Uma Luz na Torre escrita por Silver Lady


Capítulo 6
Capítulo 6


Notas iniciais do capítulo

Desde a primeira vez que vi o filme, duas coisas me chamaram a atenção. A primeira foi o fato de Sally ter uma máquina de costura no quarto, já que ela aparentemente não a usava _ aquele vestido esfarrapado dela parecia ter sido costurado pelo próprio Doutor, e pelo jeito era mais que provável que ele não a deixasse fazer roupas novas pra si. Então, pra quê a máquina? Mesmo a idéia de que ela costurasse roupas para o Doutor e para as criações dele não me parecia satisfatória, por isso achei que talvez Sally pudesse até costurar para o Halloween, mesmo não tendo licença de participar da festa.   A outra coisa foi a estranha indiferença de Jack por Sally. Parecia óbvio que ele gostava dela, mas mesmo com aquela obsessão toda pelo Natal, eu achava estranho que ele a tratasse com aquela distância o tempo todo e de repente: bum! Tava apaixonado. Mas pela cara que Jack faz, no fim do filme, ao ver o Doutor com sua nova companheira, talvez ele achasse que, bom, que Sally e o velhinho tivessem alguma coisa, e depois aproveitou que o caminho estava desimpedido. ;)



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Dizer que o Doutor ficara preocupado com as palavras de Jack seria dourar a pílula. Na verdade, ele estava apavorado. Simplesmente não conseguia entender aquele súbito interesse de Jack por Sally. Aquele saco de ossos intrometido sempre fora curioso, mas costumava respeitar a privacidade alheia; era a única coisa nele que o Doutor realmente gostava.

Se alguma outra pessoa o houvesse interrogado daquele jeito, aquele Prefeito idiota, por exemplo, ele o teria mandado cuidar de sua vida e esquecido o assunto. Mas, quando se tratava de Jack, era impossível. O velho cientista havia trabalhado com Jack durante quase dois séculos, e sabia o quanto o rapaz podia ser teimoso: quando ele metia uma coisa em sua caveira, não descansava até que o assunto tivesse sido encerrado e explorado até a última vírgula. Se insistisse em manter Sally presa, Jack não descansaria até descobrir o porquê; pior, ele jamais entenderia por que o Doutor tinha que agir daquele jeito. O último Rei Abóbora era um idealista que acreditava em besteiras como bondade e direitos iguais; todo o trabalho e despesa que ele, Dr. Finkelstein, tivera para trazer Sally ao mundo e educá-la não significaria nada. Se descobrisse a verdade, Jack ficaria furioso e acusaria o Doutor de estar sendo cruel, e a última coisa que um pobre velho doente como ele precisava era de um Rei Abóbora furioso no seu encalço.

Por sorte, Jack era muito ingênuo. Melhor ainda, ele também era ocupadíssimo, e as pessoas muito ocupadas tendem a esquecer coisas facilmente. Só precisava fazer o ossudo pensar que tudo estava bem para que este acabasse esquecendo Sally. Garota estúpida, ela lhe causava problemas demais. Havia pensado em casar com ela, logo que estivesse pronta, porém agora percebia que isso seria um erro. Tê-la por perto já era mais que suficiente para deixa-lo maluco.

Encontrou a chave do quarto dela no chão. Devia ter caído quando ela batera na porta, no seu ataque histérico. Ele apanhou a chave e fitou-a demoradamente.

Sally estava sentada na cama, fitando a parede. Nem se mexeu quando ele entrou.

_Pode sair agora. A visita já se foi.

Ela não respondeu nem deu qualquer sinal de haver notado a sua presença.

_Não sei o que há de tão fascinante nessa parede. _ ele mofou.

Os lábios dela finalmente se moveram.

_Desculpe. É que eu não tinha mais nada pra fazer. Não posso olhar pra fora, nem costurar pra não empalar meus dedos, e se pentear meu cabelo mais uma vez vou ficar careca. _ não havia o menor traço de ironia, mas a tremura em sua voz reforçava as farpas lançadas _Mas se o senhor quiser, posso fechar meus olhos pra não olhar a parede.

Logo que ela disse isso, se arrependeu. Por mais que ele merece ouvir aquilo, aquelas palavras que praticamente escaparam de sua boca por conta própria, ela se sentia mal. Quando se está acostumado a respeitar e obedecer alguém, não se pode mudar isso num piscar de olhos, mesmo que essa pessoa não mereça mais seu respeito. Esperou o sermão habitual sobre sua maldade e ingratidão, mas nada veio. Arriscou um olhar. O amo... isso é, o Doutor Finkelstein apenas a fitava em silêncio, parecendo preocupado.

_Bom. Então, finalmente estamos aprendendo a nos comportar.

_Sim, estamos. _ Sally repetiu apaticamente. Seu olhar passou da parede para a noite através da janela, sem se incomodar que ele percebesse. Já não importava mais.

_Talvez agora possamos viver em paz e satisfeitos com o que temos, em vez de chorarmos pela Lua. _ ele disse, seguindo seu olhar _ Aquilo não é para nós. Sei que você me acha cruel, mas tudo o que quero é te poupar do que passei lá fora. Quando você aprender sobre os benefícios de uma vida pacata e resguardada, vai me agradecer.

Ele continuou falando e falando, nada do que Sally já não tivesse ouvido antes. Ela não sabia o que dizer. As coisas que ele dizia faziam sentido, e no fundo ela sentia um certo medo do que poderia lhe acontecer lá fora. No entanto, ele poderia estar mentindo, assim como mentira sobre todo o resto. Se ele não queria que ela sofresse, porque vivia lhe dizendo coisas ruins, fazendo-a sentir-se mal? Costumava achar que merecia aquilo, mas depois lembrava de como Jack fora gentil com ela, apesar dela haver perturbado seu sono. Ele a ajudara a levantar e arrumara a bagunça que ela fizera; mais impressionante, ele escutara pacientemente todas as suas besteiras, sem interrompê-la com um "Está bem, agora vá embora e me deixe em paz". Talvez ela tivesse o direito de ser bem tratada, afinal. Essa idéia lhe pareceu tão incrível que mal ouviu o que o velho dizia:

_Sally? Não está me ouvindo?_ ralhou.

Ela virou-se para ele, piscando, como se quisesse sacudir uma teia de aranha do rosto:
_Hã... não, isso é, sim... Desculpe.

_Eu perguntei se você queria saber quem esteve aqui.

De início, Sally nem levantou os olhos. Então, percebeu que se não demonstrasse ao menos curiosidade, ele ficaria desconfiado.

_Oh... sim, claro. _disse, em tom forçado.

_Foi Jack Skellington.

Sally arregalou os olhos, esforçando-se para parecer surpresa:
_Oooh... e o que ele queria do senhor?

_O que ele queria refere-se somente a negócios, e mesmo se fosse da sua conta você não iria entender. _ ralhou o velho _Só estou lhe contando porque ele perguntou por você.

_Pe - perguntou por mim? _Sally gaguejou _ Mas é impossível! Quer dizer, não que eu esteja duvidando do senhor, mas parece incrível. Por que ele iria querer saber sobre alguém como eu?

_Eu me fiz a mesma pergunta. Ele estava muito interessado em você, e quis saber se contribuiria para o Halloween, também.

_E o senhor disse que eu não posso. _era uma afirmação, não uma pergunta.

_Não se atreva a presumir o que eu disse ou não! _ berrou o velho, fazendo-a encolher-se. Sally murmurou um pedido de desculpas e ele continuou: _Sim, falei pra ele, mas Jack foi inflexível. É muito teimoso, tem isso em comum com você; e, se eu o conheço bem, vai insistir e insistir, até que eu faça o que ele quer. _ suspirou pesadamente.

_Então... _ Sally susteve a respiração, mal podendo acreditar no que ouvia.

_Então, não há jeito senão deixar você trabalhar para o Halloween, por mais que eu desaprove.

Não podia ser! Era bom demais para ser verdade! A vontade que teve foi de beijar os pés do amo... até que ouviu o resto.

_Vou dizer a Jack que você ainda não está preparada para conhecer mais gente. Acho que isso pelo menos ele vai entender. Você é tão tímida que desmaiaria se tivesse que enfrentar uma multidão. Por isso, vou pedir a Igor para trazer uma máquina de costura usada para seu quarto, e você terá que aprender a usá-la. Vai fazer roupas e capas para aqueles monstros. Ouvi dizer que os vampiros gastam muito suas capas nas suas incursões atrás de sangue. _ deu uma risadinha seca _Naturalmente, eu espero que continue cumprindo as suas tarefas diárias; por isso, terá de costurar nas suas horas de folga.  Assim, não precisará mais passar o tempo olhando a parede.

O sorriso de Sally se desmanchou. Sabia que era bom demais. Aquilo não mudaria em nada a sua situação: apenas seria um serviço a mais, como se ela já não tivesse o suficiente. O doutor reprimiu um sorriso de prazer, ao ver seu desapontamento.

_Que foi? Não era isso que queria?

_Oh não... digo, claro que é, é... maravilhoso. Muito obrigada. _ Sally disse fracamente.

_Sally, o que foi que aprendemos sobre mentir?

Ah, não. De novo não. Fechou a boca, com ar de desafio. Ele podia fazê-la em pedaços se quisesse, mas nunca mais a faria repetir aquela ladainha. Ele é quem deveria dizer aquilo, não ela! Sabiamente, o doutor não insistiu, preferindo recorrer mais uma vez à chantagem emocional:

_Já sabia. Nada do que eu faço é suficiente, tudo o que você quer é ir estar com um bando de gente que nem sequer te conhece, enquanto eu, que te dei vida, apodreço aqui sozinho...

_Oh, por favor! _ Sally protestou irritada, o ressentimento acumulado durante seus seis meses de vida subindo-lhe à garganta _Você sabe que não é verdade. Só por eu botar o pé lá fora não quer dizer que vá deixá-lo aqui à míngua. O senhor deveria confiar em mim.

Ele sorriu misteriosamente.

_Confiar, você diz?

Lentamente, tirou do bolso um objeto metálico e exibiu-o a Sally. A boneca curvou-se para olhar.

_Reconhece isto?

_É... a chave do meu quarto. _ ela respondeu, meio confusa.

_Olhe mais de perto.

Alguns riscos dourados marcavam a superfície do metal levemente enferrujado e escurecido pelo tempo.

_Está vendo estes riscos? _ ele indagou de novo.

_Sim, mas não enten...

_Eu vou fazer você entender! Esta chave não tinha nada quando tranquei você horas atrás. Por que está toda arranhada, agora?

O coração de Sally pareceu parar naquele instante.

_V-vai ver que caiu no chão. _ arriscou debilmente.

_Errado. Está arranhada porque alguém que eu mandei ficar aqui não me ouviu; e, não sei como, achou um jeito de puxar a chave por debaixo da porta pra sair, e pra ir até a biblioteca incomodar minha visita quando eu não estava por perto!! E depois, quando voltou, empurrou a chave debaixo da porta, achando que eu seria idiota de pensar que ela havia caído, sua TRAIDORA MENTIROSA!!! _ a mão que segurava a chave esbofeteou o rosto de Sally, com tanta força que ela foi atirada para trás.

_Você esteve lá, sua miserável! Você falou com Jack, foi por isso que ele fez todas aquelas perguntas! E quer que eu confie em você?

Ele parou, arfante, fitando com olhar alucinado a figurinha frágil atirada contra a parede. Depois de um instante, lentamente, ela apoiou o peso do corpo trêmulo sobre as mãos e sentou-se sobre as pernas com a cabeça baixa, o rosto coberto pelo cabelo. Sempre fitando o chão, ela empurrou o cabelo e levou a mão ao rosto. Não rápido o bastante, entretanto, para impedir que ele visse um rasgão na face direita. Ele se inteiriçou, sentindo um frio correr pela espinha abaixo. Então, percebeu o que realmente acontecera. A chave havia rompido parcialmente as costuras da face e o corte estava aberto. Que alívio, ele não a havia desfigurado. Aquilo poderia ser consertado facilmente.

O doutor abominava a violência: era esta a principal razão porque detestava os outros habitantes daquela cidadezinha vulgar. Embora contribuísse para o Halloween, aquela festa sempre lhe parecera uma celebração da violência, e violência era para criaturas primitivas. Ele se isolava para não ser contaminado, mas não pudera impedir que sua mais valiosa criação tivesse sua pureza maculada. E ela transmitira para ele. Ele nunca batera em Sally antes, por mais que ela o irritasse. É verdade que às vezes dava uns cascudos naquele idiota do Igor, mas não considerava isso violência. Olhou com horror a mão que cometera o crime, depois lançou um olhar furioso e enojado para a causadora. Era tudo culpa dela. Se não fosse tão teimosa e desobediente, ele nunca teria conspurcado seus princípios.

 Os lábios de Sally moveram-se, mas seus olhos não saíam do chão. Embora sua voz estivesse trêmula e falasse com dificuldade por causa do corte no rosto, as palavras eram bem nítidas:
_Eu confiava no senhor. Acreditei em tudo o que me dizia, mas o senhor nunca me disse a verdade. E Jack também acreditou no senhor, também. Em cada palavra. _ fungou, lembrando-se de quando ele achara que ela era uma boba.

O velho riu com desdém.

_Claro que ele acreditou. Aquele idiota acredita em tudo o que ouve; ele acreditaria até mesmo se lhe dissessem que a lua vai explodir!

Sally ergueu o rosto, os olhos brilhando. Que ele a chamasse de burra, idiota ou coisa parecida ainda ia, estava acostumada; mas não tinha direito de zombar daquele homem maravilhoso, que era mil vezes melhor do que ele! (esquecia-se que ela mesma também achara Jack tolo, por ter sido vencido pelos argumentos do Doutor)

_Não fale dele assim! _ disse asperamente, enquanto se levantava. Ele fez cara de ultraje, mas a boneca continuou a encará-lo.

_Não deve falar dele assim... _ consertou, hesitante, depois censurou-se mentalmente e voltou a falar com firmeza _O senhor sempre me disse que Ja... que o Rei Abóbora era um monstro, mas ele não é. Ele podia ter obrigado o senhor a mostrar pra ele a sua bibi... biblo... _ apertou a costura arrebentada para falar melhor _mostrar sua biblioteca pra ele, ou a me libertar, mas não o fez. Ele pediu. E não ficou bravo quando me achou lá em cima, ele foi bom pra mim... Eu queria tanto que o senhor fosse bom pra mim assim... _ a última frase saiu muito baixinho, mas o velho a ouviu. Seus olhos faiscaram por trás dos óculos escuros. Era o que ele mais temia; desde a primeira vez que Sally abrira os olhos e sorrira para ele, sentira que isso aconteceria. Ele ia perdê-la para aquele pau de virar tripas!

_Ah, ele foi bom pra você, é? _zombou, a voz carregada de veneno _ Então esse é que é o problema: você quer ser paparicada e ouvir elogios, e não gosta de mim porque não lhe dou valor. Quer prêmios, não é?

Sally ficou constrangida. Mas, pensando bem, por que não? Até Igor ganhava biscoitos quando fazia alguma coisa direito, e ela sabia que era muito mais habilidosa do que o corcunda. Não é que quisesse biscoitos de cachorro (eca!), mas que havia de mal nela receber um agradecimento, ao menos uma vez?

Protestou timidamente:
_Não! Eu não quero prêmios, só q...

_Não precisa negar, eu sempre soube. Acha que não noto a sua bajulação, e a sua devoção fingida? Ha!

_Não é fingida! Eu...

_Você pode enganar os outros, mas não a mim. Foi fácil pra Jack tratar você bem, já que ele não tem de aturá-la todo santo dia. Mas se pensa que ele se importa com você, pode tirar o cavalinho da chuva: ele não se importa com ninguém a não ser ele mesmo.

_Não é só ele. _ Sally murmurou, virando o rosto. O velho praguejou e aproximou-se ameaçadoramente dela, mas a boneca não se encolheu, sequer tentou se proteger. Estava magoada demais, ferida demais com tanta crueldade para se preocupar com o que ele pudesse fazer com ela.

Ele parou a poucos centímetros dela e ficou em silêncio por um momento. Finalmente, falou:

_Você é jovem demais para entender. Por isso eu a perdôo. _ depois virou-lhe as costas e começou a rodar em direção da porta _ Vá dormir, que já é muito tarde. Amanhã de manhã vou mandar Igor trazer a máquina de costura aqui em cima, portanto trate de acordar cedo.

Já passava o umbral da porta quando a voz dela o alcançou:

_O senhor podia fazer outras criações, sabe disso. Podia fazer alguém melhor que eu.

Sim, podia. É claro que podia.

Mas nenhuma de suas outras criações seria igual a ela.

Olhou por cima do ombro. Ela estava de pé no mesmo lugar, cobrindo o buraco do rosto com a mão. Talvez devesse levá-la até o laboratório para consertar, pensou, mas achou melhor não. Sally podia achar que ele estava amolecendo e se aproveitar disso. Uma noite com a cara daquele jeito a ensinaria quem é que mandava.

Esse pensamento o colocou de bom humor, e decidiu ser magnânimo:
_Se não consegue dormir, pode olhar pela janela. Mas não fique acordada até tarde.

_Obrigada _ Sally ficou surpresa, porém não agradecida.

_De nada. _ ele bateu a porta. O som da chave girando foi ouvido mais uma vez, porém ela sabia que a chave não seria mais deixada na fechadura. Não ligou.

Enxugou os olhos com dignidade e andou até a cama, porém não para obedecer as ordens dele. Como poderia dormir destroçada por dentro, do jeito que se sentia? Sentou-se, pegou o novelo de linha e a agulha presa aonde deveria ficar a sua orelha, se ela a tivesse. Não era fácil costurar o rosto sem um espelho, mas logo estava tudo no lugar de novo, ainda que as costuras estivessem um tanto apertadas. Mas sua aparência não importava; na verdade, o que importava, agora?

Tirou o travesseiro do lugar, revelando um pequeno pacote escondido. Apanhou-o e derramou um pouco do conteúdo na palma da mão, com uma careta. Depois, colocou-o de volta. Mesmo seca e esmagada, aquela erva ainda cheirava mal; pelo menos quanto a isso o velho não havia mentido. Fora quando ele conduzira Jack pra fora: ela estivera lá, escondida no corredor do lado de fora da sala, ouvindo os dois homens conversarem. Não tivera a intenção, seria abusar demais da sorte, mas tinha que saber se Jack cumpriria sua promessa de não falar ao doutor que ela estivera na biblioteca. Ele cumprira, mas suas perguntas sem dúvida haviam implantado na mente de seu criador a semente da suspeita. Não tinha raiva de Jack, entretanto: ele só quisera ajudá-la, embora Sally achasse que se ele realmente quisesse poderia ter obrigado o Doutor a deixá-la livre. O que realmente doía fora a que maneira que o doutor falara dela: até aquela noite Sally nunca se dera conta, mas o velho cientista era o centro do seu mundo. Ele lhe dera vida e ensinara tudo o que sabia (pelo menos a maior parte); embora ele nunca tivesse lhe dado carinho, a boneca de trapo o amara de verdade e sua dedicação fora sincera. Mas, depois de tudo o que ouvira, percebia o quanto havia se iludido.

Havia coisas que Sally nunca aprendera, mas que conhecia instintivamente, talvez vestígios de memórias das mulheres mortas que haviam sido usadas para compor seu corpo*. Embora nunca tivesse ouvido falar de amor, conhecia a palavra e sabia o que significava. E o homem que a criara, percebia agora, era completamente incapaz de amar. Nem ao menos pensava nela como filha, por mais que afirmasse o contrário: para ele, ela não passava de uma ferramenta cara que não podia ser emprestada. Uma jóia preciosa para ser trancada num cofre para sempre e nunca ver a luz do sol.

Depois de perceber tudo isso, não quisera ficar naquele lugar mais nem um minuto; porém, antes que pudesse fugir, os dois homens haviam deixado a sala e ela tivera de se esconder. Tendo perdido a chance de fugir, ocorreu-lhe que talvez o Doutor tivesse um pouco de Erva Moura Letal nos seus guardados; tivera sorte o bastante para achá-la e botar as coisas no lugar antes de correr de volta para o quarto, se trancar e empurrar a chave de sob a porta antes que o velho voltasse.

Pelo menos fora o que achara, Sally pensou, acariciando a face esbofeteada, os lábios cerrados e torcidos, tentando não tremer. Apanhar as ervas lhe parecera a solução, mas agora... agora não tinha tanta certeza. De repente, enterrou o rosto no pacotinho e começou a soluçar. Seus olhos, no entanto, permaneceram secos. Já chorara demais naquela noite, e soluçava apenas para descarregar os nervos, assim como algumas pessoas riem histericamente. Após um ou dois minutos, conseguiu parar, respirou fundo e depois foi até a janela.

Tantas vezes ela olhara por aquela janela, sempre cheia de culpa e com medo de ser descoberta. Agora não precisava mais ter medo, pois o doutor dera a sua permissão. Para ele, aquilo era ser generoso; mas nada do que ele fizesse agora podia consertar o que fora quebrado.

Percebeu vagamente que a luz na torre estava acesa, mas sua atenção estava nos telhados e ruas escuras abaixo desta, e também nas poucas criaturas que ainda vagavam àquela hora. Talvez seu lugar não fosse lá, mas tampouco era ali naquele quarto ali em cima. Isso estava bem claro, agora.

Novamente, perguntava-se se não era melhor pular e acabar com tudo de uma vez.

Nada lhe garantia que as pessoas do mundo lá fora fossem melhores do que seu mesquinho criador. Agora que a possibilidade de seu sonho se realizar parecia tão próxima, ela tinha medo. E se não gostassem dela?  E se também não quisessem deixá-la participar do Halloween?  Na verdade, não sabia nada sobre o mundo exterior além das informações, provavelmente falsas, que o Doutor lhe dava e do que vira em suas espiadas clandestinas. A única pessoa que sabia ser boa era o rei, Jack.

Esse pensamento a fez olhar para a torre, a qual ainda brilhava, como um farol em meio ao mar de telhados escuros. A torre de Jack. Inconscientemente, Sally sorriu ao tentar lembrar as coisas que imaginara sobre ele antes de conhecê-lo, mas descobriu que não conseguia. Todas as suas fantasias haviam se desvanecido, deixando em seu lugar um cavalheiro muito alto, com uma fantástica roupa listrada e uma voz maravilhosa. Levou a mão ao peito. Embora não pudesse expressar isso em palavras, sentia que, de alguma forma Jack a havia mudado. Fora por apenas alguns minutos e mal haviam trocado algumas palavras, porém aquele rápido encontro fora o suficiente para despertar em seu coração emoções que nunca experimentara antes, embora houvesse ansiado por elas durante toda a sua curta vidinha.

E descobriu que não queria morrer. Havia muito para ver e fazer, especialmente em relação ao seu primeiro e único amigo.

A luz na torre se apagou. Jack ia conseguir dormir aquela noite. E ela também.

_Jack_ sussurrou _ Eu juro que ainda vou ver você de novo. _ depois foi se deitar, e naquela noite, teve o seu primeiro sonho bom. Sonhou que Jack dançava com ela em meio aos monstros e bruxas que cantavam alegremente, enquanto o Doutor praguejava,mas não conseguia alcança-los porque estava muito longe.

*****

Jack cobriu-se com o camisolão e abotoou-o até o pescoço. Enquanto apanhava o gorro de dormir, seu olhar foi atraído pelo céu noturno, que aparecia pelo balcão aberto, e resolveu sair um pouco. Aquela torre tinha a melhor vista da cidade, e passava muitas noites como aquela olhando as estrelas, antes de dormir. Dali, podia ver o laboratório do doutor, mas as luzes estavam apagadas, e ele se perguntou se Sally já estaria dormindo. Sentiu o focinho de Zero, seu cachorrinho fantasma, roçando a sua perna.

_Zero, eu conheci hoje uma garota. Uma garota linda, gentil, um pouco tímida, talvez... _ falou, pensativo _ Espero não tê-la colocado em encrenca _ terminou, com um bocejo. Ah, porque estava se preocupando? Ela ia ficar bem, e com isso procurou pensar em outras coisas. Quaisquer sentimentos que tivesse começado a ter por Sally além de amizade e um pouco de pena haviam sido sufocados pelo pensamento do possível noivado dela com o Doutor. Embora Jack não o percebesse conscientemente, isso o afastaria de Sally melhor do que qualquer coisa que o velho pudesse tramar.

Na manhã seguinte, teria de checar de novo aquela maldita papelada com o Prefeito. Por quê, ele não sabia, pois há séculos usavam sempre os mesmos planos velhos e encardidos, e conheciam todos os seus desenhos (já meio apagados pelo tempo) de cor. Mas ele seguia a rotina porque o Prefeito e os outros gostavam dela; era assim que o Halloween deveria ser. Não importava que todo o ano fosse a mesma coisa, todos sempre trabalhavam com o mesmo entusiasmo de sempre. Todos menos ele, Jack.

Bocejou de novo. Talvez não precisasse usar a erva do doutor, o que era ótimo. Aquela coisa cheirava muito mal! Entrou e fechou a janela do balcão.


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