2012 escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 21
Não julgues




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No capitulo anterior, Ângelo ficou preocupado com seus amigos, que escolheram caminhos que podiam ser perigosos. Agora ele precisa de conselhos para saber como lidar com essa situação.

Os dois corriam feito loucos, com Ângelo na frente e D. Morte atrás tendo que levantar um pouco sua saia para não tropeçar no tecido. Logo atrás deles, um cachorro corria e latia freneticamente.

- Porcaria, D. Morte, você falou que o cachorro era manso!
- O Pit Bull é manso mesmo, mas como eu ia saber desse poodle assassino?

Quando os dois alcançaram a metade do quarteirão, o poodle acabou mordendo a capa de D. Morte, que soltou um grito.

- Faz alguma coisa, ele vai comer a minha capa!
- Passa, totó, passa!

O cachorro rosnava e sacudia o tecido da capa, não mostrando nenhuma disposição para recuar.

- Isso não tá funcionando criatura! Tira esse bicho daqui senão eu vou ter um treco!
- E o que você quer que eu faça? Não posso bater no coitadinho!
- Coitadinho? Ele? E eu? Ele tá quase me devorando!
- Também não precisa fazer todo esse drama, que coisa!

Um grande pedaço da capa da D. Morte foi arrancado pelo cachorro, que ficou sacudindo o trapo e rosnando ao mesmo tempo. Ao ver que sua capa tinha sido estragada, D. Morte iniciou um festival de palavrões e Ângelo tentou acalmá-la.

- Pára com isso, ele não sabe o que faz. - (pedala!) - Ai! Por que fez isso? – ele esfregou a parte de trás da cabeça após ter levado um tapa da morte.
- Seu molenga, por que não pegou o cachorro?
- Pra ele arrancar um pedaço da minha mão? Nem vem! Eu não sou seu anjo da guarda!

Ele abaixou-se para desviar de outro tapa e os dois saíram dali voando antes que o cachorro se cansasse do trapo e voltasse a correr atrás deles novamente. Sua irritação não durou muito e ele acabou achando graça da situação. Era assim mesmo, sempre que era chamado para ajudar D. Morte, ele acabava entrando em confusão por causa das trapalhadas dela. Na hora ele ficava furioso, mas depois os dois acabavam dando boas risadas. Tirando os petelecos que D. Morte lhe dava de vez em quando, até que era divertido trabalhar com ela.

- Que coisa, você acabou não levando aquela dona...
- Deixa quieto, amanhã eu vejo o que faço. Agora eu vou ter que passar lá em casa pra trocar minha capa.

Chegando na casa de D. Morte, Ângelo ficou esperando sentado no sofá enquanto ela foi até seu quarto trocar de roupa. Ele olhou em volta distraidamente, admirando a estranha decoração quando um quadro na parede fez com que ele levantasse e chegasse mais perto.

“Peraí, eu tô conhecendo esse quadro!” olhando melhor, ele viu que parecia ser uma vista aérea do bairro do limoeiro. “Rapaz, esse é o quadro da Marina!”

Há alguns dias atrás, Marina tinha lhe pedido para tirar uma foto aérea do bairro para que ela pudesse pintar um quadro que tinha sido encomendado. O mais estranho, contudo, era que o quadro tinha sido modificado. Várias rachaduras tinham sido acrescentadas aqui e ali, como se tudo estivesse se despedaçando. Vários lugares estavam pegando fogo e ao fundo, no horizonte, ele viu algo que parecia ser uma grande onda prestes a engolir tudo.

No quadro também havia vultos negros que pareciam ter asas. Muitos deles.

- São meus emissários. – uma voz falou atrás dele, fazendo-o pular de susto.
- D. Morte, esse quadro... foi a Marina quem pintou!
- Foi sim, eu mesma encomendei.
- Você? Mas ela não me falou nada!
- É porque eu estava usando meu disfarce humano.
- Eu não acredito que ela tenha pintado desse jeito não!
- E não pintou. Ela apenas fez o básico e eu completei com o resto. O que foi? Eu tenho veia artística, esqueceu?

Aquilo não deixava de ser verdade. Pela casa afora, havia vários quadros que ela tinha pintado ao longo do tempo. Era o hobby preferido dela, depois de colecionar instrumentos de tortura da idade média. Só que os quadros dela eram bem estranhos e alguns até lhe davam arrepios. A turma do cemitério achava normal e Penadinho dizia apenas que eram excentricidades da ceifadora. Às vezes ele duvidava daquilo.

- Você acha que isso vai acontecer com o bairro?

Ao invés de responder, ela fez sinal para que ele se sentasse novamente e perguntou.

- E aí, o que você queria me falar? Dá pra ver que você tá muito preocupado com alguma coisa. São seus amigos?

Vendo que ela não parecia disposta a falar sobre aquele assunto, Ângelo deu um suspiro e explicou para ela o que Titi, Toni, Irene e Denise estavam fazendo. Aquilo o preocupava bastante já que Irene, Denise e Toni podiam estar se envolvendo com pessoas perigosas e Titi poderia acabar sendo preso porque ele já era maior de idade.

- Entendo... Agora seus amigos decidiram que os fins justificam os meios.
- E isso é errado! Eles não podem arrumar o dinheiro dessa forma, é desonesto!
- De fato, eles não estão seguindo caminhos convencionais.
- Então você me entende? Eles não deveriam estar fazendo essas coisas porque é errado! Deveriam estar fazendo com Licurgo falou: conseguir o dinheiro por meios honestos! Pois hoje mesmo eu vou procurar esses três e dar uma dura neles, isso não pode ficar assim.

D. Morte sacudiu a cabeça e falou.

- Você sabe que não pode interferir no livre arbítrio dos humanos.
- Não pretendo fazer isso, mas tenho que falar alguma coisa para eles.
- Se você acha importante, então fale, só acho que antes de mais nada, você não deveria julgá-los dessa forma.

O anjo levou um susto.

- Por que não? Eles estão errados!
- Certo e errado são conceitos que podem mudar de acordo com o lugar e a época.
- Roubar sempre foi errado, traficar drogas prejudica outras pessoas e o que a Irene e Denise estão fazendo, er...
- Sabe, quando falam que é a profissão mais antiga do mundo, pode acreditar que é mesmo.
- Mas não é errado?
- De acordo com o ponto de vista de quem? Antes de julgar os atos das outras pessoas como certo ou errado, lembre-se de que você está julgando apenas de acordo com sua visão e ponto de vista, que nem de longe são absolutos e universais.
- Então você tá concordando com os erros deles?
- Não estou concordando e nem discordando, apenas olhando de outra forma. De tanto conviver perto dos humanos, você acabou adquirindo a mentalidade deles e agora vê as coisas de maneira limitada.
- Não entendo... durante toda minha vida eu aprendi que algumas coisas são certas, outras erradas... tenho meus princípios!
- E não precisa abrir mão deles. Você tem todo o direito de discordar do que seus amigos estão fazendo, mas precisa ter em mente que eles estão fazendo isso por uma questão de sobrevivência.
- E por que eles não arrumam outra alternativa? A Mônica, por exemplo, já juntou um dinheirão só levando cachorro pra passear!

Ela deu um sorriso enigmático e falou.

- Vou te contar um pequeno segredo sobre os humanos, Ângelo. As pessoas só agem de acordo com seu grau de evolução e entendimento. Não adianta você dizer que tem dezenas de alternativas sendo que seus amigos não conseguem enxergá-las. Eles só fazem aquilo que está dentro do alcance deles, nada mais. Seria até injusto da sua parte cobrar deles algo que eles ainda não tem condições de fazer.
- Então eu devia apontar outras alternativas pra eles!
- Não. Os humanos têm que aprender sozinhos. Se interferimos e damos tudo de graça, eles não crescem e não aprendem.
- Mas também não sofrem...
- Errar, sofrer, cair, tudo isso faz parte do processo de aprendizado. Certo ou errado, seus amigos precisam vivenciar suas experiências e aprender por eles mesmos. Você pode tentar orientar e aconselhar, mas ainda tem que respeitar a liberdade deles de agir conforme acharem melhor.
- Só que isso pode não ser o melhor para eles!
- Não há como saber. A vida costuma ser cheia de surpresas. Você não tem como saber o que é melhor para cada pessoa.

O anjo colocou a cabeça entre as mãos, muito preocupado com os amigos e D. Morte tentou tranqüilizá-lo.

- Ângelo, não julgue seus amigos com tanta severidade porque você não sabe o que se passa no intimo deles. Você é anjo, imortal e não será afetado diretamente pela mudança da Terra. Eles, por outro lado, são humanos e estão com medo.
- Isso não justifica.
- Mas explica. Perder um ente querido, ver seu mundo desmoronando, tudo isso causa uma dor muito grande neles. Você não faz idéia do quanto seus amigos estão sofrendo com tudo isso?
- Eu... eu não tinha pensado assim... só que eu não posso ficar olhando sem falar nada!
- Não, você não pode. Como anjo da guarda deles, é sua responsabilidade chamar a atenção dos seus amigos quando eles fazem algo errado. Só tente não julgá-los.

Ele abaixou a cabeça.

- Eu só... er...
- Eles precisam de um anjo da guarda, não de um inquisidor. Além do mais, não é justo você apenas dizer que eles não podem fazer aquilo, mas não apontar nenhuma outra alternativa que possam seguir. Mesmo que você aponte as piores conseqüências para seus atos, isso poderá não ser suficiente para fazê-los parar porque eles estão desesperados.
- Você acha então que eu devo falar com eles?
- Sim, você deve. Especialmente com o loirinho narcisista a quem vocês chamam de Toni. Ele está lidando com pessoas perigosas, que não ligam a mínima em matar pessoas como se não valessem nada. Ele é o que mais vai precisar da sua ajuda. Os outros, apesar de tudo, acho que vão ficar bem dentro do possível.
- O que você acha que irá acontecer com o Toni?
- Não fique pensando no que vai ou não acontecer com esse rapaz e sim no que você pode fazer para ajudá-lo.

O rapaz acabou concordando, sentindo-se envergonhado por ter julgado seus amigos daquela forma. D. Morte tinha razão. Ele não precisava concordar com os atos de ninguém, mas pelo menos deveria tentar entendê-los. 

- Agora você pode ir. O resto do trabalho que tenho hoje só eu mesma posso fazer.
- Valeu, D. Morte!
- E Ângelo, lembre-se de que a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. Uma vez que seus amigos tenham escolhido seus caminhos, caberá a eles arcarem com as conseqüências dos seus atos. Não queira se responsabilizar por tudo de ruim que acontece com a vida deles.
- Eu sou o anjo deles!
- Sua função de protetor não tira deles as responsabilidades por seus atos. Lembre-se disso.

Depois que ele se foi, o rosto dela entristeceu muito imaginando a dor que aquele rapaz ia sentir quando descobrisse que alguns dos seus amigos não iam sobreviver àquelas mudanças. Dois membros daquela turma já estavam encaminhados para que ela os levasse quando chegasse o momento certo, que não ia demorar muito a chegar.


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