2012 escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 20
Meios obscuros




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/279654/chapter/20

No capítulo anterior, a turma segue juntando o dinheiro e tropeçando em algumas dificuldades. Carmen se preocupa com o seu primo.


Dentro do depósito de uma grande fábrica, dois rapazes conversavam entre si, aparentemente conferindo as mercadorias.

- Cara, você tem certeza de que isso vai dar certo? Eu não quero me meter em encrenca!
- É garantido, véi! Não tem erro. O lance é bem simples: a gente pega as peças, vende e com parte do dinheiro, compramos outras mais baratas e colocamos no lugar.
- Tá falando em trocar as peças caras por peças vagabundas?
- Que nada! Essas peças só têm nome mesmo, mas a maioria é basicamente a mesma coisa das genéricas.
- E o dono não vai notar nada?
- Tem um jeito de colocar etiquetas e códigos de barras nas peças que ele não vai perceber. Só se cada uma for examinada, mas ninguém vai fazer isso.

Titi esfregou a nuca com a mão, pensando se valia ou não a pena entrar naquele plano. Quando conseguiu um emprego de estoquista na fábrica de peças para veículos, ele queria apenas uma chance de conseguir o dinheiro necessário. Ao fazer amizade com Antonio, o colega de trabalho, ele acabou sendo colocado a par do esquema. Afinal, o outro ia precisar da ajuda dele para desviar as peças.

- E o quanto a gente ganharia num mês?
- Tirando a parte que a gente vai usar para repor as peças, dá uns dez mil pra cada um tranqüilo.

Ele deu um sobressalto. Dez mil? Com aquilo, dava para garantir as passagens para sua família sem nenhum problema. Se conseguisse fazer aquilo por dois meses, então ele não teria que se preocupar com mais nada.

- Você acha que... tipo assim... o dono seria capaz de descobrir isso antes de julho?
- Heim? Não, acho que não. Por que você tá preocupado com esse prazo?
- É que eu tô juntando uma grana, sabe... preciso do dinheiro até julho.
- Até julho a gente vai estar montado na grana, rapaz! É só você não vacilar!

Por fim, ele acabou concordando. E no fim das contas, ninguém ia sair prejudicado com aquele esquema. Mesmo que as peças fossem de qualidade inferior, que diferença aquilo poderia fazer se ninguém ia usá-las?

__________________________________________________________

- Ih! Será que ela morreu?
- Ô Carmen, defunto não ronca!
- Credo, ela tá babando que nem um São Bernardo!

Mônica tentou cutucar Denise mais uma vez para acordá-la. A aula já tinha terminado e era hora de ir embora.

- Denise... DENISE! ACORDA, CRIATURA!

A ruiva acordou num pulo, levantou-se rapidamente e falou com os olhos arregalados.

- Eu agradeço a todos pelo prêmio Nobel de glamour, estilo e... peraí, cadê meu prêmio?

As garotas deram risadas com a cara de confusão que ela tinha feito e Mônica falou.

- Tem prêmio nenhum não, sua boba! Você é que dormiu durante a aula inteira.
(Cascuda) – Dormiu nada, entrou em coma profundo!
- Sem graça!
– Melhor você ir ao banheiro lavar o rosto. Nossa, sua cara tá toda amassada!

Magali tinha razão. Quando Denise viu seu reflexo no espelho, ela levou um susto ao ver sua maquiagem borrada, os cabelos desalinhados e marcas de dobra de roupa em seu rosto. Sua aparência nunca esteve tão lamentável.

“A louca! Acho que nem vou ver o tal fim do mundo. Esse emprego vai acabar me matando antes!” ela pensou enquanto dava um jeito na sua aparência. Aninha tinha lhe conseguido mais um emprego. Agora ela tinha que trabalhar na cozinha de um restaurante, lavando pratos, varrendo o chão, levando o lixo para fora e fazendo todo tipo de serviço nojento que ninguém mais no mundo queria fazer. Ela só aceitou porque aquele oferecia um salário mínimo inteiro apesar de ser meio período.

Só que ela não estava gostando nem um pouco. Suas unhas estavam perdidas, todas tinham se quebrado. A pele das suas mãos estava ressecada e até criando calos. Sem falar que ela tinha que vestir o uniforme do restaurante, uma coisa tremendamente cafona e sem graça comparada com as roupas estilosas que ela estava acostumada a usar. Um tremendo inferno!

Quando terminou, todos já tinham ido embora e ela teve que correr para não perder a hora. O almoço era oferecido ali mesmo no restaurante, uma comida intragável e gordurosa que ela mal conseguia comer algumas colheradas.

Quando chegou na esquina perto do ponto de ônibus, ela deparou-se com uma cena inusitada que a fez parar de correr. Aquela ali não era a Irene? O que ela estava fazendo parada ali com aquela sacola na mão? Não resistindo a curiosidade, Denise resolveu se esconder atrás do poste para observar. Não demorou muito e um carro de cor prateada com vidros escuros parou em frente à moça e Denise ficou em alerta.

Quando a porta abriu, Denise não pode ver direito o que tinha acontecido, mas pelo que ela pode ver, Irene entregou a sacola, esperou por um tempo e depois saiu de perto do carro com um envelope nas mãos. O carro foi embora e ela seguiu seu caminho. O que tinha acontecido ali? Denise não fazia a menor idéia e resolveu conferir. Mesmo sabendo que ia chegar atrasada para o trabalho, seu instinto fofoqueiro acabou sendo mais forte.
   
- E aí, fófis? Qual é o babado?

Irene levou um susto e por pouco não deixa o envelope cair no chão. Mais perto, Denise pode ver que era um envelope pequeno de cor parda e parecia ter um grosso volume ali dentro.

- Eu... eu...

Denise se divertia com o pânico da outra e resolveu tirar proveito da situação.

- Quem estava naquele carro e o que você deu pra ele? E o mais importante: o que tem nesse envelope que ele te deu? Anda, vai! Tricota tudinho que eu quero saber!

Certo, não havia mais saída. Ou ela falava tudo, ou Denise saia espalhado por aí o que tinha visto e o que não tinha visto. Especialmente o que não tinha visto. Irene fez a ela um sinal para que as duas saíssem dali e elas foram para uma rua deserta. A loira encostou-se em um muro e Denise ficou a sua frente esperando pela resposta com os braços cruzados e batendo um pé no chão com impaciência. 

- E aí? O que tá pegando?
- Você sabe que tá todo mundo juntando dinheiro até julho.
- Claro que sei, eu também tô ralando feito doida pra juntar uns trocados!

Irene torceu o nariz e virou o rosto para o lado.

- Eles só contratam gente da nossa idade pra explorar e pagar miséria. Minha família é grande, jamais iria conseguir dinheiro suficiente trabalhando nos empregos que a Aninha arranja pra gente.
- E aí você arrumou outro jeito? Vai, desembucha que eu quero saber.
- Tem uma espécie de clube, é muito fechado e ninguém conhece, os membros de lá gostam de certas coisas...
- Que coisas?
- Naquela sacola tinha calcinha, sutiã e outras coisas...
- E você tá vendendo calcinha e sutiã pra eles? O que tem de mais nisso?

Ela abaixou a cabeça e falou num sussurro.

- São usados.
- Usados? Eles compram calcinhas usadas? Que coisa mais nojenta! O que eles fazem com isso?

Após ouvir as explicações de Irene, Denise não sabia se vomitava, desmaiava ou se fazia os dois ao mesmo tempo. Como podia existir gente tão depravada no mundo?

- E tem fotos e vídeos também...
- Não! Tá mesmo falando sério? Você tirou fotos usando essas coisas? Com o seu rosto aparecendo? Ficou doida? Se isso vaza na net, sua vida acabou pra sempre!
- Não exagera, Denise! – ela falou um pouco mais alto e abaixou o tom. – Eles não publicam nada em sites, é algo só pros membros daquele clube! E quer saber? Se publicarem, não tô nem aí! O mundo vai acabar mesmo e todo esse pessoal vai morrer.
- Isso lá é verdade! Só que o Licurgo falou que a gente devia fazer isso por meios lícitos e...

Ela foi interrompida por uma risada cínica.

- Meios lícitos? A passagem dele tá garantida mesmo, então fica muito fácil posar de honesto, né? Não é ele que corre o risco de morrer ou perder toda a família!

Aquilo a pegou de surpresa. Nunca em sua vida ela esperaria aquele tipo de pensamento de Irene, que sempre lhe pareceu tão meiga e certinha. E ela não deixava de ter razão. Era a vida deles que estava em jogo. Será mesmo que fazia alguma diferença o modo como aquele dinheiro era obtido? E aquele trabalho que Irene tinha arrumado não prejudicava a ninguém.

- O quanto você ganhou até agora?
- Com esse de hoje, acho que já tenho uns R$ 2.300,00.

A fofoqueira esfregou os ouvidos com o dedo mindinho, sacudiu a cabeça e pediu.

- Dá pra repetir? Acho que entendi errado...
- Não ouviu não, é isso mesmo. Já tenho mais de dois mil reais e até julho vou passar de três.

Ela levou uma mão ao peito, como que tentando não ter um enfarte e também se encostou no muro para não cair.

- Gsuis me abana! E como é que eu entro nessa? Tem vaga pra mais uma aí?
- Você tá falando sério? - Irene perguntou com os olhos arregalados.
- Amore, você acha mesmo que eu vou brincar com um assunto sério desse? Eu também tô no mesmo barco que você, esqueceu? Se não conseguir o dinheiro, já era!

Irene pensou um pouco e deu um pequeno sorriso de satisfação. O dirigente do clube já tinha lhe falado que se ela arrumasse uma nova garota, lhe daria uma boa comissão.

- Você tem que tirar várias fotos pra eu mostrar pra eles.
- Com que roupa?
- O mínimo possível. Vamos fazer assim: de noite eu passo na sua casa pra te ajudar a tirar as fotos e amanhã vou ver se entro em contato com eles. Mas vou logo avisando que o valor depende de cada garota, não é fixo.
- Uia! Então eu vou ficar rica! Mas vem cá, é só isso mesmo que eles fazem? Quer dizer, eles só compram as roupas intimas das garotas?
- Bem, não. Tem outras coisas também, mas eu não aceitei porque achei demais.
- Ué, demais por quê?
- Porque eu quero que minha primeira vez seja com alguém especial, não com um velho tarado e sem vergonha!

Denise engoliu em seco, entendendo o que Irene queria dizer. Talvez nem ela mesma estivesse preparada para dar mais aquele passo. Ou estava?

__________________________________________________________

Toni estava parado perto da porta de entrada da agencia de modelos onde ele trabalhava de vez em quando. Algumas moças e rapazes, todos muito bem vestidos, saíram dali conversando entre si e logo notaram a presença do belo rapaz loiro que esperava por eles. 

- E aí, Toni? – um deles perguntou mostrando visível ansiedade. – Você trouxe?
- Eu fiquei esperando a semana inteira por isso! – uma garota falou tremendo levemente.
- Calma, galera! Tá tudo aqui! – ele abriu um pacote cheio de várias trouxinhas feitas com saco plástico e cheias de comprimidos. – o preço vocês já sabem.

Ninguém discutiu nada. Cada um foi passando para ele uma boa quantia em dinheiro e pegando duas ou três daquelas trouxinhas. Quando eles foram embora, o pacote que Toni havia trazido já não tinha mais nada porque tudo foi vendido e eles ainda queriam mais. Quem poderia imaginar que aquele negócio era tão bom?

Embora tivesse ficado com medo no início, pois tinha que lidar com traficantes, Toni viu que poderia ganhar muito dinheiro se fizesse tudo bem feito e não fosse pego pela polícia.

“Bando de trouxas...” ele foi pensando enquanto ia para o ponto de ônibus. “Ficam aí tomando essas porcarias e nem sabem o que vai acontecer com eles! Humpt! Melhor pra mim!” sua consciência não pesava nem um pouco. Quem ligava para o moralismo do Licurgo? Dinheiro era dinheiro, não importando de onde vinha. Ninguém seria capaz de notar a diferença.

Quando seu ônibus chegou, ele subiu no veículo sem saber que estava sendo observado por alguém.
__________________________________________________________

Ângelo ficou olhando o ônibus indo embora com o coração apertado. Ele tinha seguido alguns dos seus amigos e viu o que Titi, Denise e Toni estavam aprontando. Será que eles não tinham entendido as recomendações do Licurgo? Certamente não.

“Droga, eles não deviam estar fazendo isso, que coisa! Tá tudo errado!”

Ele olhou as horas e resolveu passar no cemitério para ver se conseguia falar com D. Morte. Talvez ela pudesse ajudá-lo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!