Uma Luz na Torre escrita por Silver Lady


Capítulo 2
Capítulo 2




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_Sally!_chamou uma voz áspera. A boneca de trapo deu um pulo e rapidamente fechou a janela.

_Sally? Está aí dentro?_insistiu a voz.

_Siim._Sally gemeu em resposta. A porta abriu-se com um rangido e o Doutor Finkelstein entrou. Sally susteve a respiração e recuou, encostando-se no parapeito da janela como uma criança apanhada fazendo travessuras.

"The world is cruel

O mundo é cruel

The world is wicked

O mundo é mau

It's I alone whom you can trust in this whole city

Eu sou o único em quem você pode confiar na cidade inteira

I am your only friend

Sou seu único amigo

I who keep you, teach you, feed you, dress you

Eu, que o mantenho, o ensino, alimento, visto

I who look upon you without fear

Eu, que olho para você sem medo

How can I protect you, boy, unless you

Como posso protegê-lo, rapaz, a menos que você

Always stay in here

Fique sempre aqui

Away in here?

Aqui em cima?

(...)

Stay in here

Fique aqui

Be faithful to me

Seja fiel a mim (I am faithful)

Eu sou fiel

Grateful to me

Grato a mim (I am grateful)

Eu sou grato

Do as I say

Faça o que mando

Obey

Obedeça

And stay

E fique

In here "

Aqui.

Out There (Lá Fora), de O Corcunda de Notre Dame (versão de Frollo)

O velho fitou a sua criação por um longo tempo. A luz do sol poente pintava um halo dourado sobre os cabelos ruivos da jovem, enquanto seu rosto permanecia nas sombras. Mesmo assim, o cientista podia perfeitamente visualizar o terror nos olhos dela e os lábios desencontrados um do outro_um defeito que ele nunca conseguira consertar e que tornava patética sua expressão habitualmente melancólica... mas que também lhe dava uma beleza incomum quando sorria. Sally raramente sorria agora; no entanto, costumava sorrir e rir muito nos seus primeiros dias de vida, mesmo quando tropeçava e caía de nariz no chão. Seu equilíbrio ainda era precário e seus movimentos desajeitados... embora não inteiramente desgraciosos. Ela também falava demais e quase o deixava maluco com suas perguntas, mas sua voz era a coisa mais doce que ele já ouvira.

No fundo, o Dr. Finkelstein sentia que jamais tornaria fazer algo igual a Sally. Havia alguma coisa sutil, invisível mas perceptível naquela criatura tão defeituosa que a fazia única, mas que também parecia zombar dele, sussurrando-lhe em sua mente que ela jamais seria inteiramente sua. Sally estava destinada a ser muito mais do que sua serviçal, o que o orgulhoso Dr. não podia admitir. Era por isso que a mantinha escondida do mundo; de outro modo, a perderia.

_Afaste-se da janela._ordenou secamente _ Ou espera que um velho doente como eu venha rastejando até onde você está?

_N-não... claro que não. _ Sally gaguejou, obedecendo.

_Por que não respondeu quando chamei da primeira vez?

_Eu... eu não ouvi. Desculpe.

Os lábios bicudos do Dr. se esticaram num sorriso perverso:

_Estava fazendo alguma coisa errada, não estava, menina travessa?

_N-nada. O que poderia fazer aqui em cima sozinha? _ a boneca de trapo forçou um sorriso. O velho lutou para não sorrir, também. Era tão engraçado vê-la tremer e evitar seu olhar, como se tivesse cometido o pior dos crimes: era simplesmente... viciante. Ele se sentia poderoso, quase como se fosse o próprio Jack Skellington, em vez de um velho alquebrado e patético. E, se Sally não se comportava, era inteiramente culpa dela.

_Sally, Sally_ele abanou a cabeça_O que nós aprendemos sobre mentir?

_Mas não estou mentindo!_protestou a boneca. O Dr fuzilou-a com o olhar e ela baixou a cabeça:

_Desculpe.

_Que foi que aprendemos?_ele insistiu.

_"Eu não devo mentir ao meu mestre"_Sally recitou_"Eu não devo esconder a verdade daquele a quem devo minha vida e me ensinou tudo o que sei." Mas... eu estou falando a verdade! Posso jurar: estava só penteando o cabelo _ exibiu o pente ainda em sua mão como prova.

_Humm. E precisa pentear o cabelo com a janela aberta?

Sally soltou um arquejo culpado e ele sorriu:

_Minhas pernas são inúteis, mas os meus ouvidos ainda são muito bons, mesmo através de uma porta espessa como a do seu quarto.

Sally baixou de novo os olhos e não disse nada.

_Então?

_Sim._ela murmurou_Também estava espiando pela janela. É que...eu... eu não vi mal nenhum nisso. O sr. sempre me disse pra ficar longe das janelas pra não me desconcentrar do trabalho, mas pensei que fosse só lá embaixo. E também não tinha mais nada pra fazer.

_Qualquer desculpa é boa quando se quer fazer uma coisa que sabe que é errada.

O coração de Sally bateu mais forte. Ele jamais lhe dissera que olhar pela sua própria janela era proibido, e ela astutamente nunca lhe perguntara a respeito. Agora perderia até mesmo isso, o único prazer que tinha, ainda que fosse um prazer clandestino. Repuxou os lábios, experimentando um sentimento novo: raiva. O que havia de tão ruim no mundo lá fora que não podia sequer espiar? Quase sem sentir, cerrou o punho apertado, e o Doutor percebeu. Sentindo que devia ter exagerado, ele escolheu outra táctica.

Abanou a cabeça, com tristeza:

_Eu tenho notado que você anda muito distraída, ultimamente-- mais do que de costume, até. Você nunca escuta quando eu chamo, parece que sua cabeça está sempre em outro lugar_ e espia por tudo quanto é buraco e janela quando pensa que não estou olhando!

Sally estremeceu, menos por ter sido apanhada em flagrante tantas vezes do que por saber o que vinha a seguir. Efectivamente, o discurso veio, começando com a mesma frase de sempre:

_Eu tenho feito o melhor possível para que se sinta feliz aqui...

_Eu sei. O senhor é tão generoso... _ Sally cortou-o rápido, mas ele a ignorou:

_...mas parece que não é o bastante. Me dói tanto saber que minha criação, que eu fiz com estas mãos, quer me abandonar pra se divertir lá fora. _ gemeu tristemente _ O que eu fiz pra merecer isso? Um pobre velhinho, sozinho nesta torre imensa e fria. O que foi que eu te fiz para me tratar assim?

Como sempre acontecia, Sally sentiu-se egoísta e insensível, mas desta vez também ficou um pouco ofendida pelo amo continuar achando que ela seria tão cruel, depois de ter se mostrado tão dedicada:

_Mas eu não vou abandonar o senhor! Por que faria isso? Aqui é o meu lar e o senhor me fez; o senhor é a única família que tenho. Eu só queria ir um pouquinho lá fora; só uma vez, pra saber como é. Depois eu volto, juro.

O velho continuou de cabeça baixa. Sally ajoelhou-se ao lado dele e carinhosamente tomou seu queixo na palma da mão, obrigando-o a olhar para ela:

_Desculpe se o fiz se sentir abandonado. O senhor sempre foi muito paciente comigo, e me deu este quarto tão grande e... comfortável... _ sua voz saiu meio forçada no "comfortável", ao olhar para as paredes nuas e a mobília velhíssima _ É que eu... não posso evitar. É mais forte que eu: vejo o sol brilhando lá fora, ouço as pessoas rindo e cantando e o Prefeito chamando pras reuniões, e preciso saber o que está acontecendo...

_O que acontece lá fora não é da sua conta. _ o velho rosnou, tão ferozmente que Sally recuou e caiu sentada _ E você não está preparada para sair: já discutimos isso. O mundo do Halloween é perverso e perigoso, de modo algum apropriado para uma criança como você.

Sally foi se levantando enquanto ele falava. Um brilho de determinação apareceu em seus olhos:

_Isso era verdade quando o senhor me fez _ disse, para surpresa do Dr e dela mesma _ Mas não sou mais criança; estou mais madura agora e já sei me cuidar. E o senhor vive dizendo que todo mundo tem que contribuir nalguma coisa pra festa de Halloween, se quiser continuar morando aqui; até mesmo o senhor. Por que eu não? Me sinto tão inútil presa aqui o tempo tod... n-n-não, não era isso, que eu queria dizer, queria... eu acho que podia contribuir nalguma coisa pro Halloween, como os outros. Sei que posso ajudar. Por favor _ implorou, juntando as mãos.

O Dr estava chocado: ela nunca reagira daquele modo antes. Não que mudasse alguma coisa.

_Digamos que eu concorde. _ disse, cautelosamente _ O que você faria?

Sally foi pega de surpresa. Nunca havia pensado nisso antes.

_Eu... eu posso cozinhar, é claro. _ respondeu, insegura.

_É claro. _ zombou o velho _ Havia me esquecido. Você pode servir sopa para as pessoas: aí poderei compartilhar minhas dores de estômago com a cidade inteira.

Sally mordeu o lábio. O mestre nunca tivera indigestão -- não com a comida dela! Apesar de suas queixas e insultos, ela sabia que no fundo ele apreciava sua comida. Por que fazia isso com ela? Tentou manter a calma e respirou fundo:

_Bom, talvez eu não cozinhe tão bem assim. Mas também sei costurar; tenho praticado quando não tenho trabalho a fazer, e já melhorei...

Foi interrompida por uma gargalhada cruel.

_Por favor, Sally. Nós dois sabemos o que aconteceu quando tentei ensinar você a costurar. Eu a fiz parcialmente insensível a dor para que não sofresse quando precisasse consertar você, mas como resultado, você não consegue usar uma agulha sem empalar os dedos.

_Não é verdade! Se me deixar most...

Ele a ignorou.

_As únicas coisas que você sabe fazer são preparar minha comida e limpar a casa. Mal. Que ia fazer lá fora? Varrer as ruas e servir chá? Pode fazer isso aqui. E você não sabe nem sequer interagir com as pessoas: não sabe falar nem se comportar em sociedade. O povo de Halloweentown é cruel: eles ririam de você e de mim, também. É isso que você quer? Que eu seja motivo de riso de todo mundo?

_Não! É claro que não._Sally replicou acaloradamente _ Mas é esse o problema. O senhor nunca me ensinou a inerr... _ lutou com a palavra nova _ a "in-terr -a-girr " com outras pessoas. Como posso saber como me comportar em sociedade se só vejo o senhor e Igor?

_Paciência, minha querida, vai saber quando chegar a hora. Antes, não. _ o cientista disse, deixando claro que o assunto estava encerrado. Não adiantava insistir e Sally deixou cair os ombros, vencida. O velho sorriu, satisfeito, e continuou:

_Mas não é isso que queria falar com você. Esta noite, vou receber uma visita.

_Uma... visita? _ Sally ergueu a cabeça, seus olhos brilhando de interesse. O mestre nunca recebia visitas, a não ser o Prefeito uma vez, pouco depois que ela ganhara vida e ainda não atinava as coisas. Apesar disso, a boneca de trapo fora ensinada a servir e se comportar na frente de visitas _ E o senhor quer que eu sirva chá? Posso fazer aqueles biscoitos que o senhor gost...

_Não vai fazer nada! _ rosnou o Dr. Sally olhou para ele, chocada e confusa.

_Fique aqui e não faça nenhum barulho até a visita ir embora _ disse ele _ Vou receber alguém muito importante e não quero que me envergonhe com suas perguntas idiotas nem que derrame chá em cima de nós! _ virou-se e rodou para a porta, seguido de perto pela desesperada jovem :

_Por favor! Não vou dizer uma palavra, acredite em mim!_implorou _ Me dê só uma chance! Eu vou me comportar, prometo...

Ele deu um sorriso malvado:

_Pode apostar que vai. _ e fechou a porta na cara de Sally, fazendo-a recuar, atordoada, quase perdendo o equilíbrio por alguns segundos. O som de uma chave girando na fechadura acordou-a de seu estupor.

Ele a trancara em seu próprio quarto!

_NÃÃÃÃOO!!! _ esmurrou a porta em desespero _ Por favor, não me prenda aqui! ME deixe sair! Me deixe saiiiiir! Como é que eu vou ficar pronta pra conhecer alguém se o senhor não deixa?

_Cale a boca! Ou vou desmontar você pra construir alguma coisa quieta e útil! _ foi a resposta, já distante. Depois, silêncio. Soluçando, Sally apoiou a testa na porta e lentamente deslizou até o chão, aonde ficou de joelhos, o rosto enterrado nas mãos. Por que ele estava sempre tão zangado? Por que ela nunca podia ver ninguém nem se divertir? Havia feito alguma coisa tão horrível assim para viver trancafiada daquela maneira?

Talvez ela tivesse. Quantas vezes o mestre não gritara com ela por não agir da maneira que esperava?

"Você é um fardo nas minhas pobres costas..." "...garota ingrata, que não serve pra nada..." "Sua idiota, você quebrou..." "Até Igor, que é retardado, faria melhor que você..." "...não quero que me envergonhe com suas perguntas idiotas nem que derrame chá em cima de nós..." as censuras dele ecoavam em sua mente, zombando dela. Uma, em especial, se sobressaía, como um grito mais alto:

"Desperdicei meu tempo e meu precioso material em você; por direito deveria tê-la desmanchado, mas não fiz porque tenho pena."

Apoiou as costas na porta, fechando os olhos úmidos bem apertado e enterrando as unhas na palma das mãos. Pena. Era a única coisa que merecia.

_Queria que o senhor nunca tivesse me construído. _ murmurou, mais duas lágrimas correndo-lhe pelo rosto.

Abriu os olhos e fungou.

Sua visão borrada focou-se na janela. Já estava escurecendo e a torre mal podia ser vista, mas ela nem notou. Levantou-se devagarinho, foi até a janela, abriu-a e olhou para baixo.

A luz fraca de um lampião iluminava a calçada lá embaixo. Esta era formada por blocos de pedra dispostos em círculos concêntricos. Do alto da torre, Sally só conseguia visualizar um desenho espiralado, que parecia hipnotizá-la, uma solução segura para seu tormento.

Talvez fosse o melhor a fazer; ela não servia para nada, mesmo. Ao menos, se morresse, o Dr. poderia usar seus pedaços para fazer alguma coisa melhor. Talvez até consertasse o que havia de errado nela: se tornaria mais inteligente e não teria mais sonhos impossíveis. Finalmente seriam felizes juntos.

Ergueu os olhos para a torre e fitou-a por um instante. Nunca saberia como era o Rei Abóbora... mas, de qualquer maneira nunca iria descobrir ficando trancada ali o tempo todo.

Fechou os olhos e respirou fundo, tomando impulso. Mas de repente parou, desequilibrando-se e soltando um guincho. Uma coisa horrível lhe ocorrera: e se não morresse na queda? Seus membros continuavam vivos e se mexiam mesmo quando estavam separados do seu corpo. E se continuasse viva mesmo depois de se arrebentar lá em baixo? Estremeceu ao imaginar seus pedaços se agitando impotentes no chão. Se os Halloweeners eram tão cruéis como o mestre dizia, no mínimo poriam fogo nela; ou então, simplesmente passariam sem lhe dar um olhar. Seus pedaços poderiam ficar ali, expostos ao vento e à chuva, até finalmente apodrecerem e morrerem. Recuou, trêmula. Seria pior até mesmo que ficar presa!

Então viu a agulha na escrivaninha e apanhou-a, junto com um carretel de linha. Botou os dois no bolso. Por via das dúvidas...

Preparou-se de novo para o salto, porém hesitou. De repente, o chão espiralado lá embaixo não parecia tão atraente. Batucou os dedos no peitoril, um pouco irritada por ser tão covarde. Como para ganhar tempo, foi até sua escrivaninha e tirou de lá uma pena meio careca, um vidro de tinta pela metade e um pedaço de papel amarelado. Com cuidado, acendeu uma vela e começou a escrever:

"Querido Amo

Sei que prometi nunca abandonar o senhor, mas não agüento mais. Espero que algum dia entenda. Se eu não sobreviver à queda, por favor, use meus pedaços para fazer uma Sally quieta e útil que faça o senhor feliz. Mas se eu escapar..." chupou pensativa a ponta da pena por um instante "...se eu escapar, por favor esqueça-se de mim e me deixe viver. De um jeito ou de outro, será melhor para nós dois.

Perdoe me,

Sally.

P.S: Tem sopa na geladeira. Não está temperada.

P.P.S: Não consegui tirar as manchas de ácido do seu guarda-pó favorito. Desculpe. Espero que a nova Sally consiga."

Colocou a carta no travesseiro e caminhou em direção à janela. Então, apoiou as mãos no parapeito, fechou os olhos e...

E a campainha tocou. Sally pestanejou, como se tivesse acordado de um pesadelo e olhou para baixo. Do ângulo em que sua janela estava, não podia ver quem era, mas só podia ser a tão falada visita de seu mestre. Ouviu a cadeira de rodas descendo pela rampa e passando pela porta do quarto. A campainha tocou de novo.

_Está aberta! _ o velho gritou. Fez-se silêncio, depois ele falou de novo, num tom de voz bem diferente:

_Jack Skellington! Aqui em cima, rapaz!

Sally, que já estava com o ouvido colado na porta (tendo esquecido temporariamente seus planos suicidas), quase arquejou de surpresa. Jack Skellington? O próprio Jack Skellington estava ali? Claro, bobinha! O mestre disse que ia receber alguém importante. Quem seria mais importante do que o Rei Abóbora?

_Boa noite, doutor! _ exclamou uma voz jovial que fez seu coração de boneca pular _ Desculpe a demora, é que o Prefeito me prendeu lá na Prefeitura pra conversar.

_O bom e velho prefeito _ o cientista respondeu com falsa jovialidade _

Entusiasmado como sempre pelo seu trabalho. Mas suba, Jack. Quer um pouco de chá?

_Agora não, obrigado. _ a voz de Jack ia ficando mais alta à medida que subia a rampa _ Bem doutor, temos que ver aqueles projetos. Mas na verdade, eu vim principalmente pra abusar do senhor.

_Pra abusar de mim? _ o velho repetiu, surpreso.

_É. Eu gostaria de dar uma olhada em sua biblioteca, se possível.

_Ah.

Sally bebia as palavras de Jack, apaixonada pelo som de sua voz. Pelo que diziam dele, deveria ter uma voz horrível, bem de acordo para alguém que matava suas vítimas de medo. Mas em vez disso, era a coisa mais doce e suave que ouvira em seus oito meses de vida. Seu quarto tristonho parecia subitamente quente e comfortável, e a voz do mestre parecia tão fraca e mesquinha enquanto a do Rei envolvia a boneca como uma carícia. Como a voz de um... anjo. Piscou, confusa. O que era um anjo? Abanou a cabeça e pressionou-a contra a porta.

_Ora, Jack, me sentirei honrado em lhe mostrar minha biblioteca _ o cientista falou, num tom forçado _ Mas receio que vá achá-la pobre, em comparação com a sua. Eu não disponho de romances nem das outras coisas que você gosta; apenas livros técnicos.

Os dois homens estavam na frente da porta agora. Sally espiou pelo buraco da fechadura. Se conseguisse ao menos ver o rosto de Jack... Alguém que tinha uma voz tão gentil não podia ser tão ruim. Mas não conseguiu ver nada, pois a chave fora deixada na fechadura. Reprimiu um suspiro de frustração.

_É justamente o que preciso. _ a voz do Rei soava animada _ Realmente a minha biblioteca tem muita coisa de ficção, mas carece de livros técnicos. Especialmente sobre ervas.

_Quer fazer uma poção?

_Mais ou menos. Entre outras coisas, estou procurando por algo que me faça dormir.

Sally arregalou os olhos. Então estava certa ao achar que ele não conseguia dormir! Pobre Jack.

_Você sofre de insônia?

_Sofro _ Jack suspirou _ Muito trabalho e stress, eu acho, e todo mundo precisando de mim e me perguntando coisas... Todas as noites volto pra casa ansioso por uma boa noite de sono, mas acabo me revirando na cama. Já tentei de tudo: leite quente de morcego, exercícios de relaxamento, até ler a papelada do Prefeito. _ deu uma risadinha, porém desanimou de novo _ Mas nada funciona.

_Humm. Já tentou Erva Moura Letal?

_Não. Já ouvi falar, é claro, acho que não há quem não conheça. Cresce no cemitério. Mas não é veneno?

_Sim, é veneno... para quem está vivo. Mas nós já morremos, não é mesmo? _ o velho deu uma risada desagradável _ O pior que pode acontecer se você tomar é acordar com uma bela dor de cabeça, e mesmo assim só se usar uma dose muito forte. Pode tomá-la no chá ou misturar com a comida; mas, como o cheiro e gosto não são muito agradáveis, sugiro que acrescente alguma coisa de sabor bem forte. Bafo de sapo, por exemplo.

Sally fez uma careta. O Mestre adorava bafo de sapo e vivia exigindo-o em suas sopas, mas o cheiro lhe dava náuseas. Parece que Sua Majestade também não gostava, porque o Dr. acrescentou:

_Claro que existem outras ervas que pode usar, Jack. Mas nenhuma delas funciona tão bem quanto Erva Moura Letal.

Conversaram mais um pouco, depois o cientist sugeriu que fossem até a biblioteca: poderiam ver os tais projetos mais tarde. As vozes morreram na distância, indicando que haviam subido. Sally sentou-se de costas para a porta, fitando o chão frustrada. Droga.

Por acaso, seus olhos caíram sobre a carta suicida, que acidentalmente derrubara no chão na sua pressa de ouvir a conversa. Seu rosto se iluminou. Boa idéia! Agachou-se, inspecionando a parte debaixo da porta. Havia uma fenda entre esta e o chão, não muito larga, mas devia ser o bastante para permitir que a chave passasse. Estendeu o braço para pegar o papel, mas parou de repente.

Não era direito. Talvez o amo tivesse alguma boa razão para que ela não visse Jack Skellington. Talvez este fosse realmente mau; talvez a matasse ou ferisse o doutor, se a pegasse espiando-o. Sally estremeceu.

E, mesmo se conseguisse vê-lo e depois voltasse para o quarto sem ser notada, como ia se trancar de novo? Quando o dr. voltasse para soltá-la, acharia a porta destrancada e veria que ela havia desobedecido! Ficaria furioso e nunca mais confiaria nela.

Mas ele já não confiava nela mesmo, ou não a teria trancado no quarto. Não precisava ficar muito tempo: só uma olhadinha e iria embora. Não incomodaria o Rei, por isso o mestre não poderia dizer nada. E, mesmo se dissesse -- olhou para a janela e engoliu em seco --ela não estaria mais lá para ouvir. Então o que tinha a perder?

Olhou de novo para o papel. A tentação venceu.

Rápida porém cuidadosamente, enfiou o papel sob a porta, certificando-se de que este estava sob a fechadura. Entre os seus parcos pertences, achou um pauzinho pontudo que usava para limpar as unhas. Introduziu o pauzinho na fechadura e empurrou. Um tinido metálico anunciou a queda da chave. Retesou-se por um instante, temendo que alguém tivesse ouvido, depois soltou a respiração e puxou o papel. Sentiu um leve peso na outra ponta! Isso! Ou... não. A fenda não era larga o bastante, e a chave ficou presa. Oh não, não agora que estava tão perto! Deu um puxão mais forte, mas isso apenas rasgou o papel. Desesperadamente, tentou tirar a chave com o pauzinho, mas este era muito frágil e partiu-se. Mas, finalmente, com a ajuda de uma tesoura enferrujada, conseguiu tirar a chave.

Estava livre.


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