2012 escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 59
Medidas drásticas




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No capítulo anterior, Carmen teve um grande desentendimento com sua família e acabou ficando de castigo sem poder ir a festa do prefeito.

20 DE JULHO DE 2012

07:00 da manhã

Carmen observava os criados colocando a bagagem no carro da família. Mesmo sendo apenas um fim de semana, sua mãe estava levando uma grande quantidade de roupas, sapatos, algumas jóias e maquiagem. Idem para suas tias. Elas ainda não tinham decidido quais roupas usar e por isso resolveram levar muitas para escolherem na hora.

Fabinho ainda dormia tranquilamente, ignorando toda a movimentação da sua família e Miriam fazia mil recomendações a Carmen.

- Nada de doces, você sabe como ele tem o estomago sensível! Só dê ele o que estiver nessa lista!
- Tá bom, tia...
- Tem certeza de que não seria melhor chamar a babá? Ainda há tempo.
- Não, deixa ela. Eu mesma cuido do Fabinho.
- E por favor, não leve o meu bebê para a casa daqueles mortos de fome! Eles devem ter milhões de doenças contagiosas que podem matar o pobrezinho.

“Eles são muito mais saudáveis do que você, sua vaca!” ela pensou tentando não esboçar nenhuma reação com tamanho preconceito.

- Não se preocupe, Mirian. – Sr. Frufru falou. – A casa desses mortos de fome fica longe daqui e as chaves dos carros estão muito bem guardadas no meu cofre.
- Ainda bem!

Eles sabiam que dificilmente Carmen iria querer andar a pé naquela estrada de terra levando o garoto. Logo, tudo estava resolvido.

Felipe e Luisa colocaram suas mochilas no carro e foram falar com a prima.

- Olha, se você pedir desculpas pro seu pai, ele ainda pode deixar você ir! – Felipe aconselhou.
- Eu não fiz nada de errado pra pedir desculpas. E eu também não quero ir pra essa festa idiota! O prefeito gasta todo o dinheiro do povo com essas besteiras e deixa o posto de saúde sem nem ao menos uma ambulância ou maquina de raio X!
(Luisa) – Deixa de ser boba, criatura! Desde quando você importa com essas coisas? O que o prefeito faz ou deixa de fazer com o dinheiro dessa cidade não é problema nosso!

Seus pais os chamaram e eles tiveram que entrar no carro decepcionados por não terem convencido aquela cabeça dura. Desde quando ela tinha resolvido ficar tão teimosa quanto a Mônica?

Ao ver que eles estavam mesmo decididos, o coração de Carmen apertou. Eles podiam ser o que fossem, mas era sua família.

- Pai, mãe... me escutem! Vocês não podem ir, é perigoso!
- Querida, o castigo é só para você, não para o resto da família! E não vamos ficar enfurnados dentro de casa sem ir a lugar nenhum só porque você está vendo perigos imaginários!
- Por acaso esses terremotos são imaginários?

Sr. Frufru resolveu colocar um ponto final naquela besteira.

- O prefeito me disse que não houve sequer um único tremor na região onde fica sua fazenda. Estamos indo para um lugar muito seguro! Agora, só para dizer que eu não sou bom pai, se você pedir desculpas por tudo o que fez e prometer que será boa filha, eu deixarei você ir.

Ela fechou a cara e apertou os lábios com força. Pedir desculpas estava fora de questão. Será que ele ia se desculpar pelo tapa que tinha dado em seu rosto? Claro que não. Então por que ela tinha que pedir desculpa sendo que não tinha feito nada de errado? Ao ver que a filha não pretendia mudar de idéia, ele deu de ombros e entrou no carro falando.

- Se você quer assim, então eu lavo minhas mãos. Todo mundo aqui é testemunha de que eu tentei.

Os três carros saíram dali um a um e somente Felipe e Luisa deram para ela um tchau disfarçado. Ela olhava todos se afastando com lágrimas nos olhos. Aquela podia ser a última vez que ela ia ver sua família.

- Por favor, voltem! Não façam isso! – Carmen gritou como um último recurso. Nenhum dos carros parou e ela caiu de joelhos, totalmente desolada e impotente para fazer qualquer coisa.

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Às vezes, olhar para o rosto da D. Morte era como olhar uma parede. Era impossível saber o que ela estava sentindo ou pensando tamanha a frieza da sua fisionomia. Ela acompanhava os movimentos da loirinha através de uma tela luminosa que ela tinha feito no ar com sua foice sem dizer uma única palavra, apenas observava suas dificuldades como que analisando cada movimento dela.

“O que o Serafim está pretendendo afinal de contas?” ela pensou coçando levemente o queixo. Por mais que perguntasse, o anjo não lhe respondia nada mesmo sob pena de ela arrancar suas asas fora. Como sabia que não ia conseguir nada pela força bruta, ela resolveu agir pela inteligência, analisando aquela humana cuidadosamente para tentar entender por que ela tinha sido colocada em seu caminho.

Ao puxar a manga do seu vestido, ela viu no seu braço a marca da mordida que Carmen tinha feito semanas atrás. A impressão dos dentes da loira era praticamente perfeita e aquilo também lhe intrigava muito. Já era para aquela marca ter desaparecido no mesmo dia e no entanto, ainda estava bem visível sob sua pele excessivamente branca. Que coisa mais curiosa... Ela se lembrava de ter olhado o pulso da Carmen e visto nele a marca das suas unhas que ela tinha feito quando segurou seu braço com força. Uma tinha marcado a outra e ela não entendia o propósito daquilo.

A morte voltou a olhar para a tela e viu que Carmen andava de um lado para o outro como barata tonta, sem saber o que fazer e como agir. O menino tinha acordado e estava perto dela, olhando toda aquela agitação sem entender nada. Pobre criança... Ele tinha ter muito tempo de vida pela frente e poderia acabar morrendo porque seus pais eram uns ignorantes. Seria uma pena ver a vida dele desperdiçada sem necessidade nenhuma.

Quanto a Carmen, até que ela não era um desperdício de oxigênio como D. Morte pensou no início. A garota tinha coração, se importava com as pessoas e de vez em quando, podia até ser inteligente.

“Ah, céus! Ela é tonta mesmo! Sabe o que fazer e continua andando em círculos que nem cachorro correndo atrás do próprio rabo. Se eu não fizer nada, essa pirralha vai acabar morrendo.”

Ajudar Carmen e seu primo era muito fácil. Bastava levá-los até onde seus amigos estavam. D. Morte podia fazer isso sem nenhum esforço. Mas não, aquele não era o caminho certo. Os humanos precisavam aprender por si mesmos e facilitar as coisas para ela não ia ajudá-la. Era preciso que Carmen decidisse por si mesma. A única coisa que D. Morte podia fazer era clarear um pouco suas idéias para ajudá-la a tomar a decisão e mesmo assim precisava respeitar o livre arbítrio da moça.

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- O que eu faço? O quê? Ai meu santo! Não consigo nem pensar direito! E todo mundo foi lá praquele fim de mundo e eu não posso fazer nada!

Carmen andava de um lado para outro falando sozinha, chorando e lamentando o destino da sua família. Fabinho olhava tudo sentado na cama e segurando um dos seus carrinhos como que tentando se proteger de algum perigo invisível. Por fim ele não agüentou e começou a chorar também.

- Carminha, não chora!

Ver o primo chorando fez com que a moça voltasse a realidade. Agir daquele jeito não estava ajudando em nada e ainda estava deixando o pobrezinho com medo. Ela enxugou as lágrimas, engoliu o choro e abraçou o menino dizendo.

- Calma, xodozinho! Eu estou bem, tá? Fica calmo.
- Então promete que não vai chorar? Eu não gosto de ver você triste!
- Prometo, meu lindinho. Mas você também não pode chorar, senão eu fico triste e choro!
- Tá bom!

O menino se acalmou e foi brincar com seus brinquedos. Pobrezinho! Ele nem fazia idéia do que estava para acontecer e ela não podia fazer nada. Ou podia? Ela foi até o livro onde estavam as passagens e as segurou em suas mãos. O vôo estava marcado para o dia seguinte, às oito da noite. Ela não era muito boa em cálculos, mas após fazer algumas contas imaginou que ainda daria tempo para sair dali e chegar ao aeroporto a tempo.

“Mas como eu vou mandar ele pro aeroporto? Não posso deixar ele ir sozinho de jeito nenhum! A não ser...” uma idéia surgiu, talvez a melhor que ela já teve em sua vida. Ele não podia ir sozinho e ela não podia levá-lo porque não sabia como chegar a cidade de carro e nem mesmo de ônibus. Mas sabia de alguém que podia fazer isso e ela não perdeu tempo.

- Muito bem, Fabinho! E se a gente fizesse uma brincadeira?

Ele se interessou.

- Que brincadeira?
- Nós vamos brincar de esconde-esconde com nossos pais! Vai ser muito engraçado!
- A mamãe e o papai não gostam de brincar.
- Eles vão gostar agora, você vai ver. Primeiro, eu tenho que te esconder muito bem pra eles procurar. Deixa eu ver...

Ela fez um grande esforço mental, escreveu algumas coisas numa folha de papel e começou a colocar o plano em prática. Primeiro, eles iam precisar de um bom carro para chegarem até o aeroporto. Não dava para confiar nos ônibus.

- Ai, meleca! O papai escondeu as chaves no cofre, e agora? Pensa, Carmen, pensa!
- A gente vai de carro?
- Vai sim, xodozinho! Mas o papai escondeu as chaves!
- Ele também tá brincando?
- Tá. Não é engraçado? Só que eu não sei como pegar as chaves! Sem chave, o carro não anda! E eu não sei o segredo do cofre!

D. Morte deu um sorriso e colocou uma das mãos sobre a cabeça de Carmen. O rosto dela se iluminou.

- Ah, peraí! Tem a caminhonete que o caseiro usa pra fazer compras! Que boa idéia! O papai não deve ter guardado a chave dela.

Ela correu até a casa onde o caseiro guardava o veículo. Não tinha ninguém ali porque seu pai havia dispensado a todos os criados naquele fim de semana. Como o homem tinha seu próprio carro, ele deve ter saído com a família e deixado a caminhonete para trás. O veículo estava na garagem, mas sem as chaves que deviam estar dentro de casa. Só que a casa também estava trancada e ela não sabia o que fazer para entrar.

- Eu tenho que entrar aí de qualquer jeito! Deixa eu ver... – ela não sabia arrombar portas e deu a volta pela casa procurando um jeito de entrar. Como não encontrou nenhum e estava desesperada, Carmen acabou tomando uma medida drástica.

As janelas da casa eram persianas de madeira, naquele estilo antigo usado em casas do interior. Como não pareciam ser muito fortes, ela pegou a maior pedra que pode carregar e arremessou contra a janela. A madeira cedeu um pouco, mas não foi o suficiente e Carmen teve que repetir aquilo pelo menos uma seis vezes até conseguir arrombar a janela e poder entrar na casa.

- Agora onde ele guarda as chaves?

Ela procurou freneticamente por todas as gavetas e armários, com medo de o caseiro ter levado as chaves com ele. Aquilo ia estragar tudo. Ela só conseguiu encontrar as chaves depois de revirar a casa inteira e descobrir que elas estavam em cima da geladeira. Por que alguém colocaria as chaves ali? Aquilo não interessava.

Após um teste, ela viu que eram mesmo as chaves da caminhonete e tirou o veiculo dali levando até em frente a casa. Em seu quarto, Fabinho estava assistindo alguns desenhos quando ela chegou. Como o menino parecia tranqüilo, ela foi até o quarto dele para arrumar suas coisas. Roupas, sapatos, muito agasalho, cobertores e alguns brinquedos. As duas malas tinham ficado enormes. Ela também colocou ali seus remédios e inaladores.

Com aquilo, ele ia estar provido de roupa e agasalho por um bom tempo. Faltava algum dinheiro para qualquer imprevisto e Carmen sabia muito bem onde conseguir. No quarto dos seus pais, em uma pequena maleta escondida no armário, ela encontrou várias notas de cem e cinqüenta. A maior parte do dinheiro seu pai guardava num cofre, mas ele sempre deixava uma boa quantia no caso de sua esposa precisar de algo.

- Deixa eu ver... sim, vai dar. Tem bastante! Sinto muito, papai! Desculpa!

Ao voltar para seu quarto, ela deu uma boa olhada no primo. Haveria alguma chance de alguém acreditar que ele era filho de Tonico e Cotinha? Ele era muito branquinho e tinha os cabelos castanhos, diferente do casal que tinha pele queimada pelo sol e cabelos bem pretos. Aquilo podia ser um problema.

- Hum... e se tivesse um jeito de deixar ele  mais moreninho e com o cabelo preto? Ah, peraí! Claro que tem, que coisa!

No meio dos seus cosméticos, Camen encontrou um spray bronzeador que ela tinha comprado para o caso de precisar simular um belo bronzeado sem ter que ir a piscina.

- Ih, os resultados só aparecem de quatro a seis horas depois. Ah, tudo bem! O vôo sai as oito da noite, então até lá deu bastante tempo. Agora faltam os cabelos dele. Será que vou ter que tingir? Eu nem sei como fazer isso!

Ela não precisava saber tingir os cabelos. A mãe de Felipe e Luisa usava uma espécie de loção para escurecer os fios de cabelos que podia servir para o Fabinho. Primeiro ela lavou os cabelos dele com o shampoo e após duas aplicações, seu cabelo ficou num castanho bem escuro, quase preto. O suficiente para não chamar muita atenção. Depois ela aplixou nele o spray. O menino achava graça daquilo tudo e não fazia muitas perguntas.

- Heim? Quem será agora? – ela perguntou ao ouvir o som da campainha e teve medo de ser o caseiro que tinha voltado e percebido o arrombamento da sua casa. Aquilo ia complicar muitas coisas. Mas para sua surpresa não era o caseiro.

Ao abrir a porta, ela deparou-se com Tonico que estava segurando o chapéu nas mãos.

- Seu Tonico!
- Dia, moça.

Ela suspirou de alivio e fez com que o homem entrasse.

- Eu queria mesmo falar com vocês.
- Oia, moça, eu vim aqui pra sabê onde fica esse tar di abrigo qui ocê falô.
- Você e sua esposa pretendem mesmo ir pra lá?
- Si eu consegui convencê ela... a Cotinha tá muito jururu cum a morte do Chico e num qué fazê mais nada! Ocê mi ajuda a convencê ela?
- Eu vou falar com ela sim, mas preciso da ajuda de vocês pra uma coisa. 

Os dois foram interrompidos quando Fabinho desceu as escadas com duas blusas nas mãos.

- Carminha, é pra vestir qual?
- Ara! O qui ocê feiz cum o minino? – Tonico perguntou ao ver que os cabelos dele estavam escuros e sua pele mais morena. Foi aí que Carmen explicou a ele todo o seu plano.

O homem escutava tudo em silêncio, morrendo de pena daquela moça.

- Por favor! Levem ele com vocês! Se depender dos pais dele, o coitadinho vai morrer sem chance nenhuma! Olha, eu tenho quatro passagens, leve com vocês e salvem suas vidas!
- I ocê? Num vai tamém?

Ela esperou até que Fabinho saísse da sala e respondeu se esforçando para conter o choro.

- E-eu não posso! Não quero deixar minha família para trás, não vou conseguir! O Fabinho é só uma criança, não pode decidir sozinho, então preciso que vocês levem ele daqui e peçam pros meus amigos tomarem conta dele. Eu vou ver se consigo encontrar meus pais pra gente fugir daqui.
- Onde seus pais tão?
- Foram pra um lugar chamado Grotão da Mata.
- Vixe Maria, moça! Esse lugar é longe dimais! Ocê num vai consegui achar lá não!
- Mas eu vou tentar de qualquer jeito, não posso deixar eles pra trás.

Carmen deu a ele uma pequena pasta de couro onde tinham passagens, documentos do Fabinho e todo o dinheiro que ela tinha pego no quarto dos seus pais e falou.

- O carro tá lá fora e tem bastante gasolina. Se precisar, podem abastecer. Tem muito dinheiro aí. Aí também tem o endereço do aeroporto, o vôo, tudo o que precisam saber. Também coloquei malas ali pros dois, eu não sei se vocês tem. Agora vão, por favor, e salvem o Fabinho!

Tonico hesitou bastante, sem saber se devia ou não aceitar aquela oferta. Carmen suplicou mais uma vez. 

- Se vocês não fizerem isso, ele vai morrer! Eu não sei dirigir nessa estrada e nunca vou conseguir levar ele pra cidade!
- Tá bão, moça. Eu vou cunversá cum a Cotinha e nóis leva ele embora. Fica cum Deus e brigado por tudo.

Quando Tonico foi sair com Fabinho, Carmen fez mil recomendações.

- Por favor, fique bem bonzinho e se comporte! Não se esqueça de chamar eles de papai e mamãe, tá?
- Por quê?
- Por que... er... é pra ninguém ver onde você tá escondendo, é isso! Você promete que vai fazer isso?
- Prometo. E você?
- Eu vou me esconder também, só que em outro lugar. Agora vai com o seu Tonico.

Após dar vários beijos e abraços no menino, os dois foram embora deixando-a sozinha e com o coração em pedaços.


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