, bruxos haviam registrado no diário todas as suas manifestações de demência... , digo, de poder. Mas porque ele nos dera um diário velho sendo que não sabíamos ler?

— O que está fazendo, Alec? — perguntei em um tom que mal deixava escapar meu real interesse por aquela situação ridícula; Alec fingindo que estava lendo um diário secreto de alguém que vivera há mais de sabe-se lá quantos séculos. E, o melhor de tudo, a novidade que teria me feito rir, se eu não estivesse tão brava com aquela história louca: Alec não sabia ler.

Ele ergueu os olhos do pequeno livro vagarosamente, como se estivesse muito concentrado em sua leitura e como se estivesse entendendo tudo o que estava escrito. Foi uma imagem incrivelmente cômica. Como ele podia fingir daquele jeito? Eu sabia que ele não sabia ler.

— Estou lendo, é claro. — disse ele, como se estivesse falando algo perfeitamente normal, do tipo: Estou com sede; vou pegar um pouco da água.

Eu ergui uma sobrancelha:

— Ah, tá certo. Essa é boa. Conte outra, Alec. Nós dois sabemos que você não sabe ler. — eu disse.

— Tem razão. Mas você não escutou o que papai nos disse?

— Não. O que foi que ele disse? — perguntei, o sarcasmo gotejando em meu tom de voz.

— Disse que não importa que não sejamos alfabetizados em inglês, que é nosso primeiro idioma... Simplesmente, por causa de nossos dons, podemos entender tudo o que estiver escrito em latim, que, segundo o que papai disse, é a língua da civilização em que esses dons surgiram em nossa família.

— E você, de repente, resolveu acreditar em nosso pai? — desdenhei.

— Bem... É claro que não. — ele me disse como se fosse óbvio o fato de ele não ter acreditado em alguma coisa só porque alguém disse. — Mas pude comprovar por mim mesmo, se é que posso chamar isso somente de uma “prova”.

— O que quer dizer? — perguntei.

— Olhe isso. — ele estendeu o diário aberto para mim. Parecia mesmo muito velho.

Eu hesitei. E se aquilo fosse só uma brincadeira idiota de um Alec que estava irritado por eu não estar, desde tempos imemoráveis, acreditando nele? E se ele, assim que eu pegasse o livro encarquilhado e cheio de manchas feias, começasse a rir da minha cara e me chamar de mentirosa? Se ele achasse que que meu gesto para provar que ele era maluco, por acreditar nessas besteiras, fosse, de algum modo, o início para a aceitação daquele fato ridiculamente idiota?

Ele estendeu mais o diário idiota para mim. Eu me afastei um pouco daquilo, com o receio de como se estivesse prestes a tirar as entranhas podres de um bicho que estava morto e cheirando mal há semanas na beira da estrada.

Finalmente peguei aquele negócio velho nas mãos. Não era uma sensação tão horrível e eu podia conviver com aquilo.

Dei uma olhada nas duas páginas amareladas que estavam de frente para mim. Não havia desenhos, como eu imaginara que teria. Só uns dois parágrafos em cada página, espremidos para caber na folha estreita. A letra, escrita de tinta preta, parecia muito fora de lugar... Deveria ser um pouco mais cheia, mas aparentemente havia mudada para caber nas pequenas páginas.

Quando me detive para tentar examinar o emaranhado indistinto que era tudo aquilo, descobri que, surpreendentemente, eu podia compreender o que estava ali. Pelo menos, eu compreendia as letras e consegui situá-las nas palavras que, até alguns segundos atrás, não fariam o mínimo sentido para mim. O nexo, eu não podia negar, estava ali, perdido e esperando nas páginas amareladas para ser lido, esperando para informar algo — ou contar alguma história — a alguém.

Depois de constatar que, de fato, eu conseguia encontrar sentido naquele amontoado indistinto de letras, não consegui pensar em muita coisa. A única coisa que me ocorria naquele momento, na verdade, era o mais natural que se podia fazer: Ler o que estava escrito.

Precisei baixar um pouco a cabeça para poder identificar algumas letras naquele emaranhado de letras pequenininhas; Não havia data, nome, local ou nada que identificasse a época em que aquilo fora escrito ou quem havia feito aqueles registros — parecia uma continuação. Alec deveria ter lido o começo.

Não me dei ao trabalho de virar voltar para poder entender o que havia escrito — mesmo nunca tendo lido nada, era de imaginar que um texto, assim como uma história contada, seguia uma lógica, uma ordem de acontecimentos.

Ali, no início da página amarelada, podia ser lido:

“... Não entendo os motivos que as pessoas têm, em nome dos deuses, para acreditar que isso é algo que eu provoco com minha mente — completamente ridículo. Há algum tempo, eu poderia jurar que tudo isso era fruto de algum tipo de dom, algum poder que, eventualmente, eu pudesse ter. Hoje consigo admitir que tudo não passava de coincidências idiotas. Como se alguém pudesse fazer algo dessa natureza.”

“As pessoas — vizinhos intrometidos, em sua maioria esmagadora —, no entanto, acreditam realmente que eu possa fazer algo de especial. Sei que tudo isso, como já havia citado, não passa de coincidências infelizes. Contudo, muitos parecem ter certa predisposição para acreditar em coisas que não existem. Como se eu realmente pudesse fazer as coisas acontecerem somente com o poder de minha vontade... Chego a acreditar que, felizmente, as pessoas, na verdade, não pensam realmente isso a meu respeito. E, se pensassem, seus instintos de sobrevivência não os deixariam verbalizar muita coisa disso. Afinal, se eu supostamente fosse alguma coisa, poderia fazer qualquer coisa com alguém que me estivesse importunando com esses comentários inconvenientes... Minha lógica pode até ser meio caótica, eu admito, mas é realmente o que eu penso de tudo isso.”

“Nada faz sentido.”

“Minha adorável e misteriosa mãe continua a me fitar — cada vez que falo sobre isso — como se eu tivesse enlouquecido e estivesse falando em um idioma completamente desconhecido. Admito que poderia ser só fingimento — como me pareceu na primeira vez em que mencionei meus pensamentos a ela —, mas não seria mais seguro, menos imprudente, que, se isso fosse verdade, ela me dissesse tudo o que sabe? Minhas teorias de que isso não passa de imaginação minha e desse povo desocupado estão, por assim dizer, se solidificando cada vez mais. Seria incrivelmente ilógico ficar sem saber de nada.

Após o ponto final, folheei a página para continuar lendo. Não havia nada. Algumas páginas amareladas estavam “em branco” — sem nada escrito — e, após algumas delas, voltei a encontrar alguma coisa escrita.

Com um sobressalto, percebi que acabara de ler um pequeno texto escrito à mão. E o mais impressionante era que todo aquele emaranhado indistinto de letras — pelo menos essa era a impressão que se tinha ao olhar a página em perspectiva, sem que estivesse tentando encontrar sentido nos, até então, “rabiscos”. — me era inteligível; eu podia me lembrar de tudo o que havia lido. Podia me lembrar da relutância com que o tal candidato a bruxo parecia lidar com o assunto.

E então, se eu mesma podia compreender o que estava escrito, poderia também, concluir que, obviamente, eu tinha dedução instintiva de certa língua — latim, nesse caso. O que meu pai me dissera — Ou dissera a Alec, pelo menos (naquele momento, ele pensava que eu não estivesse escutando) — era verdade. Eu podia compreender latim sem ser alfabetizada. No entanto, antes que eu pudesse ficar feliz por ele não estar mentindo para mim, percebi o que aquilo poderia significar.

As outras histórias também podiam ser reais. E aquilo, naquele momento, era o que eu mais temia. Por quê? Aquela era, basicamente, a única pergunta que estava em minha mente naquele momento.

Eu arfei quando me dei conta disso. Deixando a diário cair aberto no chão, levantei-me da cama — até aquele momento, eu não havia percebido que já estava sentada naquela cama quente por tempo demais — e cambaleei para o lado até sentar-me ao lado de Alec. Não propositalmente, é claro. Eu tinha perdido a sensibilidade das pernas e bateria com a cabeça no chão se não me sentasse ao seu lado.

Alec colocou a mão em meu ombro para me ajudar a ficar ereta com mais eficácia. Afastei-a e fiquei balançando as pernas para que o sangue voltasse a circular como deveria. Ah, era exatamente por isso que eu ridicularizava aquela situação. O exemplo das pernas insensíveis era ótimo para demonstrar como o povo dessa aldeia era idiota. Se eu não soubesse perfeitamente que a falta de irrigação sanguínea roubava a sensibilidade de minhas pernas, era muito provável que algum morador supersticioso desse o maravilhoso diagnóstico que um demônio teria tomado minhas pernas e as estivesse impedindo de se mexer momentaneamente.

— Você está bem? — perguntou ele.

— Sim... Não... Mais ou menos — eu não sabia o que dizer.

Digo... Fisicamente, tirando a dormência em minhas pernas, eu estava ótima. Com um pouco de fome, talvez, mas estava bem. Mental e emocionalmente, estava um lixo. O que era todo aquele relato? Que besteiras eram aquelas? Poderia parecer loucura, mas isso não era o que mais me incomodava. O que me deixava louca e com medo ao mesmo tempo, era saber que eu havia entendido o que estava escrito no diário velho. Como papai dissera, eu havia entendido cada vírgula.

Mas eu estava sendo repetitiva para mim mesma: É claro que eu já percebera que podia ler. E justamente isso fazia com que eu quisesse enterrar a cara na terra e nunca mais voltar à superfície.

— Você conseguiu ler o diário? — perguntou Alec. Que cara-de-pau. Mesmo sabendo que eu havia entendido absolutamente todas as palavras, ele ainda me perguntava aquilo? Eu tinha certeza de que ele entendera. Então ele devia ter a mesma certeza com relação a mim.

Eu revirei os olhos depois de suspirar pesadamente. O que ele queria que eu dissesse? Eu já estava com a autoestima lá embaixo somente por ter conseguido ler aquilo... Não era o suficiente para ele? Ou será que, para a sua felicidade e êxtase com aquela situação estarem completos, eu teria de assumir que, desde o começo, estive enganada? Aquilo era demais para minha cabeça. Eu não conseguia assumir, conscientemente, nem mesmo para mim que eu estivera errada... Que dirá para ele!

Eu sabia que, muito provavelmente, Alec começaria uma dancinha da vitória depois que ouvisse o que eu diria, mas, mesmo assim, disse:

— Consegui.

Sua reação não foi a que eu esperava. Era mais contida e menos animada do que até mesmo eu poderia imaginar. O que estava acontecendo com ele? Esse não era o sonho de sua vida? Conseguir escutar de minha própria boca que eu estava errada?

Eu realmente havia pensado que sua maior felicidade era que eu admitisse que éramos aberrações da natureza. Com um estalo, percebi algo que só agora me ocorria, que Alec, após ler todas aquelas anotações de Lael, percebera de imediato.

Se aquilo fosse verdade, então nós estaríamos em perigo.

Eu sabia que nós dois corríamos um risco mortal.

Ainda assim, naquele instante, eu não senti medo — talvez porque a gravidade do problema ainda não tivesse me tocado por inteiro. Pude sentir meu coração batendo em um ritmo normal em meu peito, o sangue pulsando, quente e rápido, como sempre havia pulsado em minhas veias. Minha respiração estava normal também; sabia que, quando o verdadeiro significado daquilo me tocasse, eu estaria ofegando... Mas não naquele momento. Agora era como se eu nunca tivesse duvidado daquilo.

Eu acreditava — não como se só agora soubesse da verdade, mas como se ela sempre houvesse estado ali, em minha frente, e eu recusando-me a vê-la.

Então agora, como se meus olhos estivessem fechados e eu obrigada a viver um pesadelo que não queria, eu tinha a consciência de que nada mais seria como antes.

A parte na história que não de encaixava era justamente a mais importante — não se encaixava porque era inexistente nas anotações de Lael. — A parte das consequências.


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