2012 escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 60
E não olhe para trás




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No capítulo anterior, Carmen decidiu pedir a Tonico para que fugisse com sua esposa e levassem Fabinho com eles. Assim pelo menos ele poderia se salvar.

13:30

Fazia algumas horas que ela estava se debatendo tentando abrir aquele cofre sem nenhum sucesso. Carmen tentou algumas combinações e ao ver que aquilo não estava adiantando, tentou arremessar vários objetos pesados contra o cofre, também sem sucesso nenhum. Usar a caminhonete do caseiro tinha sido mesmo uma decisão acertada. Se ela dependesse de conseguir arrombar aquele cofre para conseguir um carro, tudo estaria perdido.

– Porcaria, eu tenho que tentar outra coisa, qualquer coisa! E se eu usar uma... deixa eu ver... pá? Enxada? No depósito de ferramentas deve ter alguma coisa!

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Convencer Cotinha a fazer aquilo tinha sido mais fácil do que ele imaginou. Quando ela viu o menino na sua frente, olhando-a com aquele rostinho ingênuo, seu coração derreteu-se e ela resolveu esquecer um pouco sua dor. Realmente, seria um pecado deixar o pobrezinho morrer sem nenhuma chance de se salvar. E quando ele a chamou de mãe, ela não teve mais dúvidas.

Tonico foi arrumando suas ferramentas porque não queria deixar nada para trás. Ele tirou os cabos das enxadas para poupar espaço, esperando conseguir outros novos quando chegasse ao novo lugar. Quem sabe ele não poderia conseguir outro trabalho? Com ferramentas a mão, seria mais fácil.

Cotinha arrumava todas as roupas do casal, objetos pessoais e até algumas coisas do Chico para guardar de lembrança. Fotos, brinquedos, tudo o que podia ser carregado. A caminhonete era grande e permitia levar boa quantidade de bagagem.

Fabinho correu para o terreiro e ficou brincando com as galinhas e ela perguntou ao marido.

– E a moça? Vai ficá pra trás?
– Ela qué tentá sarvá os pais dela.

Cotinha colocou as mãos na cintura e encarou o marido com cara de brava.

– Lá no Grotão da Mata? Arriégua, homi! I ocê deixô?
– É qui ela num qué i simbora sem a famia...

Ela balançou a cabeça.

– A coitada num vai consegui chegá lá di jeito nenhum! Vai si perdê no meio do caminho! Nóis tem qui falá cum ela!
– E a famia dela? Vamo deixá eles pra trás?
– I tem otro jeito? Nóis num pode i lá pro Grotão, vai atrasá muito e eu num sei se eles vão querê vim cum nóis.
– Num vão memo i podem até mandá nóis pra cadeia pru causo da caminhonete!
– E ela sozinha num vai consegui di jeito nenhum. Intão num dá pra fazê nadica di nada!
– Ocê tem razão, muié!

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– Aaaiii! Que droga! – ela gritou ao ferir suas mãos tentando abrir o cofre com o pé de cabra. Aquilo parecia tão fácil nos filmes!

Havia muitas ferramentas espalhadas pelo chão. Pás, enxadas, martelos, alicates de vários tipos e tamanhos, talhadeiras, marretas, machados e pés de cabra. Nenhuma delas tinha servido para brir aquele maldito cofre. Do que era feita aquela coisa afinal?

Desanimada, ela sentou-se no chão tentando pensar em outra forma de conseguir um carro. E se alugasse um? Aquilo podia funcionar. O melhor mesmo era que sua família voltasse imediatamente, mas seus pais não queriam sequer atendê-la no telefone. Ela tentava ligar várias vezes nos celulares dos seus pais e dos seus tios e nada. Felipe até chegou a atendê-la, mas não quis passar nenhum recado para o seu pai e no fim acabou desligando para não ter que falar mais com ela. Ir até eles era a única solução que ela conseguia enxergar.

– Acho que lá na vila eu vou poder alugar um carro... só que é tão longe! E se eu pedir carona pra alguém? É isso que eu vou fazer!

O chão tremeu levemente, derrubando alguns objetos. Nada de mais aconteceu e ela foi até a janela do escritório. O fluxo de emissários tinha aumentado bastante e ela reparou que o portal estava diferente, parecia mais ativo e também maior. Aquilo indicava que o fim estava quase próximo e ela não podia perder tempo.

– É isso aí, eu tenho que correr!
– Correr pra onde, pirralha? Por acaso você tem merda na cabeça?
– Heim? Você? Olha, eu fiz o que você falou, tá? Guardei as passagens e agora o Fabinho vai pro Mato Grosso com os pais do Chico.
– E você vai ficar pra trás e dar uma de heroína?
– Não posso deixar minha família!
– Mas também não pode fazer mais nada por eles. Quando é que você vai entender isso? Para eles acabou, fim da linha!
– Não! Eu não vou deixar, tem que ter um jeito! Eu consigo, sei que consigo! Só preciso chegar lá, preciso de um carro!

D. Morte balançou a cabeça e falou com a voz desanimada.

– Se for esse o problema, eu posso te levar até eles.

Os olhos da Carmen se iluminaram

– Jura? Pode mesmo? Nossa, obrigada!
– Mas fique sabendo que não adiantará de nada.
– Por que não? Eu vou convencê-los e a gente vai voltar! Vai dar certo sim!

Um tapa acertou o rosto da Carmem em cheio e D. Morte voltou a falar segurando o seu rosto com força e encarando-a furiosa.

– Você teve vários meses para convencer sua família e até agora não conseguiu nada. O que te faz pensar que irá convencê-los em algumas horas?
– Então eles vão morrer?
– Sim, eles vão morrer. Todos que foram para aquela fazenda vão morrer.
– Por favor, não faz isso! Eles são a minha família! – algumas lágrimas escorreram dos seus olhos, molhando a mão da morte. Aquilo fez com que ela soltasse o rosto da moça imediatamente.
– Eles escolheram o próprio caminho. As pessoas são livres para semear, mas a colheita é sempre obrigatória. Eu não posso fazer mais nada por eles.
– Que droga! – ela gritou furiosa. – Você tem sempre que levar todo mundo! Primeiro minha amiga, depois os pais do Cascão, o Chico... e agora quer levar minha família inteira?

Carmen andava de um lado para o outro, gritando furiosa.

– Você já vai levar milhões de pessoas, não vai? Não tá satisfeita? Tem que levar minha família também?

Outro tapa acertou seu rosto, fazendo com que Carmen se calasse.

– Garota burra! Acha mesmo que eu faço isso por diversão? – a morte gritou furiosa. – acha que eu gosto de matar as pessoas e causar sofrimento aos que ficam? Pensa que é fácil pra mim?
– Então não faça! Arruma outro trabalho, faça qualquer coisa! Você não é obrigada a levar ninguém!
– Não é assim que as coisas funcionam, pirralha! Eu aceitei essa missão quando os primeiros seres humanos surgiram na Terra e devo levá-la até o fim! Não posso abandonar esse trabalho no meio do caminho!
– Mas pode poupar as pessoas, não pode?

Ela jogou a foice no chão num gesto brusco.

– Por que as pessoas não entendem que só estou fazendo o meu trabalho? Eu não sou nenhum monstro! Não sou uma aberração que leva as pessoas por prazer! Não sou nada disso!

Carmen foi se acalmando aos poucos e sentou-se no sofá do escritório.

– Eu sei que não... – ela falou fazendo com que a morte voltase a olhá-la. – Desculpa... é que tudo isso dói demais! Dói perder pessoas que amamos! Dói saber que nunca mais vamos vê-las! Você não entende? É difícil pra nós!
– A morte de fato não existe. É só uma transição. Eu não mato ninguém, apenas encerro uma fase e inicio outra. O espírito é imortal e continua sua jornada mesmo depois com a morte do corpo.
– Só que ninguém sabe disso. Quer dizer, muitos sabem mais ou menos, só que ninguém tem certeza! As pessoas acham que tudo acaba! Eu sei que não porque você me falou, mas nem todo mundo sabe!
– Vocês sofrem porque são tolos, porque se apegam demais uns aos outros. O apego gera todo esse sofrimento. Não vale a pena. As pessoas sempre vão embora, então por que perder tanto tempo e energia se apegando a elas, criando laços e sentimentos?
– Você é muito amarga, sabia? Vai acabar ficando sozinha desse jeito! Ninguém agüenta gente ranzinza!

D. Morte ergueu a mão para lhe dar mais um tapa e daquela vez Carmen segurou seu braço com força.

– Tá achando ruim, é? Eu falei a verdade!
– Sua tonta! Você não sabe nada sobre a vida e quer me dar lições? Primeiro cresça, evolua e só então venha tentar me ensinar alguma coisa!
– Eu não quero te ensinar nada, só quero salvar minha família! Mesmo que eu morra, pelo menos tentei!

Ela soltou seu braço da mão da moça e falou com a voz mais branda.

– E você acha mesmo que sua morte vai valer de alguma coisa? Pensa vai beneficiar alguém? Sua tonta, se você morrer, o mundo vai continuar girando do mesmo jeito! Você será apenas mais uma entre os milhões que serão levados nos próximos dias, nem melhor nem pior!
– ...
– Deixe de ser burra! Não queira ser a salvadora de ninguém! Especialmente de pessoas que não querem se salvar! Não perca seu tempo com quem já está condenado. Ao invés disso, vá cuidar do seu primo! Se você morrer, ele não terá mais nenhum parente no mundo! Parou pra pensar nisso?
– Eu... não...
– Ele vai ficar sozinho entre estranhos. Mesmo que seja bem tratado, nunca será a mesma coisa. Esse menino acha que você irá encontrá-lo, confia em você. Se quer mesmo fazer algo de bom nessa sua porcaria de vida, então fuja e cuide dele. Viva e procure aproveitar sua vida, faça coisas úteis. Morta você não servirá para nada.

Ela se recompôs e foi pegar sua foice que estava caída no chão.

– Você terá mais uma chance para se salvar, só mais uma chance. Depois disso, você terá que arcar com as conseqüências da sua escolha. Você é quem sabe.
– A-acho que sei...

Antes da morte ir embora, Carmen ainda quis saber de mais alguma coisa.

– Escuta... Você não é a morte propriamente dita, é?
– Como? – ela voltou-se espantada com a pergunta.
– Você disse que a morte não existe.
– Não da forma como vocês pensam...
– Então você não é a morte. Não como a gente pensa...
– Onde você quer chegar pirralha?
– Quem é você de verdade?

Aquela pergunta foi como um raio caindo aos seus pés. Aquela garota queria mesmo saber quem ela era?

– Você tem um nome? Todo mundo tem um nome. Qual é o seu? As pessoas têm medo de você porque não te conhecem. Por que não deixa que elas te conheçam?

D. Morte olhou para Carmen por um tempo, como que pensando em alguma coisa e por fim respondeu.

– Arrume suas coisas. Você tem pouco mais de meia hora. Depois disso, aproveite sua última chance para fugir daqui. – e desapareceu dali sem falar mais nada.
– Que coisa! Custava ela ter me respondido? Aff! Ih, só meia hora?! Tenho que correr! Ai meu santo!

Parte dela não queria ir embora, não sem sua família. Aquilo parecia tão egoísta e cruel! Mas se D. Morte estava certa, não havia mais nada que ela pudesse fazer para salvá-los. Seria justo ela morrer sendo que tinha uma chance de se salvar? Sua morte não ia beneficiar ninguém.

Carmen pegou uma grande mala e foi jogando ali tudo o que pode. Ela corria de um lado para outro freneticamente, procurando reunir os itens mais úteis e importantes. Não dava para pensar muito. Quando a mala estava bem cheia, ela fechou com muita dificuldade e pegou sua mochila de sobrevivência e foi para a sala levando tudo.

– Tá bom, e o que eu faço agora? Deixa eu ver... será que esqueci alguma coisa? – sem saber por que estava fazendo aquilo, ela voltou correndo para o andar de cima e ao passar perto do escritório, viu que a porta do cofre estava aberta.

Como aquilo tinha acontecido? Ela não fazia a menor idéia. Dentro do cofre tinha as chaves dos carros, muito dinheiro e jóias da sua mãe. Sem pensar no que estava fazendo, ela foi tirando tudo dali de dentro, deixando somente alguns documentos que não iam ter utilidade nenhuma e levou tudo de volta para a sala, colocando dentro da sua bolsa. Na mesa da sala, tinha uma foto com a família que ela também pegou e guardou como lembrança.

A campainha tocou, pegando-a de surpresa. Quando ela foi atender pensando que daquela vez era sim o caseiro, Carmen levou um susto ao se deparar com Tonico e Cotinha.

– O quê? Vocês ainda não foram?
– Nóis num podia deixá ocê pra trás. – ele respondeu. – Moça, ocê sabe qui num vai dá pra buscá sua famia lá no Grotão.
– Vem cum nóis, minina. – Cotinha pediu. – Ocê ainda podi si sarvá!
– Eu não queria deixar minha família pra trás, eu juro! Não queria mesmo!
– Nóis sabe disso. Vamo simbora, a caminhonete tá lá fora isperando.
– I qui Deus cuide da sua famia pruquê nóis num pode fazê mais nada. – Cotinha completou.

Carmen respirou fundo, apertou os olhos com força e tomou a decisão final. Ela queria viver, continuar sua vida e cuidar do Fabinho. Era o que ela queria.

– Então vamos, não podemos perder mais tempo!


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