2012 escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 24
Um pequeno e leve despertar




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/279654/chapter/24

No capítulo anterior, Ângelo teve dificuldades em convencer seus amigos a mudarem de caminho. Toni, justo o que mais precisava mudar, foi o que se mostrou mais rebelde.

Fabinho estava sentado em um puff vendo um DVD de desenho que Carmen tinha alugado para ele. O garoto estava pálido e abatido. Mais cedo, ele teve outra crise de asma e precisou ser levado ao hospital para ser medicado, o que deixou Carmen aflita e preocupada. Já em casa, ela observava o primo sentindo o coração apertado.

Daquela vez tudo terminou bem porque o menino foi levado ao hospital. E quando não houvesse mais hospitais? Como ela ia fazer para socorrê-lo? Sem medico e sem hospital, as coisas iam ficar muito complicadas.

“Coitadinho... eu nem sei como dar remédio pra ele!” uma idéia lhe ocorreu. E se ela aprendesse a lhe aplicar o inalador? Talvez aquilo pudesse ajudar em algo. “Ah, peraí! Eu bem que podia comprar alguns inaladores pra ele. É isso!”

Ela levantou-se da cama e foi olhar sua bolsa que estava repleta com os itens de “sobrevivência” que ela tinha selecionado. A bolsa estava com a lotação máxima e ela se deu conta de que não tinha colocado nada ali para o menino.

“Ih, melhor eu ver algumas coisas pra ele também. Deixa eu ver...” ela pegou seu caderno e começou a riscar alguns itens da sua lista para acrescentar outros que seu primo poderia precisar. Não seria melhor fazer uma bolsa só para ele? Aquela idéia lhe ocorreu e pareceu bem melhor. Ou não? Ela pensou um pouco mais e teve medo de que duas grandes bolsas pudessem ficar muito pesadas para carregar. O ideal seria algo que ela pudesse levar sozinha, sem a ajuda de empregados.

Alguém bateu na porta. Era a empregada trazendo uma jarra de suco com alguns biscoitos.

- Eu trouxe o lanche do Fabinho.
- Deixa que eu dou pra ele. E a tia? Achei que ela fosse passar aqui.
- A senhora está se arrumando para sair.
- Heim? Sair agora? – ela olhou para o menino que estava distraído vendo televisão e voltou a falar com a empregada – ele nem chegou direito do hospital e ela já quer bater perna por aí?

A empregada deu de ombros. Os assuntos pessoais dos patrões não eram problema dela.

- Fica aqui com ele um pouco, eu volto já.

A porta do quarto da sua tia estava entreaberta e Carmen pode ver a mulher se maquiando em frente ao espelho. Ela deu uma leve batida na porta e entrou.

- Tia, a senhora vai sair?
- Vou, querida. Sua mãe e eu temos um chá beneficente marcado para hoje a tarde. Você não se importa em ficar com o Fabinho, certo?
- Não, eu não me importo. Mas ele esteve no hospital hoje, ainda tá meio fraquinho... achei que a senhora fosse ficar com ele!

A mulher parou um pouco o que estava fazendo e olhou para Carmen como se ela tivesse dito o maior absurdo.

- Ficar com ele? Para quê? Ele já foi tratado pelo medico e está bem. E eu estive esperando por esse chá a semana inteira!
- Mas tia... ele tá tão tristinho!
- Ah, isso? É manha, querida! Esse menino está ficando muito manhoso e faz tudo para chamar a atenção.

Carmen olhou para a mulher mal acreditando no que tinha acabado de ouvir. Seu primo era um menino doente, estava fragilizado e aquela mulher dizia que tudo era só manha?

- Ele precisa crescer forte e independente, não posso levá-lo na barra da minha saia o dia inteiro. Sem falar que eu fui obrigada a deixar de ir a inauguração daquela loja chiquérrima por causa da crise dele. Agora vou deixar de ir ao chá?

“Ele é seu filho, sua vagabunda! Você tem que cuidar dele!” Carmen pensou consigo mesma, indignada com a atitude fria daquela mulher.

- Mirian, querida, você já está pronta?
- Quase pronta, eu estava conversando com sua filha. – ela falou em tom de leve reprimenda, dando a entender que aquele pequeno atraso era culpa de Carmen.
- Carminha, você não devia estar com o Fabinho?
- É que eu... hã... cadê o papai?
- Ele e seu tio foram para uma feira de carros na cidade vizinha, ele não te falou?
- Não... é que eu queria...
- Ah, tudo bem. – a mulher abriu a bolsa, tirou a carteira e colocou algumas notas na mão da filha. – Isso deve dar para você passar a tarde. Vamos, Mirian? Não quero chegar atrasada!
- Já estou pronta. Até mais, Carminha! Divirtam-se!

As duas saíram apressadamente sem que Mirian sequer se incomodasse em despedir do filho. Carmen ficou ali parada no meio do quarto com o dinheiro na mão. Segundos depois, ela saiu do choque e voltou para o seu quarto. Fabinho assistia televisão comendo alguns biscoitos e a empregada estava sentada ali perto mostrando visível descontentamento por ter que ficar parada olhando o garoto. Tanto que quando Carmen chegou, ela saiu na mesma hora visivelmente aliviada.

“Humpt! Ninguém merece!” ela pensou irritada com o comportamento da empregada, que agia como se tivesse fazendo uma caridade para a família sem receber nada em troca.

- Carminha, cadê a mamãe?
- E-ela s-saiu, xodozinho...

O rosto do menino se entristeceu.

- Achei que ela ia ficar comigo...
- É que ela, er... quer dizer... tinha um compromisso, sabe...

Ele voltou a assistir o desenho outra vez. Não adiantava mentir, mesmo sendo tão novo, ele já sabia que sua mãe preferia fazer qualquer outra coisa do que estar na sua companhia. Aquilo era dever das babás e dos empregados, não dela.

Carmen cerrou os punhos com raiva e só então se deu conta de que ainda estava segurando as notas que sua mãe tinha lhe dado. Cento e cinqüenta reais colocados em sua mão como se fossem meros trocados. Tudo em troca de ela ficar calada e não reclamar.

- Ontem a casa tremeu de novo. Você não viu? – ele perguntou sem tirar os olhos do desenho.
- Vi sim, xodozinho. Dessa vez eu vi.
- Ela tava com muito frio?
- É, acho que sim.
- Ela tremeu mais forte... eu falei pra mamãe e ela nem ligou.
- Acho que ela não viu...
- Ela não liga pra nada, né?

Um nó na sua garganta impediu que ela respondesse. Fabinho estava certo, seus pais não ligavam para outra coisa que não fosse ganhar dinheiro e gastá-lo com ostentação. Com seus pais era a mesma coisa e ela se deu conta de que não podia contar com o apoio deles para nada. Pensando bem, do jeito que eles eram, poderiam até deixar os filhos morrerem só para salvar a própria pele.

Se ela não cuidasse de si mesma e do Fabinho, ninguém mais ia fazer isso. O problema era que ela mal conseguia cuidar de si mesma, como poderia cuidar de uma criança? Ainda mais uma criança doente.

“Eu tenho que fazer alguma coisa, qualquer coisa! deixa eu ver...” uma dorzinha aguda atingiu sua cabeça, resultado do esforço mental ao qual seu cérebro não estava acostumado. Ela lutou contra aquilo e continuou pensando. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi sua bolsa, que não parecia ser muito pratica. E se ela tivesse que sair correndo com o menino no colo? Levar aquilo pendurado nos ombros poderia atrapalhar muito e ela pensou que o melhor seria uma mochila.

“Uma mochila? É... eu não gosto, mas vai ter que ser isso mesmo. deixa eu ver... e o que vou colocar na mochila? Ah, eu lembro que as meninas estavam falando em kit de sobrevivência!” ela sentou-se na frente do computador para fazer algumas pesquisas e ficou apavorada com a quantidade de informações e coisas que ela teria que ler. Seu corpo começou a tremer e uma vontade incontrolável de fugir para o shopping tomou conta dela. Foi preciso que ela respirasse fundo várias vezes e reunisse todas as suas forças para continuar sentada ali fazendo pesquisas.

No início, ela teve vontade de chorar por causa daquele esforço mental. Ler nunca foi seu passatempo preferido, especialmente aquelas coisas chatas. Mas ela se manteve firme e aos poucos foi se acostumando e até passou a se interessar pelo assunto que com o tempo foi se mostrando bem interessante.

__________________________________________________________

- E aí, o que ele falou? – Irene perguntou quando viu que não tinha ninguém por perto.
- O leilão vai ser na próxima semana e parece que os sócios ficaram bem interessados.
- Credo, você não tá com medo?

Denise procurou desconversar. Claro que ela estava com medo, mas não ia admitir aquilo para ninguém.

- E o Xaveco?
- Ele não vai saber de nada.
- Coitado, ele não merece isso!
- É por isso que ele não pode saber, ora! O que os olhos não vêem, o coração não sente.
- Mas um dia ele vai perceber, né? Quando vocês...
- Humpt! Ele nem vai sentir a diferença! Na hora eu dou um jeito.

Aquela situação estava ficando muito chata e Denise não queria mais falar sobre aquele assunto desagradável. Sua salvação veio quando ela viu Toni andando de mãos dadas com uma garota que ela nunca tinha visto por ali. Pensando bem, aquilo era uma garota ou uma arvore de natal ambulante?

- A louca! De onde foi que o Toni arrumou aquilo?
- Sei lá, nunca vi essa garota antes.
- Credo, viu só aquela maquiagem? Parece um palhaço! E aquele monte de badulaques? Os brincos são maiores do que a cabeça dela!

Toni viu Irene e Denise e procurou ignorá-las por enquanto para não despertar o ciúme de Valeska.

- Puxa, esse bairro é tão bom! Queria poder morar aqui e não lá naquele morro da favela! Quando você vai me apresentar os seus amigos?
- De vez em quando a turma se reúne para dar uma festinha, aí eu te chamo e você fica conhecendo todo mundo.
- Mal posso esperar! – ela sacudiu o corpo empolgada, balançando os brincos, colares, pulseiras fazendo um pouco de barulho metálico.

Ele procurava disfarçar o embaraço por ter que andar por aí com aquela garota espalhafatosa. Valeska gostava de roupas bem coloridas e vistosas, com estampas chamativas. A blusa dela parecia ser feita de plumas, ou algo que imitava plumas, deixando-a parecida com o Garibaldo. A saia tinha uma estampa florida com todas as cores do espectro visível e babados com glitter nas bordas. E suas botas de cano alto cor de rosa completavam o conjunto bizarro.

O pior era o cabelo dela, tingido com loiro platinado que ressaltava excessivamente o bronzeado artificial da sua pele. Se ela pelo menos soubesse se comportar, o visual poderia ser relevado. Mas não, Valeska conversava alto, dava gritinhos estridentes quando se impressionava com alguma coisa e sempre fazia cenas quando achava que não estava sendo bem atendida em alguma loja. Dentro da sua cabeça oca, ela tinha que ser tratada como princesa. Se não fosse a necessidade de sobrevivência, ele sequer cumprimentaria aquela garota.

- Toninho, o que a gente vai fazer agora?

Os ouvidos do rapaz chegaram a doer com aquela voz enjoada. E por que ela tinha que chamá-lo de Toninho? Antes era o idiota do Cebola o chamando de Tonhão, agora era aquela chata com Toninho? Argh!

“Tomara que o chão se abra e você seja engolida, sua chata!” ele pensou dando a ela um belo sorriso e respondeu.

- Vamos beber alguma coisa, você deve estar com sede, linda.
- Ai, vamos sim!

__________________________________________________________

Fabinho já tinha ido para a cama e estava dormindo profundamente. Passava das onze da noite e Carmen ainda estava na frente do computador. Quem poderia imaginar que era possível encontrar tantos sites falando sobre kits de sobrevivência para o fim do mundo? E tudo podia ser encontrado em lojas de materiais esportivos e camping.

“Primeiro, tenho que ver uma boa mochila. Ainda bem que lá no shopping dá pra comprar.” Ela foi fazendo a lista dos itens mais citados em várias listas diferentes e também foi acrescentando outros que lhe pareceram importantes. Havia até um pequeno kit de emergência voltado para crianças que ela ia providenciar no dia seguinte. O que mais lhe chamou a atenção foi o kit de 72 horas que lhe pareceu o mais simples de todos.

Suas costas doíam um pouco e ela levantou-se para se espreguiçar. Ela estava com sono e sabia que teria de acordar cedo no dia seguinte. Ainda assim, Carmen continuou estudando os itens da lista, alterando uns, cortando outros. Não adiantava nada colocar muitas coisas e depois não conseguir carregar. Falando em carregar, ela se deu conta de que poderia não dar conta de carregar nem uma mochila pequena. Claro, ela não era a Mônica.

“Acho que vou precisar treinar todos os dias. Que coisa, será que não tem nenhum curso rápido de sobrevivência? Até que seria bom. Ah, peraí! Vou perguntar pra Aninha sem falta!”

Tendo aquela idéia em mente, ela reviu mais alguns itens da lista e foi para a cama bastante satisfeita com aquele dia. Era a primeira vez que ela se sentia tão feliz sem ter precisado comprar roupas ou sapatos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!