Jogos Vorazes - O Garoto Do Tridente escrita por Matheus Cruz


Capítulo 21
O tic-tic da morte


Notas iniciais do capítulo

Um Abraço em cada um dos meus leitores.



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Um último gole na garrafa e estamos cercados pelas paredes de vidro que outrora deixamos para trás em busca da sobrevivência. O caminho foi mais preciso e menos cansativo do que quando eu, Dakota e os Carreiristas fomos atrás de água nos oásis. A Arena diminuiu de tamanho, e isso está acontecendo cada vez mais rápido. Tributos próximos, mais mortes, mais diversão para a Capital.

Um cheiro de carniça vaga no labirinto, tapo o nariz e a boca com a blusa, Dakota e Zen fazem o mesmo, e sinto um ardor nojento nos olhos que logo lacrimejam. Não entendo de onde pode estar vindo esse odor, os corpos sempre são recolhidos da arena pelos aerodeslizadores antes que apodreçam, ou seria insuportável ficar preso aqui.

Aos poucos o solo inconstante de areia é substituído pela grama, que no início é um pontilhado verde e depois ganha cor e quantidade. Os galhos que se enroscam nas paredes transparentes e espelhadas dão o ar da graça, roçando na superfície dura e lisa e produzindo um rangido irritante, que penetra a alma com sua crueldade.

O céu azul brilha nas paredes e deixam os vidros com um tom amigável azul claro, e a luz do sol faz do local uma grande jóia de golpes luminosos. A tempestade ainda destrói às nossas costas, ainda ouvimos os assobios dos redemoinhos, jogando o que resta de tributos para a cadeia de paredes brilhantes. Dez. Sete adversários. Quatro desconhecidos. Dois nos procurando, atrás de uma vingança fria e torturante. Entre eles, Henry, que desapareceu desde o dia em que perdeu sua flauta.

Os Jogos podem terminar amanhã, ou hoje, ou daqui à três dias, depende da crueldade dos Idealizadores, do desenrolar dos fatos, mas creio que os mandachuvas não querem que o show termine assim tão rápido. Há cartas na manga, eu sinto isso.

Caminhamos por um longo tempo, e o fedor só aumenta de intensidade, viramos numa curva em noventa graus e nos deparamos com um corredor largo e extenso. O caminho corta várias passagens e brilha, chamativo, a grama parece mais bem aparada e verdejante aqui, os galhos espinhosos estão floridos com pétalas rosadas e folhas laranjas brilhosas. Mas, mesclado ao belo, vemos uma cena horripilante.

O grito corta o ar com um agudo e quebra a tensão como pedra e vidraça. O corpo coberto de sangue agoniza na grama reluzente, distante, não consigo nem distinguir se é homem ou mulher, os dedos magros como garras arrancam tufos de verde, tentando se arrastar até nós.

–- Ah meu Deus! – exclamo enojado, aterrorizado, o ardor do vômito voltando por meu esôfago.

–- Ahhhhhhhh! Ahhhhhh! – um rastro de sangue é deixado para trás, essa pessoa foi violentamente ferida por algo, algo ruim e bem próximo. – AHHHH!

–- Precisamos sair daqui! – Dakota freia o passo, amedrontada com a cena, mas tentando manter uma máscara pacífica e calculista. – Tem algo se aproximando, eu conheço esse cheiro.

E logo percebo que eu também conheço.

Lembro da cena. Opala sendo devorada viva. Os bichinhos negros e suas caldas de pinças afiadas, os ferrões determinados à matar. Os escorpiões. Teleguiados.

–- Eu vou vomitar... – Zen acrescenta, verde, com a blusa cobrindo o nariz.

No terreno levemente inclinado, correr para um lugar seguro, nesse exato momento, é correr contra a correnteza, subir a montanha. Mais esforço, menos chance de sobreviver.

Ouço o primeiro tic-tic.

E logo acontece algo inimaginável, com certeza o mais aterrorizante episódio da minha vida, algo que me desequilibrou, que fez meu coração deslizar para a língua, quente, batendo violentamente.

Acontece assim.

O tic-tic vem.

Trocamos olhares e nos preparamos para correr pra longe. Mas o grito seguinte do tributo ensangüentado nos paralisa, toca gélido o coração de cada um e faz um choque percorrer por todas as veias do meu corpo, paralisando minhas pernas.

Eu reconheço o grito, tem um tom familiar, familiar!!!!!!!! Porra! Não, tudo menos isso. Num instante a paisagem colorida e chamativa, torna-se o cenário mais macabro que visitei desde que os jogos começaram.

É inevitável.

Os três, nós três reconhecemos e levantamos a cabeça ao mesmo tempo. O corpo que rasteja, com as pernas esmagadas, é nele que pousamos o nosso olhar devastado. Tento negar, mas meus olhos procuram assim mesmo, e o pior, encontro. As tranças desgrenhadas, o tom de pele moreno, os traços que alguns dias atrás sorrio para mim.

O tic-tic se aproxima com tanta violência que os ruídos ameaçam romper meus tímpanos, rachar as paredes de cristal.

O oásis, o treinamento, as serpentes, o som da flauta, a voz amigável. A voz... É ele, é ele. Zen e Dakota também lembram, as lágrimas também vêm à eles. O corpo se arrasta, desequilibra e rola pelo terreno inclinado, em direção aos nossos pés, e o canhão estoura. O cadáver encontra nossos pés, e o rosto sem expressão deita no bico das minhas botas. As trançinhas são serpentes castanhas na grama.

“A música é o tipo de arte mais perfeita: nunca revela seu último segredo.”

Henry. A última melodia que ouviu em vida foi o tic-tic dos escorpiões, e o som de um canhão. Metade do corpo devorado, quase ossos. Ninguém merece morrer assim. Alguém assim tão bom, tão generoso, ele me ajudou, eu lembro, nunca me esquecerei.

Precisamos correr e o corpo ficará para os bichos nojentos que estão vindo. Isso não pode acontecer.

–- Não!!! – Zen grita e começa à chorar, horrorizado.

–- Henry! Não... – eu me ajoelho, desolado.

–- Precisamos ir embora, ou vamos acabar como ele! – Dakota grita, nervosa.

–- Seus desgraçados! – levanto na erupção repentina do ódio – Filhos da puta! – começo a olhar em volta, e meus companheiros me observam preocupados. – Vamos seus carniceiros! O mínimo que podem fazer é levá-lo embora daqui!!! EMBORA!!! Não podem deixá-lo como um simples pedaço de carne!!! Eu odeio vocês seus vagabundos beberrões!!! Levem o corpo dele!!! AGORA!!! Olha o que fizeram seus...

–- Finn, pare com isso! – Dakota agarra meus ombros e me sacode. – Ele já morreu, não pode sentir mais nada, a alma dele já foi para o lugar melhor, é com nós, que estamos vivos, que devemos nos preocupar. Agora vamos!

–- Dakota, não! Por favor! O Henry morreu! Olha só pra ele! – grito apontando para o corpo, ouvindo Zen soluçar, sentindo o cheiro de podridão.

–- Força! Se quiser se vingar de alguém, que seja vencendo essa merda e voltando pra meter bala na testa lisa de cada um daqueles pançudos maconheiros. – as palavras da garota me deixam pasmo, ela tem razão, por isso concordo com ela e enxugo minhas lágrimas. – É hora de ir.

–- Vamos. – respondo.

Dakota me puxa, Zen nos segue, saltamos por cima do corpo para a trilha marcada pelo sangue, para longe da última melodia que Henry escutou, subindo o terreno, me faltando pulmões, deixando os borrões cor de rosa das flores para trás.

“Meu avô me ensinou à tocá-la. Sempre carrego essa flauta comigo.”

“Uma flauta?”

Tento imaginar Henry e seu avô num local de paz, entoando a mais linda melodia do mundo, algo realmente bonito e poderoso, tão sincero e generoso que seria incompreensível aos ouvidos dos comandantes dessa carnificina. Em meio à uma multidão alegre, tocando suas flautas enquanto mulheres esmagam uvas em imensas bacias de madeira, ao crepúsculo alaranjado do verão.

Fim de uma vida.

Enquanto corro, reflito. Pensando que Henry talvez ainda estivesse conosco se Dan não tivesse quebrado sua flauta. Mas logo me ocorre que isso só prorrogaria a estadia dele na Arena. A morte é inevitável aqui.

Meus pensamentos são dispersados quando uma onda negra de escorpiões surge à nossa frente repentinamente.

Zen abafa um grito. Um arrepio repugnante me invade. Dakota engole em seco.

Tic-tic, tic-tic...

Inferno...

Tic-tic...

Sangue...

Morte.

Adrenalina.

Num ato cego, nós três corremos em diferentes direções. Salve-se quem puder. Evitando pensar nas conseqüências.

Deslizo numa curva, e outra, em passos frenéticos, sentindo um vento morno jogar meu cabelo para trás, ardores pinicando meus ferimentos, as paredes, os reflexos, a luz solar brilhando nas superfícies reluzentes dos vidros atingindo meus olhos quentes, o cheiro de miséria se dissipando para trás, o som agourento abandonando aos poucos minha audição gasta.

E, ao me esbarrar com uma garota, sou brutalmente atirado de cara na grama. Cegamente, me levanto, e friso a atenção no reflexo azul opaco no vidro entre os espinhos e as flores dos galhos.

A garota esquelética avança decidida à furar minha nuca com um prego, mas antes que eu me vire para impedi-la, Zen surge e a acerta com uma pedrada no rosto. Me viro, quase sem fôlego e vejo o sangue grosso escorrer pela lateral da face pálida e inerte. O canhão ecoa, me volto para Zen, de quem esperava uma expressão de alívio e me deparo com olhos arregalados de arrependimento.

–- Não pode ser... Rachell... é a Rachell!! – Zen aponta o dedo fino para a garota morta.

O fito assustado, tentando assimilar os fatos na velocidade com que se desenrolaram, e boquiaberto por perceber que Zen conhece sua vítima, que ele me encontrou.

–- Ahhhhhh! – diz perdendo o tom na voz até reduzi-la à um chiado rouco, se aproximando do corpo, puxando a barra do uniforme da garota e mostrando o número 12 reluzindo no tecido azul. – Eu matei minha parceira de distrito! – explica em palavras embargadas – a Rachell...

Ele é interrompido por um chamado próximo.

–- Socorro! – ouvimos mais uma vez antes dos ruídos de um aerodeslizador próximo invadir a Arena, a ventania joga as mechas cinzentas de Zen para trás.

–- Zen precisamos sair daqui... – digo e puxo o garoto pelo braço. A garra de metal ergue mais um cadáver, o segundo hoje.

–- SOCORRO! – conseguimos distinguir mais uma vez o chamado, e reconheço o tom arrogante de Dakota.

–- É a Dakota, ela está precisando da gente. – Zen balança meu ombro.

–- Não, não é ela. Dakota nunca pediria ajuda à ninguém, ela é orgulhosa demais para tanto.

–- Finnick, é ela, eu sei disso!

–- Zen, isso não está me cheirando bem...

Adiantamos o passo, e depois estamos à beira do desespero, porque pode ser tarde demais. Os pedidos ficam mais altos e irritados á medida que deslizamos por mais corredores, à procura de Dakota, que parece estar numa enrascada tenebrosa à ponto de fazê-la se tornar a donzela em perigo da história.

Freamos o passo repentinamente, ao ver Dakota presa numa rede, estirada no chão, tentando se desenrolar das cordas que mais parecem um visgo transparente, em meio a gritos e ataques histéricos.

–- Dakota, você está bem? – Zen se apressa ajoelhando-se ao lado da rede.

–- Ah, vocês! – os olhos da garota brilham de alívio. – Andem, me tirem daqui, antes que o dono dessa rede apareça.

–- Precisamos cortar os fios – digo, vasculhando em volta à procura de uma pedra afiada.

–- Eu tenho um prego. – Zen me oferece o objeto pontudo e prateado.

–- Ótimo – aceito e corto fios suficientes para Dakota se libertar.

–- Ufa! – diz a garota. – eu nem precisaria de vocês se ao menos conseguisse abrir minha mochila. O que você está fazendo Finnick? – pergunta ao me vez usar o prego para costurar a rede novamente, com minha antiga habilidade de pescador.

–- Vamos pescar alguns Carreiristas, baby... – explico, numa maliciosa troca de sorrisos.


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