Jogos Vorazes - O Garoto Do Tridente escrita por Matheus Cruz


Capítulo 20
Surpreendidos por giros de botões




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Foi tudo muito rápido. A noite passou num piscar de olhos. Espiei as estrelas atrás das tamareiras até o céu azul celeste ganhar uma coloração alaranjada e a luz prateada da lua ser substituída por intensos raios de sol. A brisa morna veio como um aviso do que poderia vir acontecer em seguida, trazendo grãos de areia que surraram meu rosto e um calor que feriu minha garganta. Demorei para perceber que a temperatura está subindo rapidamente e de ouvir os assobios e chiados vindo das dunas do deserto.

Os Idealizadores devem estar trocando sorrisos satisfeitos em suas cabines de manipulação, girando botões e aguardando os estragos. Só consigo imaginá-los bebericando uma taça rasa de gim e Patrocinadores atirando bolos de dinheiro nas mesas de aposta.

–- Essa não...

A tempestade é devastadora, Zen e Dakota despertam com os estrondos dos raios que atravessam os redemoinhos. No primeiro momento olham em volta desnorteados, grito qualquer coisa para eles e Dakota capta a mensagem: Fugir, não importa o motivo.

As tamareiras parecem chicotes vivos, surrando a rocha com violência. Agacho quando um galho tenta me decapitar, e sinto a força cortar o ar logo acima.

A areia avança em ondas amarelas, corro atrás de Dakota e Zen até a pilha de suprimentos e agarro o possível, enfiando tudo numa mochila nova. Os dois fazem o mesmo, assustados, tentando salvar o máximo que podem carregar.

A rajada seguinte é avassaladora e me desequilibra.

–- Zen! – grito, desesperado, vendo-o escorregar à beira da rocha. O vento sopra à quilômetros por hora e está nos empurrando, como grandes mãos gigantes e invisíveis de cima da rocha. Sinto um frescor nos ferimentos e a terra entrar aos quilos nos meus olhos e boca.

–- Finnick, por aqui! – Dakota me puxa pelo colarinho e saltamos um galho que deslizou pela superfície lisa da rocha em nossa direção, tentando uma rasteira, dando a breve impressão de que sairá faíscas no violento contato.

Corremos ao encontro de Zen, quase que pressionados pela força do vento, as nuvens de areia impedindo a visão do que encontraremos nos próximos passos. Segundos depois não há mais nada abaixo dos meus pés. Estou caindo.

Mil pensamentos correm por minha mente nessa fração de segundo. Meus pais, o mar, os Distrito 4, cheiro de tomate e manjericão aos domingos de manhã, Annie. Colheita, Jogos Vorazes, Arena. Labirinto, escorpiões, cheiro de sangue, cadáver podre, deserto, areia, tempestade. Tempestade de Areia.

Água.

É isso que me envolve. Fria, densa, silenciosa. Abro os olhos sem medo, e sinto o frescos invadir o interior de minhas pálpebras. Estou em casa. O peixinho. Num breve segundo de prazer, longe das turbulências da superfície. Em seguida mais dois mergulham de ambos os lados, como meteoros.

A paz é breve.

Vejo os cachos loiros de Dakota flutuarem ao redor de sua cabeça oval como uma coroa. Nossos olhares se encontram. Compartilhamos o alívio da queda, mergulhamos onde qualquer habitante do Distrito quatro está em vantagem. Mas o terror nos alcança, perverso, num abraço cruel, capaz de salvar vidas.

Salvar vidas...

Zen.

Atrás de mim.

Dakota aponta.

Seus olhos me fitam com horror, paralisados, o corpo se debatendo como um peixe fora d’água. A boca aberta, querendo dizer “socorro”, sufocado pelas bolhas. Esqueci completamente... Esse paraíso é inferno pra quem não sabe nadar. Ele bate os braços, como uma ave, aperta os olhos, afunda, como uma pedrinha.

Socorro...

Dou um impulso violento para frente, batendo os pés e braços, soprando os últimos resquícios de ar pelas narinas.

Dakota me segue.

A adrenalina me invade, e meu coração acelera, mesmo devendo acontecer o contrário. Uma veia dilata na minha testa e lateja dolorosamente. É muita coisa para assimilar em segundos... Mãos juntas, joga o corpo, mãos separadas, braços colados ao corpo, batendo os pés, narinas soprando... Mãos juntas novamente, corpo, braços, pés, narinas continuam à soprar.

Os raios de sol dão uma coloração esverdeada à água, em diversos tons, iluminando a passagem, fazendo uma áurea brilhar em volta de Zen, que aos poucos perde as forças e afunda.

Só mais um pouco, agora nado para baixo, o buraco que abri com aquela dinamite foi fundo, mas dá para enxergar com clareza a areia lá embaixo. O corpo de Zen deita, quase sem vida, mas dá tempo abraçá-lo, pisar no solo amolecido e voltar num impulso para frente.

Dakota me ajuda e voltamos aos poucos para a superfície. Um processo muito mais rápido, apesar do peso nos ombros e a falta de oxigênio nos pulmões.

Saímos do silêncio e calmaria infernal do lago para a superfície, no novo misto de alívio e terror, nem um pouco surpreendidos pelos assobios ensurdecedores, redemoinhos e ondas de areia. Sob o céu azul e o sol escaldante, que evapora toda a água do meu corpo em segundos.

Jogo o corpo de Zen na areia e o garoto reage com uma crise de tosse, contidas por um engasgo preocupante.

–- Zen, fale comigo... – digo pressionando as mãos nas costelas do garoto – Zen... – pressiono, mas parece não funcionar. – oh meu Deus, me ajude...

Zen continua inerte, aos engasgos surdos, parecendo estar à beira de uma convulsão.

–- Vamos garoto, reage. – Dakota observa tudo ao meu lado, ajoelhada, com o cabelo loiro cacheado fazendo uma cortina nas laterais de seu rosto. Olho para ela, sem esperanças, mas recebo de volta um ar de heroína.

–- Sai pra lá, como você quer que o garoto fale alguma coisa com metade da água do lago dentro dele? – pergunta irritada, com a bochecha direita arranhada, o vento veloz e a poeira jogam os cachos dela contra o seu próprio rosto. Ela prende as mechas atrás da orelha e se adianta. Afasto-me, deixando ela sentar ao lado do corpo de Zen e pôr as mãos no peito do garoto.

Observo ela aproximar seu rosto do de Zen, abrir a boca do garoto com os dedos e beijá-lo. O toque dos lábios é demorado. Quando Dakota se afasta, Zen desperta, abre a boca e tosse toda a água que o sufocava para fora.

–- Ai... – geme e pisca os olhos desnorteado.

–- Ufa! – Dakota o ajuda à levantar. – você quase morreu, de novo – explica a garota, arfante.

–- Você conseguiu! – digo contente e pouso a mão no ombro de Dakota, orgulhoso.

–- Você me beijou... – Zen deixa escapar num êxtase de encanto.

–- Eu fiz respiração boca a boca, é diferente.

A ventania é constante, estamos coberto por uma camada espessa de areia, e seremos enterrados vivos se não sairmos logo do oásis, que já está desaparecendo, engolido pelo deserto. Dakota abre a mochila rapidamente, algumas garrafas e corre para o lago, que, logo percebo, está secando.

–- Zen, calma, eu te ajudo... – ofereço meu ombro para o garoto se apoiar, ainda desequilibrado pelo susto.

–- Eu estou bem... – sussurra, tentando proteger os olhos dos grãos de areia.

–- Vamos embora daqui, para o labirinto. – Dakota diz, entregando algumas garrafas para mim e Zen e correndo em direção às paredes de vidro que reluzem ao longe.

É isso que os Idealizadores querem, com certeza há mais surpresas lá para nós, um novo massacre. Minha espada ficou para trás, nem ao menos lembro qual foi a última vez que a vi, mas creio conseguir me defender sem ela. O labirinto nos espera, com Carreiristas babando por vingança e coelhos que saíram da cartola impiedosa da Capital.


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