Jogos Vorazes - O Garoto Do Tridente escrita por Matheus Cruz


Capítulo 25
Meu Herói...




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A tristeza infla como um imenso balão em meu peito, comprimindo órgãos e arrancando os últimos resquícios de energia que ainda me restam. Abro a boca procurando por ar e pisco os olhos repetidamente, tentando entender o que acabei de presenciar. Com a garganta apertada e uma queimação pinicando o rosto, recuo, evitando encarar o sangue de Dakota na parede.

Nunca esquecerei o que aconteceu aqui. Como Dakota olhou no fundo dos meus olhos pedindo desesperadamente por ajuda, o sangue frio com o qual assisti sua morte e o ódio avassalador que ela me devolveu ao perceber que não moveria um músculo para ajudá-la.

Não tive culpa, as circunstâncias são essas, só um sobrevive, assim como ela quis evitar ter que me eliminar, eu deixei que os Idealizadores a matassem por mim.

Fecho os dedos com mais força em volta da barra fria e lisa do tridente, sinto a chuva aos poucos encharcar meu cabelo e lavar o imenso ferimento nas costas, formigando os músculos doloridos.

Respiro fundo e espio em volta.

O corredor está quieto e deserto, o medo da derrota e, conseqüentemente, da morte, nunca foram maiores. Estou perto da vitória, de voltar para a Annie, cumprir a promessa que fiz ao meu pai.

Fito o meu reflexo no vidro fosco, estou irreconhecível.

Nesse momento, a Arena escurece. Uma coluna de nuvens negras avançam sobre o céu repentinamente, mergulhando tudo na mais completa escuridão. Levantei o pescoço e um último filete de luz esverdeou meus olhos úmidos antes de se apagar, deixando tudo cinza e fantasmagórico.

A adrenalina aumenta, sei que o perigo se aproxima. Um raio irrompe logo acima como uma artéria faiscante, iluminando o corredor brevemente e retumbando em ensurdecedores ecos. No primeiro momento achei que não conseguiria mais sair dali, meus pés estavam pregados ao chão e quando, enfim, consegui destravar minhas articulações, me afastei dali o mais rápido que pude.

Preciso chegar a Cornucópia antes que os Idealizadores tentem dar uma ajudinha e acabem me matando, não tenho o direito de estragar tudo, sofri demais até aqui, não posso perder, não posso! Irei até as últimas conseqüências por essa vitória, a coroa da sexagésima quinta edição dos Jogos Vorazes me pertence!

A chuva aos poucos começa à encharcar a grama e, onde quer que eu pise, voa lama em todas as direções. O tridente escorrega e eu o seguro firmemente, deslizo na curva e volto à correr, está escuro, mas eu lembro perfeitamente que são três curvas. Esta é a última.

Dan e Zen estão em algum lugar próximo, nenhum dos dois morreram ainda, o canhão não estourou, ou deve ter estourado em meio aos raios barulhentos, já que também não escutei o de Dakota.

Me mantenho correndo, com os olhos bem abertos, mesmo não enxergando um palmo à minha frente e sendo massacrado interiormente pelo medo de colidir com alguma parede e ser devorado pelos galhos. Um passo na frente do outro e não sairei da reta... relembro enquanto corro.

Quando perdemos um dos sentidos, os demais se aguçam ao máximo para compensar a falta do outro. Sou capaz de ouvir um galho estalando à quilômetros de onde estou, se qualquer bestante ou tributo se aproximar de mim agora, acho que escutarei até os batimentos cardíacos.

Então a sensação de liberdade me perfura. Num passo eu sou uma pecinha no labirinto, no outro encontro uma vasta campina, uma rajada de vento me abraça, um raio estoura no céu e a chuva cessa imediatamente. Arfante, suspiro. Escuridão. Preparo o tridente. Luz. Olho para trás e vejo. Cornucópia. Zen e Daniel correndo. O fogo rompe a escuridão e sai costurando pela orla do labirinto, formando uma cerca de labaredas que nos impede de recuar e em seguida, como um imenso lustre de cristal se espatifando no chão, o labirinto se transforma em milhões de cacos reluzentes.

Semicerro os olhos diante da luz e a sensação de liberdade desaparece no mesmo instante. Com o tridente na horizontal, corro em direção às duas silhuetas que deslizam em direção ao chifre dourado. Vejo Zen escorregar para o interior do monumento e Dan seguir atrás dele, mas o garoto reaparece novamente, pelo mesmo arco e desce os degraus com as mãos sujas de sangue e Dan em seu encalço.

O brilho alaranjado do fogo é assustador, as chamas dançam loucamente, fazendo uma barreira poderosa, estalando enquanto queima. O calor dissipa o frio rapidamente, inspiro o ar morno, mas o oxigênio está reduzido, logo só haverá fumaça em volta. A Cornucópia parece inalcançável no meio da campina, linda e imponente, seu formato colossal parece desafiar os tributos, indestrutível e inabalável. O palco da minha vitória.

Panem, como em todos os anos, aguarda as surpresas dos últimos momentos dos Jogos, onde os tributos estão fracos e machucados e suas emoções entram em xeque-mate. A expectativa de um novo vitorioso, como ele liquidará seus adversários, qual distrito ele representa. Apostas à mil, mentores torcendo, pais e famílias rezando, chorando, sem despregar os olhos do televisor.

Mags, Annie, pai, mãe, nunca me canso de pensar em vocês. Minhas bússolas, os únicos motivos pelo qual ainda estou lutando, os únicos motivos pelo qual vale a pena ter esperança. Meu nome saiu na colheita, os abandonei, desfilei nu, conheci meu melhor amigo e a Mags, que também é muito importante para mim. Descobri que o amor pode ser fraqueza para uns (Dakota) e força para outros, como é para mim. No final das contas os Jogos Vorazes têm os seus bônus, e as lições que aprendi aqui me fizeram crescer, transformaram o jovem pescador em O Garoto do Tridente.

Respiro fundo e acelero a corrida atrás de Dan e Zen, que avançam em direção ao fogo. Dan freia o passo quando me vê e a cor do seu rosto desaparece, o terror e a palidez o deixa próximo à um cadáver. Um de seus olhos sangra, furado. Ele expira ódio e semicerra os punhos.

Primeiro pensei que ele iria lutar comigo, mesmo sem nenhuma arma em mãos. Olhei para Zen preocupado e o garoto me encarou, todo alegre por me ver novamente, mas também triste por saber que essa é a última vez.

Dan, aproveitando-se do breve instante, avança sobre Zen e o empurra na grama. O garoto cai, e rola antes que Dan esmague seu pescoço, ficando de pé e apontando a adaga para o peito do adversário. Daniel segura o punho de Zen, o olho furado sangrando, rangendo os dentes como uma besta-fera, desejando, acima de tudo, esmagar o pequeno inimigo.

Com uma guinada avassaladora Zen é arremessado na grama e seu corpo some por alguns instantes em meio à uma nuvem de fumaça. As chamas estalam ao redor, emanando um calor insuportável e o rosto suado de Dan reluz numa coloração alaranjada.

Com um golpe certeiro a adaga de Zen salta de suas mãos e some em meio aos filetes verdejantes da grama. O garoto estende a mão esquelética tentando alcançá-la, mas Dan o prende ao chão com os joelhos e o estrangula violentamente.

–- Você vai pagar garoto desgraçado! – Dan sussurrou macabramente – eu estou perdendo minha visão! - paralisado, não faço nada, salvá-lo seria uma atitude cruel para mim e para ele.

Os gritos de Zen são abafados quando o ar começa a ser impedido de chegar aos seus pulmões. O garoto se debate, mas não consegue se livrar daquelas mãos decididas e assassinas e dos joelhos que esmagam suas frágeis costelas.

Uma coluna de fumaça interrompe meu contato visual e por alguns instantes tudo mergulha no mais cinza breu, impregnado de um aroma quente e irritante que fumega as narinas e lacrimeja nos meus olhos semicerrados. Ergo a cabeça e miro o céu escuro em busca de ar puro, mantenho o tridente firme em punho e com a mão livre tento me desvencilhar das nuvens opacas que me cercam num abraço sufocante.

–- Finnick! Socorro! – ouço as súplicas sofridas perfurarem o estalar do mato queimando em volta. É a voz de Zen, fraca, sem ar, mas livre. Ele conseguiu, de alguma maneira, se soltar de Dan. A corrida vem de todas as direções, minha audição falha ecoa num burburinho estonteante, e sem rumo, giro em torno de mim mesmo, pronto para decepar a cabeça de quem ousar me atacar.

Começo a correr.

–- Finnick... Finn... – os chamados vêm interrompidos por tosses secas e intensas, o odor da fumaça está espremendo meus pulmões. Com a mão livre, mascarando as narinas e a boca, avanço na corrida, extraindo o máximo de energia do meu corpo em cacos.

Tento pensar no mar, na atmosfera límpida e salgada da praia e nas ondas refrescantes quebrando no rochedo. Algumas colunas negras se abrem no caminho, como cortinas, salto por elas e em breves momentos consigo entreabrir os olhos e visualizar a Cornucópia brilhando.

Duas sombras passam em flashes atrás de mim, sinto a presença delas avançar como um rolo compressor em minha direção e os suspiros sufocados de Zen denunciam sua proximidade, mas Dan parece um fantasma. Eu sei que que ele está aqui, mas não consigo vê-lo.

Meu maxilar é esmagado repentinamente quando uma mão ensanguentada surge das sombras vindo em minha direção. Os nós dos dedos são tão duros que parecem estar petrificados. Ágio e violenta, a mão explode num soco certeiro em meu rosto. A dor lacerante me atinge, cambaleio para trás e tento assimilar o borrão no qual se transformou meu campo de visão.

Dan desaparece novamente. A escuridão volta, a dor continua à latejar. Golpeio o ar, atônito, assustado e cego.

Corro desnorteado, em busca da Cornucópia.

Posso subir até lá, onde ficarei mais seguro e iluminado, a fumaça vai me matar se não sair daqui agora.

Á medida que avanço para o centro da campina, as nuvens vão se dissipando e o ar aos poucos volta a circular dentro de mim. Piscando as pálpebras molhadas, tiro a palma da mão do nariz e inspiro o ar cálido.

Avisto os dois antes de alcançar os primeiros degraus da Cornucópia.

A perseguição termina aos pés do monumento. Zen reaparece numa sombra magricela e esguia, tropeça e é alcançado por Dan.

O grito do garoto é agonizante e rói minha espinha num gélido arrepio de tirar o fôlego. Sinto o sangue correr mais rápido nas veias e o coração saltar ao ver a cena. Um impulso heroico me atinge e, numa atitude estúpida, avanço para salvar meu melhor amigo, mesmo que isso não evite sua morte certa.

No instante seguinte, algo inimaginável acontece.

Dan quase quebra os ossos de Zen num violento abraço. Fecha os dedos sujos, em garra, na base do queixo da presa e, quando não havia mais esperanças e ele estava prestes à quebrar o pescoço de Zen, uma palidez repentina atravessa sua face e suas mãos amolecem.

Daniel cai com um baque surdo no chão gramado. Boquiaberto, o assisto se debater inconscientemente, como se estivesse dominado por uma corrente elétrica de alta voltagem, revirando o olho são e babando. Assustado, Zen o observa sem entender nada, horrorizado, olhando em volta para ver quem fez aquilo com ele.

Vou ao seu encontro.

Zen tapa a boca e começa à chorar. A baba gosmenta na boca de Dan parece espuma, avermelhada pelo sangue que escorre da órbita escura e furada do garoto. Ataque epilético... a medida que me aproximo noto seus dentes amarelados travando, o suor brotando na testa suja de terra.

Pálido, Zen vê o brilho prateado do objeto que deixou cair, minutos antes, durante a fuga. Ajoelha-se diante do pontinho luminoso e o agarra pelo cabo com cuidado. Me esforço para acelerar e alcançá-lo antes que ele tome qualquer atitude. Melancólico, o garoto fica de pé, uma lufada de vento joga seu cabelo cinzento para trás, a dificuldade e hesitação com que se aproxima do corpo doente deixa claro que está inseguro e cansado, no entanto ele parece ter consciência do que deve fazer.

Misericordioso, tocou os dedos esqueléticos na face umedecida do adversário, suspirou, fechou os olhos e empunhou a adaga com determinação, segurando-a virada para baixo, com as duas mãos, apontada para o peito de Dan. Consigo alcançá-lo, mas nada faço, me sinto intimidado pela nobreza do meu amigo, é preciso ser um grande homem para perdoar quem lhe fez mal tantas vezes.

Zen é um grande homem, eu sou apenas um bestante manipulado pela Capital.

–- No final o gnomo vence o dragão.

Sussurra, antes de enfiar a lâmina no coração do inimigo e cessar a turbulência que sacudia seu corpo.

–- Não... – lamento.

O canhão estoura, as chamas se apagam, o calor se dissipa. Somos só nós dois nos Jogos Vorazes agora. Sozinhos, na Arena escura, Zen tira a adaga do peito de Dan e limpa o sangue na calça suja. Um formigamento me espeta dos pés a cabeça, estou ardendo, estou chorando. Largo o tridente.

Zen se levanta, e por um breve instante, permanece paralisado, de costas para mim, fitando o chifre dourado à frente. Observo sua nuca avermelhada, o cabelo crescido e desalinhado roçando nos ombros, as costas arqueadas de fadiga.

–- Não... Zen você não poderia ter feito isso... – choramingo como um bebê. Eu tenho um tridente, ele uma adaga, somos só nós dois, eu treinei a vida toda para os Jogos, ele não. Eu sou forte, alto e musculoso, ele é fraco e magricela. Somos melhores amigos e precisamos acabar um com o outro.

–- Zen, você é o meu melhor amigo, a pessoa mais sincera e fraterna que já conheci. Nunca pensei que alguém tão bom pudesse existir nesse universo hostil e violento no qual nascemos e crescemos... Lá fora, nos assistindo e se deliciando com essa situação deplorável e dolorosa, há milhões de homens poderosos cheios de ambição, a representação mais baixa ignorante que os seres humanos podem ter. Mas você não. Eu tenho orgulho de ter você como exemplo, como amigo... Ninguém pode me obrigar à te matar – chuto o tridente – Ninguém.

Zen escutou tudo de costas, em silêncio.

–- Meu irmão... – as duas palavras saem trêmulas e embargadas.

Ele se vira e nossos olhares se encontram com fervor.

–- Meu herói... – diz, fazendo surgir um sorriso na face chorosa. Lhe retribuo o sorriso.

Meu sorriso desaparece quando fica clara a intenção dele.

–- Adeus, Finn – diz, ainda sorrindo.

Sem hesitar, finca a adaga no próprio peito, mergulhando nos mistérios da morte.


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