Jogos Vorazes - O Garoto Do Tridente escrita por Matheus Cruz


Capítulo 12
Desfazendo laços




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Deslizo as botas pelo cascalho enquanto faço a volta em direção ao terreno íngreme, que desce em direção ao meu destino.

O capim verdejante deita com a ventania que destrói o Distrito 4, raios irrompem no céu escuro de nuvens negras carregadas. O mar, à poucos metros de onde estou, avança para a praia numa violência descomunal e atinge o imenso rochedo onde costumava me sentar para refletir quando estava triste.

A chuva torrencial se precipita fortemente, ensopando o solo escorregadio. Me seguro em algumas pedras enquanto desço em direção à cabana onde marquei para encontrar a Annie, hoje pela manhã. O mar está chegando cada vez mais perto, a Annie morrerá se eu não conseguir avisá-la.

“...se você quiser sobreviver para voltar ao seu Distrito, sua família e para a Annie”, porque essas palavras estão voltando agora?

“Finnick, te amo... Sei que vai conseguir... Por mim!”

“Por você”

Raios iluminam a passagem, a tarde virou noite, as nuvens escuras parecem trevas, o mar tranqüilo e verdejante, meu confidente fiel, entrou em ebulição e vai matar meu bem mais precioso...

Minha bota escorrega numa das pedras, me seguro em um galho espinhoso e sinto-o perfurar minha mão, o solto e quando firmo os pés no chão, vejo o sangue respingar na minha blusa branca.

“Não importa o que aconteça, não saia de lá... Vamos fugir, a Capital não pode nos separar”, disse para a Annie algumas horas antes.

Vejo os vultos brancos de farda militar entrarem na cabana.

Grito e começo a correr, eles descobriram! A Mags não pode ter contado, eu jurei guardar o segredo dela!

–- Annie!

É tarde demais...

–- Senhor Odair – me viro e o vejo apontar um revólver em direção ao meu coração – Quantas vezes terei que repetir? Ninguém foge da Capital. Estamos em todos os lugares.





 

Quatro semanas antes... Centro de Treinamento


 

–- Ouça o que a Mags falou... – Dakota ergue a cabeça, numa postura confiante – Se os pirralhos vierem até você, finja que eles não existem.

Meu mundo está em caos. Ainda não sei como dizer ao Zen que precisamos se afastar, que nossa amizade precisa ser abortada o quanto antes porque pertencemos à diferentes níveis de habilidade, ou que um Carreirista não pode ser aliado de um tributo tão inexperiente e frágil. E o Henry, nem quero lembrar que lhe ofereci uma aliança e ele aceitou. Fizemos um acordo, que será quebrado por mim, quem o propôs!

Sonhei em ser Carreirista um dia, mas algo mudou, tudo está mudando desde que entrei para os Jogos. Tentei me transformar num Finnick mais forte e concordei em doar minha alma aos Jogos, mas alguém apareceu, Zen, e me impediu de mergulhar nessa lama, porque se eu não tiver alma, eu nunca mais serei o mesmo, não serei o Finnick que a Annie ama.

“Não é só porque entrei nesses jogos nojentos que vou ficar assistindo a morte de outras pessoas e não fazer nada. Vou continuar sendo eu mesmo, mesmo que isso custe a minha morte.”, Henry me contou.

Foi nesse momento que decidi ser como eles são. Só porque a Capital nos obriga a ser assassinos, que precisamos ser assim por dentro.

O que me faz pensar... mesmo que eu me torne um Carreirista, não quer dizer que serei como eles, frios, impiedosos. Vou matar, eu sei disso, mas não porque quero.

É impossível não doar o corpo aos Jogos, mas a alma é decisão minha, e decidi guardá-la comigo, só assim poderei voltar para a Annie.

–- Fico tentando imaginar o motivo de tudo isso, sabe? – Dakota fala, mexendo no elástico azul preso em seu pulso enquanto saímos do elevador.

–- Pois é... – acrescento, com a voz tão baixa que se assemelha à um sussurro.

–- Hummm, chegamos.

É a última vez que veremos esse ginásio. Noto algo diferente, e meu coração salta quando percebo que os vidros negros laterais estão transparentes. Podemos ver os Idealizadores sentados em suas confortáveis poltronas, bebendo doses de uísque e fumando um bom charuto, nos observando com olhos vidrados.

A treinadora espera nós dois nos juntarmos ao resto dos tributos e começa a falar.

–- Bom dia à todos! – sua voz familiar e pausada irrita meus ouvidos – Amanhã é o tão esperado início dos Jogos Vorazes, e como é nosso último dia de treinamento... não haverá tarefas.

Dakota segura minha mão e me arrasta entre os tributos. Ela está determinada e não sei bem se resisto ou a deixo me levar. Com certeza tem um plano para me ajudar à se enturmar no meio dos Carreiristas, mas creio que vindo de Dakota, qualquer coisa pode acontecer.

–- Opala, Seth... – chama educadamente e os dois tributos do Distrito 1 se viram – Esse é Finnick Odair, meu parceiro.

Tento sorrir, mas não deu muito certo.

–- Olá Finnick – Seth se aproxima e estende a mão para mim – Prazer, Seth.

–- Aham... – aperto rapidamente sua mão e recuo alguns passos.

Ele possui traços marcantes e mandíbula avantajada. O cabelo negro desgrenhado lhe dá um aspecto sombrio, e os olhos azuis claros parecem gudes, me mirando com uma intensidade incômoda. Forte, seus músculos são definidos e têm o tamanho perfeito para sua estatura mediana.

–- Sou Opala – a garota acena para mim e sorri timidamente.

–- Oi... – respondo friamente.

–- Bem, meu parceiro resolveu se juntar à nós – Dakota dá leves tapinhas no meu rosto e continua – Propondo uma aliança.

–- Claro, é o que todo Carreirista faz, certo? – Seth sorri e depois balança a cabeça positivamente – Concordamos em tê-lo do nosso lado.

–- Finnick, com certeza o tributo mais comentado dessa edição... Você é, realmente, muito lindo. Dizem que é forte, talentoso, como todos os competidores do Distrito 4 que já participaram dos Jogos. – o comentário de Opala me deixa ainda mais desconfortável, por isso tento não dar atenção para o tom calculista ou para as pontinhas de inveja. – Queremos você.

–- Pronto! – minha colega bate palmas empolgada, sorrindo descaradamente. – Estou muito feliz, seremos...

É interrompida por uma risada alta, debochada e conhecida.

–- O Finnick me deve uma resposta... – Irina juntou-se à nós e logo atrás veio o companheiro – Eu lhe fiz uma proposta antes, e você não me respondeu. – fica ao meu lado, afagando meu cabelo.

O grupo me encara com expectativa, e a tarefa de desfazer o conflito pesou em minhas costas. Dakota cruza os braços, perplexa. Irina sorri ansiosa e Dan me observa dos pés a cabeça, analisando de forma constrangedora.

No início, pensar na proposta de Irina foi aceitável, afinal, eu tinha acabado de brigar com um Carreirista e precisava melhorar minha situação. Tentava pular do barco e salvar a pele num pacto ou seria incansavelmente perseguido por eles. Creio que essa ponta solta, ou espera por conclusão, foi o suficiente para desencadear aquela reação hesitante de Irina no dia anterior, se brigássemos mais uma vez, a possibilidade de se aliar à mim ficaria ainda mais remota. Sinceramente, a idéia nem me passou pela cabeça ultimamente, estou tendo sérias oscilações na personalidade, e as circunstâncias só fazem me confundir ainda mais.

–- Então – ergo a cabeça e assumo uma postura segura, isso deve ajudar – Porque não... todos nós formarmos um único grupo, como sempre acontece. – tento, mas há algo que desconheço, algum tipo de competição entre os tributos do Distrito 1 e 2, como se estivessem disputando... por mim.

–- Gente... o plano é ótimo – Dakota intervém e pisca o olho, num sinal de aprovação. – Jogamos todos no mesmo time até onde nos interessar...

Todos concordam, mas trocam olhares ameaçadores.

Irina caminha até mim.

–- Cadê o gnomo? Você não era o guardião dele? – pergunta olhando em volta.

–- Hum, o nome dele é Zen...

–- Quem se importa? – pergunta e abafa um risinho – Finn... eu sei que você não pertence à esse grupo, com certeza está morrendo de vontade de voltar para os Derrotados... Foi bom ter feito uma escolha sábia, isso te manterá vivo por mais tempo.

–- E ai? – Dan surpreende, me abraçando pelo ombro – Amigos agora? Quem diria... Confesso que admiro suas habilidades, não é qualquer um que consegue me derrubar. Mas espero que fique claro uma coisa, eu não estava com uma espada.

–- Verdade, senão você não teria sobrevivido... – digo, e sorrio para ele.

–- Ah, seus amiguinhos estão vindo para cá...

Engulo em seco e olho para trás. Zen e Henry se aproximam calmamente, sorrindo e apontando para os tributos que atiram flechas nos alvos num canto distante do ginásio. Nem parecem preocupados com o início dos Jogos amanhã.

–- Finnick! – Zen corre ao meu encontro – Até que enfim te achamos! – seus olhinhos crescem ao verem quem está ao meu lado, e o sorriso some em segundos. – Finn, o que está acontecendo?

Permaneço em silêncio. Os Carreiristas voltam suas atenções para mim e passam a observar a cena com interesse. Dan ri maldosamente ao meu lado e meu sangue congela.

–- Zen, você precisa sair daqui, não posso te explicar... – tento, mas as palavras somem e o medo invade meu corpo, correndo nas veias. Os Idealizadores, atrás do vidro transparente, assistem tudo, me fitando friamente.

–- Entendeu moleque?! O super Finnick aqui não quer mais papo contigo. – Dan se adianta e empurra Zen, que cambaleia para trás.

–- Ei! Cuidado! – Henry interfere, ficando entre Dan e Zen. – Porque fez isso seu idiota! Nós viemos aqui pelo Finnick, se não quiser mais falar com a gente, quero escutar isso saindo da boca dele. – as pequenas tranças de Henry balançam, ele se volta para mim, esperando que eu faça alguma coisa. Eu lhe propus uma união, agora lhe devo explicações satisfatórias para a situação.

–- Anda Finnick, fala para ele que você pertence aos Carreiristas agora. Que o não tem mais tempo de brincar no jardim da infância... – Dan me incentiva, mas dizendo tudo de uma maneira debochada, tentando deixar a situação ao seu favor, me pregando peças.

–- Não é assim...

–- Ah, Finnick, vai ficar escondendo o jogo? Você mesmo disse que esses garotos eram uma pedra no seu sapato... – hã? Fico boquiaberto com a falsidade do desgraçado.

–- Eu não disse isso! – sinto o leve ardor e as lágrimas enxerem meus olhos, só não sei se é de raiva ou...

–- Finnick é verdade? – a voz fina de Zen me quebra por dentro – Você não gosta mais da gente?

“Hoje você vai mudar essa situação. Sei que é difícil, mas quem quer que seja esses seus aliados descartáveis, você terá que se afastar deles ou obrigá-los à ficar longe de você. É o último dia de Treinamento, tente ao máximo se aproximar dos Carreiristas, se você quiser sobreviver para voltar ao seu Distrito, sua família e para a Annie!”

Porquê? Eu quero correr para longe dali, me esconder para não ter que responder à isso...

–- Sim, é verdade! – grito de uma vez, tentando me livrar dessa situação.

Zen recua descrente, à passos vacilantes. Ah, eu o magoei profundamente.

–- Finn... eu não sei... – sussurra com a voz embargada e olha em volta, para os Carreiristas que agora riem da sua cara. – Eu pensei que você fosse diferente dos outros... - diz entre dentes e sai correndo, chorando.

–- Desgraçado... – Henry fala antes de seguir atrás de Zen.

–- Isso aí, vai embora, aqui não é lugar para vocês... – Dan grita e estende a mão para mim – Parabéns, fez a escolha certa.

Concordo, completamente destruído por dentro.

Nos dispersamos, Dakota e Opala vão para os alvos em movimento num canto reservado. Seth se aproxima de nós dois, insinuando um sorriso no canto dos lábios. Caminhamos até a mesa de armas e instrumentos e eu pego uma bela espada dourada.

–- Um duelo? – pergunta Seth com a sua arma em punho.

–- Não... – respondo desanimado.

–- Tudo bem, eu aceito – Dan se intromete, em posição de ataque.

Passos depois, estou de frente para um dos bonecos de pano, me preparo, dobro os joelhos, encolho os braços e atraco. O decapito com um golpe certeiro, afiado e cirurgico, a bola de pano sai rolando, espalhando espuma pelo local.

Amanhã farei com a cabeça de alguém.


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