2012 escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 55
Almoço em família




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No capítulo anterior, finalmente a turma pode embarcar definitivamente para o Mato grosso.

17 DE JULHO DE 2012

Cascão ficou surpreso ao abrir as trouxas que Ângelo tinha deixado com Licurgo e encontrar ali suas roupas e tênis.

- Ô Cascão, o que você trouxe nas suas malas? – Cebola perguntou surpreso ao ver que ali tinha roupas novas e muito boas. Não fazia sentido nenhum o sujinho tê-las deixado para trás.
- Sabe o que é... não tinha muito espaço na mala pros meus gibis, minhas coleções de figurinhas e nem meus bonequinhos... então eu tive que deixar umas roupas pra trás.

Cebola deu um tapa na própria testa, impressionado com a forma como seu amigo estabelecia as prioridades. Se bem que no fim aquilo acabou sendo bom. Se ele tivesse colocado todas suas roupas nas malas, elas teriam queimados junto com o carro e agora ele não teria nada para vestir.

Os dois foram separando as roupas para guardar e os olhos do rapaz se encheram de lágrimas quando ele viu que no meio havia uma caixa de tamanho médio cheio de isqueiros. Era a coleção de isqueiros promocionais do seu pai. Tinha uns de pizzarias, imobiliárias, restaurantes e até de um clube de rodeio. Angel deve ter achado aquilo perdido em algum lugar e colocou no meio das roupas para que ele pudesse ter uma lembrança do seu pai. Também havia ali um dos aventais da sua mãe, que até estava um pouco sujo e tinha um pouco do cheiro dela.

O anjo também tinha levado cobertores, dois travesseiros, um colchonete que Cascão usava quando ia acampar e alguns produtos de higiene como sabonetes, desodorantes, escova e pasta de dentes. Se antes ele estava preocupado por não ter sobrado mais nada para vestir, agora já podia ficar tranqüilo.

Como estava sozinho, Licurgo acomodou Cascão num quarto onde havia outros rapazes solteiros. Assim ele não ia tirar a privacidade das famílias dos seus amigos.

Mônica e Magali estavam dando uma volta pelo local. Inicialmente, elas pensaram que fosse apenas uma casa comum, onde todos teriam que ficar amontoados. Elas estavam enganadas. O “abrigo” que Licurgo havia providenciado era uma antiga pousada que tinha falido e ele pode comprar por um preço razoável porque o dono estava desesperado para pagar as dividas.

A pousada era grande, tinha muitos quartos e outros foram acrescentados ou adaptados para receber mais famílias. E o lugar tinha uma grande área verde já que o objetivo da pousada era atender ecoturistas interessados em ficar no meio da natureza. Havia um bom rio que cortava a propriedade, um lago e a pousada era auto-suficiente em se tratando de água.

- Será que eles vão demorar muito? Já tô ficando preocupada! – Magali falou torcendo as mãos.
- Calminha aí, Magá! Daqui a pouco você vai estar apertando as bochechas do seu fofucho! Hahaha!
- Tomara que ele chegue logo, a cozinheira daqui é boa, mas você sabe...
- Sei sei... o seu Quinzinho cozinha muito melhor.
- Hum... mal posso esperar! Ai, minha barriga tá roncando! E agora?
- Agora você espera até a hora do almoço. Aqui não é igual lá no bairro que você podia comer o que quisesse a qualquer hora. A comida tá sendo racionada e a gente precisa economizar.

Magali entrou em desespero. Licurgo havia feito estoque e eles ainda estavam comprando mais mantimentos. Também havia uma grande horta que estava sendo cuidada pelos moradores e futuramente ele pretendia aumentar o espaço cultivado. Como ninguém sabia como as coisas iam ficar no futuro, a comida passou a ser racionada a fim de evitar desperdícios. E ali só tinha três refeições por dia, o que era muito pouco para alguém como Magali, que estava acostumada a comer várias vezes.

- Ai Mô! É mesmo o fim do mundo! O que eu faço? Vou morrer de fome! Me segura que eu vou desmaiar!

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De tudo o que tinha acontecido, pelo menos havia uma coisa boa. Por estar numa cidade do interior, Carmen podia dirigir para todos os lados mesmo sem ter carteira de motorista. Seu pai permitiu que ela usasse um dos carros contanto que não fosse para muito longe. Era uma forma de mantê-la distraída e sem aquela conversa de fim do mundo.

O radio tocava uma música suave e ela foi dirigindo sem rumo pela estrada de terra. Por causa da poeira, ela tinha fechado as janelas e ligado o ar condicionado. Fabinho ia no banco de trás brincando com um carrinho de bombeiro. O dia estava bonito e ela resolveu dar uma volta porque não agüentava mais ficar junto com a família. Felipe estava com a cabeça virada por causa da filha de um dos moradores do condomínio e só queria saber de fazer manobras para impressioná-la. Luiza começou um namoro com um playboy metido a astro do rock e os dois não desgrudavam. Eles nem levavam mais nada a sério e até achavam graça quando ela acordava cedo todos os dias para fazer caminhadas com a mochila nas costas.

- Ô Carminha, você tá esquentando a cabeça a toa! – Luísa falava todas as vezes que ela ia sair para as caminhadas e Felipe pensava do mesmo jeito.
- Deixa disso, a gente tá seguro aqui! Você não viu que até hoje a terra não deu nem uma tremidinha?

“A terra não deu nenhuma tremidinha! Tá bom, quero ver a cara deles quando a terra começar a tremer pra valer mesmo!”

Duas pessoas andando na estrada lhe chamou a atenção e ela reconheceu aquele rapaz que a tinha visto gritando com o emissário em cima do depósito de ferramentas. O rapaz certamente deve ter pensado que ela era louca.

Quando aquele carro bonito parou ao lado deles, inicialmente Tonico pensou que o motorista só queria alguma informação e ambos ficaram surpresos ao se depararem com aquela garota maluca da cidade.

- Tarde, moça. – ele cumprimentou - Ocê tá perdida?
- Heim? Não, a gente só tava passeando por aí. Pra onde vocês estão indo? Querem uma carona?

Os dois se olharam e Tonico respondeu.

- Gardecido, moça, mas num precisa não.

Chico não deixou de fazer uma pequena careta. Ainda faltava um bom pedaço de chão até sua casa. Carmen insistiu.

- Entrem aí, que coisa! Não me custa nada!

Para não fazerem uma desfeita, os dois acabaram entrando no carro. Até que a carona tinha vindo em boa hora já que o sol estava muito forte por ser meio dia e os dois estavam bem cansados.

- Pra chegá na nossa casa, é só ir direto. Num tem erro.
- Tá bom.
- Quar é o seu nome, mininu? – Chico perguntou ao Fabinho tentando ser gentil.
- É Fábio.
- Podem chamar de Fabinho. Ele gosta.
- Quantos ano ocê tem?

Ele mostrou cinco dedos e Carmen completou.

- Ele vai fazer seis anos em novembro.
- Ara, entonces tá virando um rapazinho! – Tonico falou sentindo-se mais a vontade. Apesar de ter um jeito de garota fresca e esnobe da cidade, Carmen até que parecia ser boa pessoa.
- Ó a nossa casa! Chegamo! – Chico anunciou apontando uma pequena propriedade com uma casa bem simples ali perto. Carmen estacionou ali perto e para ser gentil, Tonico ofereceu.
- Ocê num qué entrá um poco?
- Se puderem me dar um copo de água... eu tô com sede.
- Craro, moça! Vamo entrando! É casa di pobre, num repara não.

Cotinha ficou surpresa quando viu o marido e o filho saindo do carro junto com uma garota com jeito de patricinha. Um garoto desceu junto com ela e logo ficou fascinado com algumas galinhas que ciscavam ali perto.

- Ela é fia do dono da casa onde a gente trabaia e trouxe nóis di carona.
- Ara, brigada moça! – Cotinha agradeceu estendendo a mão a Carmen, que a cumprimentou sem acanhamento. – Vamo entrando.
- Obrigada, eu não quero incomodar.
- Num incomoda não. Eu tô fazendo o armoço. Quando esse dois chega, vem cum uma fome arretada!

Carmen seguiu a mulher até a cozinha, onde num fogão a lenha tinha várias panelas com a janta daquela noite. Ela nunca tinha visto um fogão a lenha de perto.

- Eu tô fazendo frango cum quiabo.
- Quiabo? O que é?

A mulher ficou surpresa e respondeu dando a ela uma caneca com água fresca.

- Quiabo é... é isso aqui, ó! – ela estendeu a Carmen um exemplar que ela não tinha usado no frango e a loira o examinou por um tempo.
- Acho que já vi, mas nunca comi não.
- Mais é bão dimais da conta, sô! Um frango cum quiabo, angu, arroiz e verdura é uma maravia.
- Ah...

O som das galinhas cacarejando no terreiro lhe chamou a atenção e Carmen foi olhar pela janela da cozinha. Era o Chico segurando uma das galinhas para mostrar a Fabinho, que afagava as penas da ave com os olhos brilhando. Aquilo era muito mais legal do que o seu caminhão de bombeiros.

- O nome dela é Gigi. Qué segurá um poco?
- Ela não morde?

Chico deu uma risada.

- Craro qui não, sô! Galinha num tem dente! Podi pegá qui ela é mansa.
- É levinha!

Carmen deu uma risada.

- Ele nunca pegou numa galinha antes. Minha tia não deixa ele pegar em nada, nem em gato, nem em cachorro.
- Num deixa? As criança tem qui tê contato cos bicho! O Chico passô a vida inteira mexendo cos animar, pegando na inxada, nadando no rio e andando discarço.
- Andar descalço? Quando o Fabinho anda descalço dentro de casa e em cima do tapete, minha tia quase morre do coração. Ela não deixa ele brincar ao ar livre sem a babá por perto, não pode tomar muito sol, nadar na piscina e outro dia ele quis provar uma laranja do pé e ela não deixou. Achou que tava sujo.
- Ara, qui bobage! As fruta daqui são mais limpa qui as da cidade! Sua tia num tá deixando o mininu sê criança! Pru quê ocê num fala cum ela?
- Porque ela não escuta ninguém. Nem mesmo o meu tio.

Carmen ficou olhando para o terreiro, vendo Fabinho brincando com Chico e correndo para todos os lados e continuou falando.

- Ela não gosta nem que ele brinca com as outras crianças. Pensa que ele vai pegar doenças ou que elas vão machucá-lo. A comida dele tem que ser rigorosamente controlada e ela proíbe de comer um monte de coisa. Quando eu vou dar doce para ele, tem que ser escondido senão ela vira uma onça.
- Vixe Maria!

Fabinho entrou na cozinha com Chico para tomar água e Cotinha viu que o menino era muito pálido e parecia bem cansado por causa da corrida. Claro, ele não devia estar acostumado a correr e brincar como as outras crianças.

- Oh! A madeira tá queimando!
- É ansim qui nóis faiz comida.
- Que cheiro bom! Nossa cozinheira não faz uma comida tão cheirosa assim!

Cotinha ficou inchada de orgulho ao imaginar que sua comida era melhor do que a de uma cozinheira que trabalhava para famílias ricas. Claro, tudo ali era feito com amor e capricho. Ela não fazia por mera obrigação e sim porque gostava de cozinhar e manter seu marido e filho bem alimentados. Ela acabou tendo uma idéia.

- Moça, pru quê oceis num armoça cum nóis hoje?

Carmen ficou sem jeito. O ambiente ali era muito diferente do que ela estava acostumada, bem informal e humilde.

- Eu não quero incomodar...
- Num incomoda não, moça. – Tonico falou entrando na cozinha. - Nóis é pobre, mais comida num farta. Acho qui os seus pais num vão armoçá im casa hoje, vão?

Ela foi pega desprevenida e não teve como recusar. Sua família tinha recebido um convite para almoçar na casa de um vereador e ela não pretendia comparecer. Era pouco provável que eles fossem sentir sua falta. Ultimamente, eles nem faziam mais questão da sua presença.

- Então eu aceito. O Fabinho tá certo, sua comida tem mesmo um cheiro muito bom!

A família pareceu ter ficado feliz e Tonico colocou mais duas cadeiras e dois pratos a mesa, para ela e para o menino. Fabinho andava pela casa brincando com os brinquedos antigos do Chico e Cotinha sorriu feliz por ter novamente uma criança correndo pela casa. Desde que perdeu sua filha, há sete anos atrás, ela nunca mais teve filhos e sabia que ainda ia levar muito tempo até que Chico lhe desse os tão sonhados netinhos. E Fabinho era mesmo um menino alegre e agitado, embora desse para ver que era meio reprimido por causa da superproteção da mãe.

Quando o almoço ficou pronto, todos se sentaram para almoçar. Apesar de ter mesmo bastante comida, Carmen colocou pouco no prato. Ao provar, no entanto, ela acabou colocando mais. Não era somente o cheiro da comida que estava bom. O gosto estava melhor ainda.

- Comida feita no fogão di lenha é muito mio, num acha? – Chico perguntou antes de colocar uma boa garfada na boca.
- É bom mesmo, tem um gosto diferente!
- É por isso qui eu num gosto di fogão a gás. Num é a merma coisa. – Cotinha falou orgulhosa da sua comida. – I intão? Tá mio qui a da sua cozinheira?
- Com certeza, não é Fabinho?
- Tá bom! – ele falou com a boca cheia e pela primeira vez em sua vida, não foi repreendido.

De sobremesa, Cotinha serviu doce de cidra. Enquanto comia, Carmen foi observando-os disfarçadamente. Eles riam, eram descontraídos e a relação entre pais e filho parecia ser muito mais próxima, amorosa e sem todo aquele formalismo que ela tinha com os seus pais.

As refeições em sua casa eram sempre requintadas, com pratos sofisticados e algumas vezes até exóticos. Tudo servido com talheres de prata, louça importada e sobre uma toalha ricamente bordada. Todos tinham que estar limpos e bem vestidos para se sentarem a mesa. Somente seus pais conversavam entre si. Jovens e crianças só falavam algo quando alguém lhes perguntava alguma coisa.

Para comer, as regras de etiqueta eram rigidamente observadas. Era preciso pegar nos talheres do jeito correto, mastigar de forma silenciosa, não fazer nenhum tipo de ruído ao tomar líquidos e cada movimento era supervisionado pelo olho critico da sua mãe, sempre lhe dando broncas pelas menores falhas. Tudo tinha que ser perfeito e bem sincronizado.

Ali não. Eles eram espontâneos, só comiam usando o garfo, ninguém se preocupava com faca. As conversas eram alegres e Chico podia participar sem nenhum constrangimento. Até Fabinho pode conversar também, coisa que ele normalmente não fazia quando se sentava a mesa, já que na maior parte das vezes ele comia em seu quarto sendo supervisionado pela babá. Na família Frufru, as crianças só se sentavam à mesa com os adultos depois de certa idade, quando tinham condições de aprenderem a se comportar. Ou então em algumas ocasiões especiais como natal e aniversários.

- Obrigada pelo almoço, estava bom demais!
- Di nada, moça. Quando ocê quiser, vem cumê com nóis!

Após se despedir da família, Carmen voltou ao carro e antes de dar a partida, ela gelou de medo ao ver alguns emissários sobrevoando a casa. Que droga! Será que aquela baranga não ia poupar nem aquela família? Sua vontade era a de descer do carro e espantá-los dali, mas ela logo mudou de idéia. Eles não podiam ver os emissários e com certeza iam pensar que ela era louca.
 
- Que foi, Carminha?
- Nada não, xodozinho. Vamos.

Ela deu partida no carro e saiu dali com o coração apertado. Pela primeira vez em sua vida ela viu o que era uma família de verdade e percebeu que a sua própria família era apenas uma farsa. Não havia nenhum sentimento, nenhum afeto. E justamente quando ela descobre que existe mesmo uma família feliz, vê que em pouco tempo eles poderiam ser mortos pela tragédia. A vida era mesmo complicada demais.


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