Guardiã do Rei escrita por Miss America


Capítulo 39
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Notas iniciais do capítulo

Chegou o prometido! Yay!
Só digo uma coisa sobre ele: recordem-se bem de como era GdR até aqui... porque vocês nunca mais a verão da mesma forma.
Vejo vocês nas notinhas lá de baixo! c:



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I remember you said “don't leave me here alone”

But all that's dead and gone and passed tonight.

~ Safe & Sound

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O exército finalmente alcançou a cidade.

Em uma formação composta por linha principal e flancos a cada um de seus lados, Percy guiava os semideuses restantes para o que restava da Batalha. Em sua cabeça queimavam chamas de raiva, cansaço e preocupação, todas ao mesmo tempo, seus estalidos como gritos incessantes. Por isso, a cada dois minutos, ele precisava olhar à sua direita. Um par de olhos sagazes lhe desejariam força e demonstrariam coragem de volta.

Era tudo o que ele precisava, agora e sempre.

Espada ao ar, escudo à frente do peito, capacete de metal sufocando a respiração. Tudo o que Percy via diante de si eram prédios envoltos em fumaça negra, por trás de barras pequenas que lhe permitiam espreitar a realidade. Apesar da limitada percepção, pensava que, talvez, sem o capacete a visão fosse pior ainda.

Ao seu redor, semideuses. Todos em uma situação muito semelhante à sua. O temor já havia os deixado lá atrás. Não havia mais nada a perder, exatamente. Muitos já haviam perdido os irmãos, amigos de longa data, conhecidos. Eles só queriam terminar com aquilo de uma vez por todas, e é por isso que seguiam Percy como soldados fiéis, respondendo a cada ordenança como se fosse a última. E provavelmente poderia ser.

Finalmente.

Percy sacudiu de leve a cabeça. Ele esteve em silêncio até agora.

— Parar! — Annabeth ergueu sua espada ao ar. A adaga deveria estar em algum lugar dentro daquela armadura que quase a escondia por completo.

Ela olhava para todas as linhas, estando apenas a dois passos de Percy. Sua ordem foi repetida como ecos pelos outros líderes. Seu olhar recaiu brevemente sobre o menino, que devolveu o favor de transmiti-la segurança. Annabeth olhou para frente de novo.

— Campo primário alcançado. Iniciar formação número três!

Novamente, a ordem foi repassada através de berros e prontamente obedecida. A formação número três consistia em uma meia-lua que se fecharia aos poucos conforme alcançasse a Praça Central. A ideia é que os monstros restantes atacassem os semideuses dentro desse quase círculo e pudessem ser atingidos de diversos ângulos. Quando enfim chegassem ao maior monstro que destruía a cidade, ele não teria para onde ir.

Percy realmente torcia para que desse certo. Ele ainda tinha algo a perder, e ela se posicionava ao seu lado outra vez para marchar.

— Maaaarchem! — o herói ergueu uma confiante Anaklusmos ao ar e gritou do fundo de seus pulmões. Sua vontade foi contagiante, pois ele logo ouviu Clarisse gritar não muito longe dele um MAAAAAAARCHEM que muito provavelmente assustara até os cães infernais que estariam pela frente.

E assim seguiram, monstro após monstro, fúria após fúria, cão após cão. A estratégia de Annabeth parecia mesmo funcionar, embora cobrasse dos soldados que fossem ágeis no ataque. Por outro lado, seguindo o rastro do cheiro de semideuses que o exército deixava para trás, era impossível que algum monstro não caísse na armadilha.

Annabeth lutava bravamente. Ele a sentia bem perto de si, quase grudados pelas costas. Sabia que não o deixaria sozinho um segundo apenas, e isso o fazia feliz e triste ao mesmo tempo.

Oh, não se canse muito. Temos que conversar, ainda.

— Maldição — Percy murmurou. Anaklusmos tremeu em sua mão e o golpe no cão infernal foi um pouco mais forte que o planejado, fazendo com que o peso de sua espada o jogasse para o lado e ele se chocasse contra Annabeth.

Ela se virou assustada para trás, mas baixou a guarda ao ver de quem se tratava.

— Percy! Você está bem? — ele pôde ver as sobrancelhas dela se franzirem por trás do capacete.

— Sim. Desculpe, calculei mal — respondeu, para ver que não funcionava mais. Já era a terceira vez que respondia algo parecido? Ou quarta? Annabeth aparentemente pensava na mesma coisa.

— Se tem algo a me dizer, melhor dizer agora — com a mão segurando seu braço, ela enfim disse o que Percy já estava esperando, mas sabia que, se a situação fosse outra, ela já teria dito bem antes.

— Se eu tivesse, já teria dito.

— Você é um péssimo mentiroso.

Felizmente Percy foi salvo de uma Annabeth beirando à fúria pelo rugido de um leão.

Ooou não.

Ambos olharam para frente, assim como todos os outros. Não se ouviram mais os tintilares dos metais ou outros rugidos menos assustadores... mas ninguém sabia dizer de onde aquele rugido viera.

— Um leão? — alguém muito observador pontuou.

Do outro lado, outras pessoas discordaram.

— Pensei ter visto uma cobra — Clarisse respondeu.

— É, bem parecido mesmo — o observador de antes provocou.

— Cale a boca, Stoll, eu sei o que vi! Era uma cobra!

Uma discussão se atiçou, com ambos os flancos discutindo o que se viu ou o que se ouviu, sem que ninguém chegasse a uma conclusão.

Mais um rugido calou a discussão. Nem mesmo os cães infernais se moviam, estando abaixados em temor. Tudo era parado como águas tranquilas, e não como um campo de batalha em plena ação. O próximo rei esperou ouvir aquela voz aos seus ouvidos, todavia nada veio. Esse era um enigma para ele resolver sozinho.

No entanto, ao sentir a mão de Annabeth se soltar dele, Percy virou-se para ela. Uma fumaça branca saía de seu capacete, enquanto os olhos dela estavam fixos no nada, tensos.

Di Immortales.

— Annabeth? Você sabe o que é isso? Você sabe?

— Sei, sei, assim como todo mundo. Eles só não querem admitir.

— Admitir o quê?

Ela moveu o olhar lentamente até ele.

— Uma Quimera.

Foi como se o monstro a ouvira. O terceiro rugido foi ainda mais alto e violento que seus antecessores e parecia ter um tom de incentivo, pois os cães, antes acuados, agora erguiam-se raivosos na direção dos semideuses distraídos.

Um deles pulou diretamente sobre Percy, as presas a centímetros de seu rosto, e o lançou ao chão. Percy conseguiu segurar em suas duas presas maiores superiores, mantendo a boca do animal aberta, porém sem feri-lo. Mas isso também fazia com que Percy não tivesse como atacar.

Ele não sabia onde estava Annabeth enquanto rolava com o cão pela grama queimada. Provavelmente deveria estar se defendendo também, restando apenas ele mesmo para se salvar. Ele só não sabia quanto tempo mais aguentaria segurando presas afiadas com suas mãos machucadas ou o hálito de cadáver que saía de dentro daquela boca.

Fofos, não? Uma graça.

— Aaaargh! — Percy encontrou forças para empurrar o braço direito para frente e, de repente, sentiu que ele foi mais para frente que o esperado.

Percy torcera e arrancara completamente a presa que segurava, abrindo uma fonte de sangue de odor ainda mais insuportável que apenas o hálito de antes. O cão chorou e rosnou ao mesmo tempo, ficando ainda mais irritado e mirando no pescoço do garoto. Mas agora ele tinha uma arma, e a usava da mesma maneira contra o animal.

Conseguiu furá-lo no pescoço e o jogar para trás tempo o suficiente para cravar-lhe a Anaklusmos que havia caído ao seu lado enquanto o bicho ainda esperneava e sangrava.

No outro segundo, os membros descansaram. Sumiu em uma nuvem de poeira, como todos os outros.

A presa, no entanto, ficou em sua mão.

Cinquenta.

— O quê? — Percy inspirava e expirava em exaustão.

Cinquenta. Você matou sozinho cinquenta cães infernais hoje. Parabéns.

Ele fechou os olhos.

— Diga-me onde está. Cesse as brincadeiras.

 Cinco. Cinco. Cinco. Eu gosto desse número. Você gosta dele?

— Eu o odeio. Odeio você.

 Não se preocupe, eles acabaram. Por hoje, acabaram.

Percy abriu os olhos e diminuiu o ritmo de sua respiração. Confuso, viu que todos em volta dele também estavam no chão, claramente afetados pelo ataque em massa e tão repentino. Olhou para trás. Annabeth erguia a adaga, joelhos flexionados e dura como uma estátua. Havia três montes de poeira desfeitos ao seu redor. Um tinha uma flecha pousada sobre ele. Graças aos deuses ela tivera ajuda.

Ele se ergueu e caminhou até ela.

— Percy? — ela gritava para o nada. — Está aí?

— Bem atrás de você.

Annabeth girou nos calcanhares para vê-lo. Ele quase viu seu sorriso de alívio. A garota correu para abraçá-lo, ofegante.

— Desculpe-me, desculpe-me — murmurava depressa, o choque dos metais cantarolando aos ouvidos deles. — Você está vivo. Obrigada.

Ela mesma se afastou do abraço, antes que Percy pudesse dizer alguma coisa.

— Vamos. Deve haver mais.

Algo brilhou na mente de Percy.

— Não.

— Perdão?

— Acabaram. Os cães infernais. Por hoje, eles acabaram.

Annabeth o encarava. Parecia tão convencida quanto os semideuses em volta deles ainda armando guarda.

— Como sabe?

Percy olhou para a presa em sua mão antes de jogá-la fora e empunhar Anaklusmos de novo.

— Só sei — respondeu e passou por ela. Se apenas soubesse o quanto ele tentava protegê-la, não faria tantas perguntas.

Andou para frente, de onde todos podiam vê-lo. Ao o avistarem tão seguro, lentamente deixaram seus postos.

— Reagrupar formação três, estágio quatro!

Reagrupar formação três, estágio quatro!

O meio-círculo reuniu-se de novo, agora bem mais fechado que antes. Agora Percy via o quanto estavam arranhados e cansados, mas, pelo bem de todos, nenhum havia se perdido.

O quarto rugido soou. A quimera estava longe, mas não muito.

— Ordens? — Annabeth perguntou, ficando ao seu lado. Percy não sabia dizer o que ela esteve pensando dele, mas obviamente sabia separar tudo em prioridades.

O exército o encarava. Eram tudo o que ele tinha agora.

Tomou o fôlego.

Venha me encontrar.

— Marchem.

E marcharam.

Mas Percy não contava com o fogo.

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O castelo era, de fato, a fortificação humana mais protegida que Apolo havia visto em muitos anos.

Hefesto mantinha o fogo crepitando em altas chamas, criando uma barreira quase intransponível e escondendo milhares de armadilhas mortíferas dentro das muralhas ardentes. Os sortudos – ou azarados? – monstros que ainda conseguiam ultrapassar a fortaleza de Hefesto tinham que encarar a fúria de Ares, que descontava nas feras seu arrependimento pela morte dos filhos na forma de um olhar aterrorizante, que provocava imagens de destruição e morte na mente dos monstros e os fazia recuar.

Ambos trabalhavam assim: mortes indiretas. Essa foi a ideia dada por Atena aos deuses, para que se mantivessem dentro das normas da Batalha, mas ainda ajudando os semideuses como prometido.

Deméter preservava a vida dentro do castelo através de plantas e grama vivas. Vez ou outra misteriosas poças de areia movediça surgiam no bosque, engolindo qualquer desavisado que por aquela região protegida se atrevesse a passar. Quando isso acontecia, pequenas gargalhadas eram ouvidas. Apolo sabia a quem pertenciam e a via pela janela, circundando o castelo. Sua risada era a mesma da menina Natalie.

Afrodite influenciava a paixão pela causa em todos, mas talvez não fosse necessário fazê-lo em Atena. Como deusa da guerra, sua posição era dentro da sala de Conselho, suando gotas de nervosismo em pleno outono por cima de mapas e papéis cheios de tinta preta, os quais ela chamava de anotações. Vez ou outra sua voz ecoava pelas paredes do castelo perguntando onde diabos Dionísio havia se metido.

Apolo estava sentado à mesa com Atena e, duas cadeiras longe dele, estava Poseidon. O deus batucava os dedos da mão direita sobre a mesa, impotente. A outra mão apoiava seu queixo e, naquela exata posição, fazia Apolo lembrar-se imensamente de Percy e sua expressão entediada durante todos as sessões do Conselho.

Sobre as pernas, Apolo sentiu a própria mão direita tremer. Espasmos lhe ocorriam a cada três ou quatro minutos, ficando aos poucos cada vez mais frequentes. Agora ocorriam a cada dois minutos, forçando o deus a mantê-la fechada em punho. De vez em quando a abria um pouco, e enxergava novamente o castelo nas nuvens desenhado em dourado em sua mão. A cada olhadela, Apolo via que ele ficava mais definido, com mais traços e mais reluzente.

Ele fechava a mão outra vez e olhava para o ansioso Poseidon à sua frente.

Era cada vez mais óbvio.

— Apolo!

Ele olhou atordoado para Atena, que o encarava da outra ponta.

— Desculpe, estava pensando em outra...

— Você ouviu isso?

Ouvir o quê? O castelo em si já era uma sinfonia de completa desordem e desespero. Mas Atena continuava o encarando, reafirmando o que dizia. Poseidon também parecia estar ao lado dela.

Alguns minutos de confusão depois, ele ouviu os cascos.

— A tropa de Dionísio chegou — Atena declarou, logo antes de rolar os olhos e jogar as costas contra o encosto da cadeira.

— Mas eles podem ser de algum auxílio, não? — Poseidon deu de ombros. — O que é uma discussão boba de décadas atrás contra uma Batalha apocalíptica como a que vivemos? Prioridades.

— Você pensa assim, mas alguns de nós ainda não sabem estabelecer suas “prioridades” corretamente — a deusa atirou a pena que ainda segurava sobre a mesa e se colocou em pé. — Já que Dionísio não aparece, preciso checar isso eu mesma.

Sua última palavra dita foi imediatamente acompanhada por um forte barulho de metal atingindo o chão.

Apolo ergueu um braço em urgência:

— Atena, espere.

Ela sequer se moveu. Os três continuaram ouvindo atentamente.

E se eu o atirar às chamas? Será que vai continuar balindo pra mim?

— Ares — o Sol identificou.

— Vocês dois — Atena chamou —, melhor virem comigo.

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Apolo chegou ao portão da muralha junto com Atena e Poseidon para encontrar Ares e o ancião dos sátiros disputando quem se encarava com cara de mau por mais tempo. Um pequeno capacete de sátiro estava no chão, como se houvesse sido arrancado da cabeça e jogado ali logo em seguida – o que era uma dedução bastante óbvia.

— Vocês acham mesmo que deixaremos que se aproximem de nossos filhos? — Ares contorcia o rosto. — Não lembram do que aconteceu?

— Já dissemos e repetimos — o ancião retrucou com a maior calma do mundo — foi uma armadilha. Provavelmente culpa daquele deus maluco.

Apolo se inclinou ao ouvido de Atena.

— Quando eles ficaram tão ousados?

— Bem, faz bastante tempo que os abandonamos à própria sorte — ela respondeu. — Ou talvez sempre foram assim.

— Mas quando a Batalha começou — Ares continuou — vocês pouco se importaram em salvar os semideuses. Creio não ser seu maior interesse.

O ancião sorriu.

— Esperávamos um pedido de desculpas.

— Ah, não — Atena murmurou, pouco surpresa.

Ares arrancou uma espada gigante e flamejante da cintura.

— Eu vou lhes mostrar agora mesmo o pedido de desculpas que querem!

Sob a visão da espada, os sempre amedrontados sátiros correram para o portão fechado, enquanto o ancião somente olhava para cima, tremelicando em seu lugar.

— Parem imediatamente com isso.

No meio de uma fumaça lilás, Dionísio se materializou, terminando de mastigar alguma coisa. Olhou secamente para Ares até que este baixasse a espada. Enquanto ainda se certificava de que nada aconteceria aos sátiros, pareceu enfim notar a presença de Atena, Poseidon e Apolo.

— Ah, aqui estão vocês — deu alguns passos tranquilos na direção do trio. — Fui para a sala de Conselho, mas estava vazia. Estão fazendo o quê aqui? Hora extra?

— Vim consertar o que acabou de fazer — Atena era cortante. — Eu sabia que era uma péssima ideia, mas você sequer meu deu a chance de dizer isso.

— Está dizendo agora e, infelizmente, discordo de sua opinião. Você mesma disse que precisávamos de toda ajuda disponível. Quer uma ajuda mais adorável que essa?

Atena bufou. Apolo decidiu intervir.

— Dionísio, todos sabemos o quão importante é pra você que haja um pedido de desculpas aos sátiros, mas não creio que esse seja o melhor momento. Estamos no meio da Batalha, e a maioria de nós ainda não está agindo... normalmente — completou, dando uma rápida olhadinha para Ares, sem que o outro percebesse.

Dionísio começou a andar na direção de Apolo, apontando com o indicador para o rosto do deus dos médicos e aparentando estar só um pouco mais irritado que antes. Só um pouco.

— Permita-me relembrá-los, porém — grunhiu —, que todos são deveras orgulhosos e me parecem estar ignorando um pequeno detalhe — pequena pausa. Quando voltou a falar, seu tom havia aumentado drasticamente. — Essa pode ser a última batalha de vocês! Todas as batalhas podem ser a última. E então? O que farão, se não haverá o dia de amanhã para consertar as coisas?

— Então façamos o seguinte — Ares surgiu detrás de Dionísio, colocando a mão direita sobre seu ombro e o girando para trás, para que o olhasse no rosto cheio de fuligem. — Por mim, não há problema nenhum em os sátiros dominarem a linha de frente do castelo, aquela ainda antes da muralha de fogo, matarem os monstros por nós e, é claro, sobreviverem à guerra.

Houve cochichos entre os sátiros assustados perto do portão fechado. Dionísio ergueu uma sobrancelha.

— Minha proposta — Ares continuou — é que, se um número suficiente de sátiros sobreviverem à Batalha... — ele sorriu — ...vocês terão o meu pedido de desculpas.

Após trinta segundos de silêncio, Dionísio balançou a mão direita em desprezo.

— É impossível discutir com vocês.

— Sendo assim, nada de desculpas.

— Já é suficiente — Poseidon disse, colocando-se entre os dois deuses. — Não temos tempo para isso. Leve os sátiros de volta, Dionísio. Ares, volte ao que estava fazendo.

A ordem de Poseidon pareceu animar os sátiros, embora o ancião e Dionísio compartilhassem da mesma expressão de desgosto. Apolo acompanhou enquanto Ares dava a volta em torno do deus do vinho, mantendo o olhar fixo nele e caminhando com a mão sobre a bainha da espada até sair.

Apolo olhou para Atena. Ela, por sua vez, olhava para o céu sem estrelas, como se desejasse estar a milhas de distância dali. Uma linha vertical então se formou em sua testa, e ela se dirigiu a Dionísio outra vez.

— Não — disse, afastando Poseidon dele com delicadeza. — Ares pode ser impulsivo na hora de falar, mas ele tem um ponto.

Apolo sabia que era inútil pedir que a deusa da sabedoria ponderasse uma vez mais o que dizia, mas Dionísio não fez cerimônia.

— Atena, você era a última deusa em quem tinha confiança. Pare de tolices, por favor.

— Já disse o que penso e não temos tempo para ficar discutindo trivialidades — ela agravou a voz. — Se demonstrarem que realmente se importam com os semideuses dando sua vida para proteger sua base e conseguirem sobreviver à Batalha, terão seu pedido de desculpas — declarou, e nenhum sátiro pareceu inteiramente satisfeito com a decisão, embora Atena pouco se importasse. — O que está dito, está dito. Sem discussões.

— Senhora Atena — o ancião começou, mas ela não o atendeu.

— Vocês queriam uma oferta e aqui está ela — virou-se e começou a voltar para o castelo a passos pesados. — Agora me deixem sozinha.

Continuou andando, até fugir do campo de visão de Apolo, que ficou com a mesma expressão de choque que o resto do grupo perto da muralha.

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A primeira casa destruída pelo fogo foi o sinal que Percy precisava.

— Retomar posição inicial! — Percy gritou. Annabeth repetiu a ordem ao seu lado, e os ecos acompanharam as hordas de semideuses espalhados no campo.

A visão foi dificultada pela fumaça que se erguia, mas, em compensação, a ordem foi seguida no mesmo momento e todos os meio-sangue se reuniram na única longa fila usada para entrar na cidade. Percy sabia que aquela era uma grande perda de território, no entanto, atacar a Quimera protegida pelas chamas não estava nos planos.

Já lhe disse que as Batalhas são imprevisíveis?

— Já, já disse sim — Percy murmurou.

— Já disse o quê? — Annabeth se materializou em seu campo de visão, tampando parte da formação que Percy analisava.

Não que ele realmente estivesse prestando atenção.

— Nada, só pensei em voz alta.

— Você fez isso várias vezes hoje — ela pontuou – para a pouca felicidade de Percy –, com o capacete erguido sobre a cabeça e o rosto totalmente sujo de terra, suor e pó de monstros derrotados. — Eu percebi.

— É o estresse. Desculpe.

— Não se desculpe. Estou aqui para ajudar, lembra? — sorriu e logo escondeu o próprio sorriso atrás do capacete, quando o baixou.

Lembrar que ele estava prestes a perder Annabeth não era exatamente o que queria agora, mas acenou com a cabeça para ela. Apoiar um ao outro naquele instante era a fonte de toda a força que precisavam.

Um garoto pequeno se aproximou deles, correndo.

— Senhor, desculpe-me por atrapalhar.

— Não atrapalha. Diga.

Ele ergueu a viseira do capacete. Era Michael Yew.

Seus olhos viajavam assustados de Annabeth para Percy.

— As casas estão cheias de mortais adormecidos. A Quimera ateou fogo a todas elas.

Percy e Annabeth se encararam rapidamente. Então ela negou com a cabeça.

— Percy, eles não vão fazer isso.

— Não é uma escolha, Annabeth. Eles vão morrer.

— Nós também!

Percy bufou e olhou para trás. Tudo o que restava de sua tropa estava ali, imperfeitamente alinhada e raivosamente inspirada. Em volta, uma cidade parcialmente destruída por tempestade e chamas.

Ninguém estaria preparado para salvar mortais.

Vá em frente, meu Rei.

— Atenção! — chamou, na voz mais forte que encontrou.

Annabeth o cutucou.

— Percy, é melhor não...

— Quero que se dividam em duas linhas. Aqueles dispostos a enfrentar a Quimera, e os dispostos a salvar os mortais presos dentro das casas incendiadas.

Gritos de revolta ecoaram imediatamente. Muitos bateram a própria espada contra o escudo. Clarisse, que liderava a linha de Ares, vocalizou o sentimento.

— Você enlouqueceu? — berrou, marchando com ódio para cima dele. — Acha que estamos aqui para carregar mortalzinhos adormecidos — Clarisse forçava uma voz teatralmente carinhosa — como princesinhas para cima e para baixo?

Percy olhou para os meio-sangues. Ninguém parecia querer discordar dela.

— É difícil, senhor — Yew disse. — Muitos aqui foram abandonados pelos pais mortais ou tiveram irmãos denunciados à Lei por eles.

— Outros simplesmente nos mataram — Clarisse completou, sem a cortesia do primeiro.

O herói olhou para sua guardiã. Era impossível saber a expressão de Annabeth, escondida pelo capacete.

Ela, no entanto, não discordou dele dessa vez.

— Faça o que for melhor para todos — disse simplesmente, como uma sábia conselheira. Aquilo provavelmente custara muito dela, e Percy queria fazer isso valer.

Olhou para Clarisse.

— Ainda sou um rei que necessita de um povo o qual governar. Um dia eles acordarão do sono e verão sua cidade e suas famílias destruídas. E se revoltarão contra mim, e todos nós morreremos. Sobreviveremos a Cronos para morrermos nas mãos de mortais. O que acham disso?

Clarisse não deu nenhuma resposta inteligente dessa vez. Aliás, ninguém respondeu. Mas tampouco saíram de seus lugares. A mágoa que carregavam era tão sólida que parecia pesar-lhes nos ombros.

— Certo. Se ninguém vem por bem, precisarei agir como rei — disse. — Eu ordeno que a terça parte dessa tropa venha comigo para resgatar os mortais. Agora.

Quanta coragem.

Ninguém gostou da ordem, obviamente. Mas, para a breve surpresa de Percy, a ordem foi repetida. Em pouco tempo, uma nova pequena tropa havia se formado. Ela parecia carregar muito mais ódio que a principal, que enfrentaria a Quimera.

Não era como se houvesse alguma escolha, na verdade.

— Eles ainda vão fazer você pagar por isso — Clarisse rosnou enquanto passava por Percy, para o divertimento do rei.

— Você não acha que eu já pago um preço substancial?

— Não — retrucou, antes de voltar para seu comando.

Percy se virou e prosseguiu para a primeira rua. Annabeth o seguia, como uma sombra. Apesar de nada haver dito até então, seu cenho franzido e os lábios curvados para baixo revelavam um lado de sua história que Percy tinha pouco conhecimento sobre. Aliás, não havia muito o que soubesse mesmo sobre ela. Gostaria de ter o tempo necessário para descobrir.

Afastou-se um pouco, caminhando mais rápido que os outros.

— É melhor parar de falar um pouco e me mostrar o caminho — sussurrou para o vazio. Dessa vez, Annabeth não pareceu ouvir.

Você já está nele.

— Ótimo — e continuou.

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— Percy, eles têm motivos.

Annabeth havia se alinhado a ele e falava baixinho. Seu olhar era focado no chão.

— Eu imagino — Percy respondeu. Mas não era bem isso. — Quero dizer... todos nós estamos enfrentando nossos fantasmas. Eu só quero que todos os vençamos ainda hoje.

Ele ouviu ar batendo contra o metal dela, indicando que sorriu.

— Suas intenções são as melhores. Mas algumas coisas tomam tempo.

— Então, esperaremos — respondeu ele, que ficou aguardando até que ela o olhasse e a conexão herói-mão se formasse.

Essas conversas silenciosas eram as piores.

— Aqui! — um Stoll gritou mais à frente, parado diante de uma casa em chamas. Em seguida, derrubou a porta de madeira da frente. Uma nuvem cinza o escondeu.

— Estamos indo — Percy avisou enquanto ele e Annabeth corriam. — Os demais — apontou para os que estavam atrás e depois apontou para a direita — adentrem a rua e procurem por mais casas.

Quando entraram na casa, encontraram a família reunida na sala, abraçados e adormecidos.

— Eles souberam que algo estava errado quando o céu escureceu — deduziu Annabeth. Ela parecia atordoada pela cena. — Quiseram se proteger, creio eu.

— Precisamos encontrar um lugar para onde levá-los — Percy disse, observando Annabeth e seu silêncio característico em situações como essa.

— Há um mercado para baixo dessa rua que não foi atingido — o filho de Hermes informou. — Seria bom levá-los para lá enquanto é seguro.

— Correto. Annabeth, poderia avisar aos outros grupos para onde estaremos levando os mortais?

Annabeth não demonstrou sinais de que ouvira a ordem. Continuava olhando para a família como se fossem acordar a qualquer segundo e devorá-la.

— Annabeth? Annabeth?

Ela despertou e olhou para os garotos. Afirmou com a cabeça.

— Eu ouvi a ordem, desculpe por não responder.

— Desculpada. Poderá segui-la?

— Sim — garantiu. — Imediatamente. Com sua licença.

No caminho para a porta, ela parou mais uma vez. Olhou para trás e apontou para Percy.

— Não suma — pediu, ao que Percy respondeu positivamente.

— Estarei aqui.

É bom estar mesmo. Quero encontrá-los juntos.

Percy se arrependeu no mesmo instante da promessa, mas Annabeth já havia se certificado e saído da casa.

— E então? — Travis Stoll disse. — O que fazemos agora?

Percy o encarou.

— Ora, devemos levá-los até lá.

O menino continuou em silêncio, como se a ordem fosse uma surpresa.

— É — Percy confirmou para expulsar suas dúvidas. — Nós mesmos os carregamos.

Travis olhou para a família e suspirou.

— Agora sei por que ficaram tão revoltados.

Percy não queria voltar a esse assunto. Colocou os braços sob um dos corpos e o levantou com delicadeza, ante o olhar de choque do outro.

— Vamos, eu levo a mulher e você leva a filha, depois voltamos para buscar o marido.

— Mas Annabeth disse que você tinha que...

O herói olhou sério para ele, interrompendo-o.

— Eu estarei aqui de novo. Agora vamos ser rápidos que ainda temos outras casas para entrar.

Veremos.

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O mercado era relativamente longe da casa, mas a mulher era suficientemente leve para que Percy a carregasse durante todo o caminho sem problemas. Travis o seguia logo atrás, carregando a moça como se fosse de alguma forma venenosa. Ao longo da travessia, Percy viu outros semideuses fazendo o possível para carregar os mortais, fosse usando os braços ou improvisando carroças.

Nenhum deles estava contente pela tarefa, mas a faziam sem questionar. Percy sabia que eles mereceriam algum tipo de recompensa por isso mais tarde. Nenhum deles cresceu com pais mortais tão amorosos quanto os seus.

Os mortais eram deixados com cuidado no mercado. Percy sorriu brevemente quando pensou na confusão que seria quando, do nada, acordassem ali sem ideia de como ali foram parar. No entanto, desde que estivessem vivos, sua missão estaria cumprida.

Voltou caminhando pela parte de trás do mercado, de onde conseguiu ver Annabeth muitos metros acima, na parte alta da rua, repassando algumas ordens.

Olhe à sua direita.

Ele obedeceu imediatamente. Tudo o que viu foi mais uma casa incendiada, um pouco afastada das demais, com um grande quintal em volta.

Venha me encontrar.

Percy sentiu pela primeira vez o perigo que havia naquela frase, que se repetira em sua mente o dia todo. Olhou para Annabeth outra vez e a urgência de chamar por sua ajuda o dominou. Qual fosse o motivo pelo qual Cronos para lá o enviava, ele não queria ir sozinho. Mesmo que aquela fosse a última coisa que enfrentariam juntos, ele queria estar ao lado dela.

Mas uma rajada de vento gelado levou para longe esses pensamentos. Mechas do cabelo de Annabeth passearam por seu rosto delicado e o fizeram lembrar o que ele estava prestes a perder nos próximos minutos.

Venha me encontrar.

Percy colocou a mão sobre o punho de Anaklusmos e engoliu o medo e a solidão de uma vez.

— Eu preciso fazer isso sozinho.

E correu para a casa, rápido o suficiente para que ninguém o visse e rápido o bastante para separá-lo de sua última visão de Annabeth, no topo da rua, tão bela quanto sempre.

A casa exalava fumaça pelas janelas e pela porta aberta, como um animal respirando e, que a cada fôlego, pensava ser o último. Percy caminhou com cuidado ao seu redor, procurando uma entrada segura. Algo nela era tão atraente que o menino simplesmente ignorou o que havia o redor. Não era importante.

A única entrada possível era pela frente. As janelas, como olhos, o convidavam.

Entre nas chamas, semideusinho da água.

Entre nas chamas.

E Percy entrou.

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O trono estava diante dela em toda sua glória – mesmo estando vazio e em uma sala escura e dominada pelo medo.

Mas Atena ainda o via. Sentado em postura reta como as medidas de uma estátua perfeita, o rei Leonard possuía uma maneira característica de manter a coroa sobre sua cabeça: um pouco inclinada, como se posta ali com pouca preocupação. Mas Atena sabia que ela só ficava assim pois, minutos antes de ter de comparecer à sala do trono, estava escondido na biblioteca, olhando para um livro em suas mãos.

Talvez se não fosse tão interessado por Atena, provavelmente Atena não teria se interessado tanto por ele.

Cabelos dourados, olhos azuis, mente sagaz. Tinha tudo para ser um governante poderoso, mas se deixou levar por sua imaginação. Aquilo que Atena considerava sua maior e melhor característica terminou por ser sua morte — e a morte de várias outras crianças. Não, não era só o sangue do próprio filho que Atena carregava nas mãos.

Era o sangue de muitas, muitas crianças pelos últimos cento e dez anos.

Em seu íntimo, sabia que a culpa não era inteiramente sua. Jamais poderia prever que Hermes seria dominado por Cronos e rasgaria caminho através da única brecha que ela deixou. Mas, e se não tivesse deixado? Não teria servido de atalho. As coisas poderiam ter sido diferentes.

Entretanto, naquele momento, ela concluía que jamais seria capaz de saber o que teria acontecido.

Mesmo assim, quando olhava para o trono, não via o rei Paul ou o príncipe Perseus.

Via apenas Leonard.

— Eu sempre soube que seria questionada quanto a isso.

Atena despertou violentamente de sua reflexão e olhou à sua esquerda. Parada em um vestido de seda cor-de-rosa e olhando para o mesmo trono que ela, estava Afrodite.

A deusa retribuiu o olhar com um sorriso tímido.

— Pelo menos estamos sozinhas — cochichou.

Atena olhou para frente outra vez. Começou a enxergar o trono ligeiramente embaçado.

— Estou condenada a jamais tirar isso de minha mente.

— Bem, todos temos nossos castigos pessoais.

A deusa da sabedoria passou uma mão atrapalhada sobre o rosto e riu em escárnio.

— Pessoais? O que fiz recai sobre todos! Desde as crianças inocentes até esses sátiros perturbados... tudo, tudo recai sobre quem não merece. Tudo por minha causa — ela fungou, inspirou longamente e olhou para os lados. — E eu não sou capaz de consertar nada disso.

Afrodite mantinha-se como uma fonte de calmaria ao seu lado.

— É provável que em nada a surpreenda o que vou dizer, mas repito que a culpa não é sua.

Após um período de silêncio, Atena olhou para a deusa. Ela era a única coisa colorida naquela sala inteiramente cinzenta.

— Poderia então transferir toda essa culpa para você?

— Creio ser exatamente essa a razão da minha existência.

— Por que você faz isso? Você sabe que me jogou nessa situação. Você sempre faz isso. E você sabe que não vai durar. E olhe tudo o que nos custou.

Afrodite baixou o olhar para as mangas do próprio vestido. Ajeitou-as e só então olhou para Atena outra vez. Seu rosto era duro como Atena poucas vezes o vira.

— Não é dessa forma. Eu nunca sei.

Atena ri, soltando ar pelo nariz. Afrodite não se abala.

— Você é a deusa da sabedoria, então pode se esforçar um pouco mais para entender como eu trabalho — repreendeu, e logo depois adoçou a voz. — O que entrego a vocês é uma dádiva. Mas uma dádiva trabalhosa. Mais como uma pedra não lapidada. O amor é uma pedra não lapidada, e amar é justamente lapidá-la.

Enquanto falava, seus olhos refletiam milhares de cores, como se inspirados pelo tema. Atena simplesmente olhou para o lado, focalizando o trono outra vez enquanto Afrodite discursava. Aquilo era um sinal de querer ouvi-la e não querer ao mesmo tempo.

Independente disso, Afrodite continuou.

— Vocês poderiam lapidar até encontrar o que havia dentro. Ou... — ela suspirou. — um de vocês poderia simplesmente usar a pedra para atirar no outro quando estivesse com raiva.

Ao olhar para cima, Atena viu que a outra deusa olhava para o trono de novo. Não parecia feliz ou satisfeita com o que dizia.

— Eu dei meu presente — concluiu, e focou em Atena. — Vocês escolhem como usá-lo. Mas nem sempre suas cabeças fazem a mesma escolha, e isso definitivamente não é culpa sua... — deu de ombros. — E nem minha.

Afrodite continuou ali por mais alguns segundos em silêncio. Então se virou para a direita e deixou a sala do trono com passadas delicadas, embora parecessem pesadas de frustração.

Atena ficou sozinha de novo, mas agora era o trono quem a encarava.

.

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Foi quando Percy não respondeu ao seu chamado pela primeira vez que Annabeth soube.

Ele havia sumido.

— Eu sabia — esbravejou para si mesma, enquanto as pernas a levavam correndo pelos ambientes da casa em chamas que podia alcançar. — Eu sabia!

Saiu do prédio e olhou em volta. Nada.

Desatou a correr entre construções despedaçadas, paredes de madeira ao chão sendo consumidas pelo fogo e nuvens e mais nuvens de fumaça.

— Onde está Percy? — gritava a quem ouvisse primeiro, com uma mistura de fumaça e desespero amarrados à garganta. — Alguém viu Percy?

— Desculpe, Annie... não o vi — um filho de Hefesto respondeu conforme ela passou por ele correndo. E essa frase se repetiu por todos eles, não importando o quão longe ela corresse.

Em algum momento, ela tropeçou em Travis.

— Annabeth? — ele estava na parte de trás da casa em que ela deixara Percy. — Está tudo bem?

Ela finalmente parou para respirar um pouco.

— Percy sumiu — disse de uma vez, com a dor no peito a aumentar.

— Como assim? Pensei que estivesse com você!

— Quando o viu pela última vez?

— Estávamos voltando do mercado para buscar mais um mortal. Então ele sumiu — resumiu, ainda mais confuso do que ela.

Annabeth escondeu o rosto cansado nas mãos.

— Percy me quer longe da Batalha. Ele não entende e se recusa a tentar.

— A culpa não é sua — Travis colocou uma mão em seu ombro direito, por compaixão. Ele jamais saberia, mas uma pesada lágrima de ódio descia pelo rosto dela. — Você não pode controlá-lo.

Ele estava certo, e ela sabia. Mas isso só piorava a situação.

— Então a minha existência é completamente desnecessária — retrucou, e Travis não respondeu mais. — Percy pagará um preço muito mais caro por isso. Mais caro que antes. Tudo vai por água abaixo.

Em volta, apenas as casas incendiadas e semideuses carregando corpos de mortais dormindo. Não havia nada nas árvores, nem escondido no subsolo, nem ninguém havia retornado para a formação principal. Simplesmente não havia Percy.

E, sem Percy, Annabeth se sentia menos uma guardiã e muito mais uma garotinha assustada.

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Bem-vindo.

Percy teve a ligeira sensação de já ter estado ali antes. Mas o fogo que consumia a residência não permitia um fácil reconhecimento dela. Tudo o que ele percebia era que a casa tinha uma cerca – agora queimada – e uma pequena árvore perto dali tinha chamas em seus galhos, como se fossem frutos assustadores.

Só mais cinco passos.

A porta já havia caído. Dentro, alguns móveis ardiam. A fumaça invadiu suas narinas e os olhos começaram a verter água. Percy sentiu-se desidratado, mas continuou.

Só mais dois passos.

— Já estou aqui dentro! — Percy gritou e, por um momento, temeu que o teto viesse abaixo por conta do grito. — Onde está você?

Dois passos.

Com uma respirada profunda, Percy deu os dois malditos passos. Cinza saltou de onde ele pisou com força, e a fumaça continuava a sufocá-lo lentamente.

Pilar à sua direita. Abaixe-se.

Realmente havia um pilar ali, dois metros de distância dele. Ao prestar atenção nele, Percy teve a impressão de ter visto um vulto.

Ao se abaixar, ele viu uma garotinha.

Ela estava escondida atrás do pilar, de joelhos, com os cabelos negros caindo parcialmente sobre o rosto de tom azeitonado. Seus olhos eram duas bolas negras que espionavam Percy por trás das mechas da franja.

— Ei — Percy a chamou. — Está tudo bem. Vim salvá-la.

A menina se escondeu ainda mais atrás do pilar.

— Não — respondeu, e sua voz era tão baixinha e delicada que parecia um sussurro. As mãozinhas pequenas seguravam uma boneca de tecido com um B bordado nela. — Você veio me destruir.

Percy parou. Um gosto amargo de mil anos subiu por sua garganta, e ele finalmente percebeu que os olhos daquela menina eram do dourado mais dourado que já vira em toda a sua vida.

E eles o encaravam.

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/////////

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Poseidon estava parado, exausto, no centro do quarto de Percy. Havia olhado em cada canto, em cada estante, e nada encontrara. Ele já não tinha mais tempo. Cada segundo era um passo mais perto de tudo desabar, e não havia mais o que fazer ou em quem confiar.

O deus ergueu o tridente em vertical e preparava-se para batê-lo contra o chão e se teletransportar. Todos os deuses estavam espalhados nas demais partes do castelo e tudo parecia em ordem até então, e Poseidon realmente torcia para que ninguém sentisse sua falta. Antes que partisse, porém, algo impediu que continuasse.

— Eu sei aonde está indo — uma voz jovial e feminina disse com firmeza, vindo pela porta. — Também sei que não deveria.

Poseidon girou depressa para trás, encontrando nada mais que uma pequena e mortal garota vermelha. Ela usava farrapos, tinha o rosto sujo de terra e muito provavelmente poderia ter corrido milhas para encontrá-lo. Os braços estavam unidos ao peito, parecendo proteger alguma coisa... talvez ela mesma. O deus a reconheceu: Rachel, a prima de Percy.

— Saia daqui imediatamente. Não sabe com quem está falando.

Não era pessoal; nada tinha ele contra a garota. Mas seus nervos não respondiam bem e as palavras dela o deixaram atônito. Poseidon não queria que ela percebesse que o atingira.

Mas ela sequer se moveu.

— Eu sei quem você é — assegurou, de braços fechados. — É o pai de Percy. É exatamente com quem devo falar.

É só uma mortal, pensou Poseidon. Apenas a prima mortal de Percy.

— Não temos tempo para conversas. Você deve buscar refúgio e eu... preciso continuar o que estava fazendo.

Ela ergueu o braço com a palma estendida, pedindo tempo. Desprotegido, o outro braço revelou estar segurando algo contra o peito da garota, mas a manga do vestido que usava não permitiu uma maior visão do que seria.

— Por favor — o tremor em sua mão deixava óbvio que aquele era o último lugar em que ela queria estar, mas algo mais forte a mantinha ali —, apenas uma pergunta. É tudo o que preciso.

Poseidon continuou encarando a garota, enquanto ela unia os braços novamente.

— O senhor obviamente sabe que tenho sonhos. Sonhos... que dizem o futuro, de certa forma. E eu os pinto em telas para não esquecê-los. São geralmente sonhos violentos. Escuros. Como o céu lá fora. Eu já pintei esse dia — contou, com os olhos pousados na janela atrás dele. Lentamente, ela os trouxe de volta para ele.

O verde em seus olhos era diferente dos de Percy. Era claro como uma esmeralda, e as íris trabalhavam da mesma forma que a pedra: brilhantes, mas duras. Frias.

É só uma mortal que geralmente tem premonições por meio de sonhos, o que é normal, mas ainda uma mortal.

— É um fardo deveras pesado o que carrega, mas posso garantir-lhe que não é mais pesado do que o de seu primo.

— Quanto a isso, não tenho dúvidas — baixou a cabeça para o próprio peito e deu alguns passos para frente. — Apesar dos constantes pesadelos por toda minha vida, sempre procurei me achar abençoada — Rachel levantou a cabeça de novo. — Infelizmente, algumas vezes nos prendemos tanto a esse desejo de se sentir abençoado que, quando as coisas são mais profundas do que parecem, elas inicialmente fogem ao nosso entendimento. Ou talvez apenas não queiramos entender.

Poseidon ouvia oceanos rugindo em seus ouvidos.

— Gostaria que não fugisse de nosso assunto, pois tempo nos é um luxo agora.

Rachel sorriu.

— Não tema, estamos tratando exatamente do mesmo assunto.

— Seus sonhos? Sinto que não seja o deus mais indicado...

— Uma pintura. De um livro.

Poseidon se calou. As poucas dúvidas que ainda tinha quanto às intenções da mortal se desfaziam conforme Rachel abria os braços e revelava, escondido maternalmente em seu peito, um livro de capa vermelha.

O livro que ele procurava.

— Certa vez, algum tempo atrás, sonhei com um livro. Ele estava todo aberto sobre o solo, com suas páginas reviradas, de forma que nunca pude saber como era sua capa. Mas lembro-me das páginas rasgadas. Sonhei com esse livro noite após noite durante uma semana. A cada vez que o via de novo, ele tinha menos páginas, como se alguém continuasse a arrancá-las, às vezes queimá-las. Na última noite, não havia nada.

Ela o segurou em suas mãos como se fosse lê-lo, mas não o abriu. Apenas o acariciou.

— Nunca fiz essas pinturas — continuou — pois a visão não parava de mudar. Ao fim, passei um dia inteiro confusa sobre seu significado. Talvez até tivesse vindo a pintá-lo no outro dia, mas... — suas sobrancelhas se franziram, tentando alcançar a recordação — na próxima noite, sonhei com uma batalha. Uma terrível e sangrenta batalha. Um de meus piores pesadelos até hoje. É fácil deduzir qual sonho se gravou mais forte em minha mente e se tornou uma pintura. Os outros foram rapidamente esquecidos.

Rachel virou a capa do livro para Poseidon. Nela estavam desenhados um castelo e nuvens ao seu redor, em dourado. Apenas o deus sabia o quanto esses traços adoráveis o aterrorizaram nos últimos séculos. Seu tridente esquentou em sua mão.

A mortal esperou enquanto o deus observou o livro. Ela parecia menos nervosa que de início, mas definitivamente não menos cansada.

— Apenas uma pergunta.

— Faça — o deus do mar fechou os olhos, sem qualquer ideia do que viria.

— Você alguma vez já contou a Percy a profecia que existe contra ele?

Poseidon abriu os olhos de repente. Sua força se esvaiu.

É uma mortal que sabe da profecia. Não é mais uma mera mortal.

— A profecia jamais disse que o herói era Percy! — desabou, erguendo o tridente ao ar.

Rachel retraiu-se no mesmo instante, trazendo o livro de volta para si.

— Eu sinto muito, senhor Poseidon, mas precisa admitir que todos os sinais históricos apontam justamente para...

— Amaldiçoados sejam esses sinais! — seu rosto contorceu-se e ele avançou para cima de Rachel com as veias da garganta a pulsarem. — O que acha que eu estava tentando fazer aqui? Há dezesseis anos gasto cada minuto da minha vida mantendo Percy distante de qualquer contato com a profecia ou longe de qualquer decisão estúpida, e agora que finalmente a Batalha chegou, você aparece para frustrar todos os meus planos de novo!

Rachel se afastava de costas até alcançar a estante encostada na parede atrás de si. Toda sua coragem de antes desapareceu e agora ela era apenas o que sempre foi: uma mortalzinha assustada.

— Nunca fiz nada contra ti! — desesperou-se e derrubou vários livros das prateleiras.

Acima dela, Poseidon era uma onda gigante em dia de tempestade no mar.

— Ah, nada? Nada? — o coração do deus dividia-se em fúria e dor. — Você acha que eu não sei quem lhe disse isso?

Rachel se escondia atrás do livro vermelho, o que piorava a visão que Poseidon tinha dela.

— Não bastou da primeira vez, não bastou a primeira garota, Delfos? — sua visão tornou-se embaçada e, sua face, úmida. — Não basta? Nunca basta?

Poseidon mantinha o tridente ao ar, mas sabia que não devia. Ele já se arrependia do que fizera a primeira vez. Rachel era tão inocente quanto a outra garota. Não queria fazê-lo de novo, mas sentia todo o peito se rasgar quando se lembrava da profecia.

Durante seu silêncio, a menina o espiou por trás do livro, pálida como uma lua cheia.

— Por favor — ela parecia tirar as forças do livro, de tanto que cravava as unhas em sua capa de tecido. — Percy precisa saber. Ele precisa de sua ajuda, mas não dessa maneira. Não assim.

— Eu... não posso — sua voz mudara drasticamente para um sussurro. — Você não entenderia. Não posso deixá-lo prosseguir. Não posso perdê-lo assim. Se ele souber, não hesitará em seguir o caminho do Oráculo. Ele não compreenderia a tragédia que o espera no final.

— Profecias não são tão facilmente compreendidas, talvez estejamos enganados — ela tentou mais uma vez. Grande erro.

— Eu a estudo há cem anos! — Poseidon voltou a gritar e ameaçar Rachel com seu tridente assustadoramente luminoso. — Malditos cem anos! Você realmente crê que eu não sei qual o futuro que aguarda o meu filho?

Rachel se escondeu mais uma vez, com os olhos fechados apertados. Poseidon lembrou-se das masmorras. Se pudesse enviá-la para lá apenas até o final da Batalha, Percy nunca saberia.

Ele apontou o tridente para a garota. A arma reluziu em verde mar.

— Essa conversa jamais deverá deixar essas paredes.

Então vai me enviar às masmorras também?

O tridente se apagou. Poseidon o baixou, finalmente derrotado.

— Eu devia tê-lo esperado, Apolo.

O deus do sol surgiu das sombras como fazia todas as manhãs. Tinha as mãos unidas nas costas e os olhos fixos em Poseidon. Ao vê-lo, Rachel suspirou de alívio e jogou o livro ao chão.

— Ou, quem sabe, você também pode me amaldiçoar eternamente e fazer o espírito de Delfos desaparecer por cento e vinte anos também?

Poseidon virou-se para ele. Apolo tinha os olhos estreitos, os lábios duros. Poseidon não sabia dizer no que ele pensava. Talvez raiva, talvez decepção? Talvez os dois. Muito provavelmente, mais que os dois. Depois de tantos anos de apoio mútuo, era difícil acreditar numa traição como aquela que ele cometera contra o amigo. Por quanto tempo, então, será que Apolo havia feito vista grossa sobre os fatos?

— Você pode ir agora, Rachel — Apolo disse, de olhos ainda fixos ao outro deus. — Já terminamos nosso trabalho por aqui.

A menina ficou em pé e tentou se recuperar do susto. Seus olhos arregalados analisaram Poseidon e Apolo brevemente antes de sair pela porta, agarrada ao livro vermelho.

Quando sozinhos, Apolo balançou a cabeça negativamente.

— Eu preferia acreditar que você não tinha nada a ver com o desaparecimento do Oráculo.

— Poderia ter continuado acreditando.

— Da mesma forma que você acredita que pode impedir o futuro de Percy?

Poseidon franziu a testa e olhou fundo nos olhos de Apolo.

— O Oráculo nunca me perguntou se podia tocar no meu filho — sua voz era profunda, como se vinda de um buraco em seu peito. — Apenas tocou.

— Ele não pergunta. Você quebrou o juramento.

— Não fui o único, mas essa maldição parece pensar que sim.

— E você não acha suficiente o que aconteceu a Hades?

— Ora... — um sorriso carregado de sarcasmo se plantou no rosto de Poseidon — mas não fui eu quem disse que não podemos prever o fim das profecias e que, talvez, fosse algo bom.

Apolo claramente sentiu o impacto das palavras dele, pois olhou para o chão e soltou uma nuvem de ar quente pela boca. Fechou os olhos por alguns segundos.

— Eu não vou esperar para ver — Poseidon completou para o silêncio.

— Tenho grande amor por você, Poseidon — Apolo olhou outra vez para o amigo. — E estou realmente disposto a perdoá-lo por ter escondido o Oráculo de todos nós por todo esse tempo, se prometer-me abandonar seus planos de impedir a profecia.

Poseidon concluiu que discutir era inútil e passou por Apolo, caminhando para fora do quarto.

No caminho, respondeu-lhe:

— Agradeço sua compaixão, mas ela não compensará as perdas que teremos.

— Creio que agora terá que compensar.

Ele sequer havia alcançado a porta quando olhou para trás novamente, apenas para ver Apolo virado em sua direção. Não tinha mais uma expressão de súplica, mas, agora, de certeza. Ergueu sua mão direita fechada em punho ao ar, virando-a lentamente para que a palma se abrisse para cima.

Ao fazê-lo, luz dourada emanou dela como se viesse de uma pequena fonte. Aos poucos, Poseidon conseguia distinguir uma imagem. Quando a luz parou de tremular e tornou-se branca, Poseidon viu uma casa de madeira em chamas.

Apolo olhava para a casa também. Sem retribuir o olhar desesperado do outro deus, ele somente suspirou.

— É tarde demais, Poseidon.

.

.

///////

.

.

Os olhos da menina pareciam um lago de ouro, mas Percy já ouvira falar que o diabo pode ser tão belo quanto um anjo.

Ele se ergueu lentamente.

— Cronos — murmurou, desejando intensamente estar errado.

Por alguns segundos de hesitação da garotinha, ele pensou que estava errado mesmo. Mas, logo depois, ela sorriu.

— Olá, herói. Você demorou.

Percy arrancou o capacete e o atirou longe. A garota sequer tremeu. Aparentava uns doze ou treze anos, e ainda segurava a boneca como um sinal de inocência.

O menino balançou a cabeça, atordoado.

— Isso não é possível.

— Onde está sua Guardiã? — ela o interrompeu. — Deixou-a morrer antes mesmo dos jogos começarem, ou apenas quis me encontrar sozinho?

— Annabeth não está vindo — Percy estreitou os olhos para a garotinha. Não sabia como ser cruel com ela.

— Sua coragem sempre me chamou a atenção — ela abraçou um pouco mais a boneca.

— O que... — Percy sentia o ar fugir dos pulmões — ...o que está acontecendo aqui?

Ela ficava parada no meio da fumaça, de pés descalços e vestido rasgado, olhando para os lados em confusão.

— O que costumavam lhe dizer que eu era? — pediu, séria. — Um monstro sem coração que o partiria ao meio quando o visse? — inclinou a cabeça, analisando-o. — Provavelmente foi isso. Mas, admita. É mais fácil do que perceber que eu tenho o rostinho meigo de uma menina de doze anos.

Ela tinha razão. Nenhum monstro de doze cabeças seria pior que isso.

— Bem — ela continuou —, a escolha de não trazer sua guardiã com você foi sua.

Isso o irritou.

— Pare de falar em Annabeth!

Imediatamente culpou-se por gritar com uma criança, mas a garota pouco se importou. Passou a mão sobre a cabecinha da boneca, acariciando-a.

— Você ao menos conhece a função dela aqui? — perguntou, após acariciar a boneca e a abraçá-la de novo, fazendo Percy se sentir tão infantil quanto ela.

— Ela é minha guardiã — respondeu, e sentiu um tolo no mesmo instante.

A garotinha o parabenizou com um aceno de cabeça.

— Muito bem — começou e, enquanto falava, andava ao redor de Percy, estudando-o. — Mas falta alguma coisa. A única função dela aqui não é morrer para deixá-lo sobreviver, mas... evitar que tome decisões estúpidas.

O coração de Percy se apertou. Era aquilo mesmo que Annabeth fazia a todo instante.

— Ela é a filha da sabedoria, não é? — Cronos, a garotinha, continuou. — A força dela é a sabedoria. Se ela fosse, supondo, uma filha de Ares, ela o ajudaria a batalhar. No entanto, tenho um apreço diferenciado por filhos de Atena, e ela sabe disso.

— Por quê?

— Ah... — a menininha ainda caminhava à sua volta, perdida em pensamentos. — Batalhas com eles são mentais. Está tudo aqui dentro — bateu com o indicador ao lado da testa, exatamente igual Poseidon fizera na sala de Conselho. — É tudo uma disputa de força mental. Mas você sequer a trouxe!

O filho do mar não sabia como responder a nada daquilo. Não era isso o que esperava. Cronos sabia disso, e o encarava divertidamente, acompanhando sua agonia com um prazer claro.

Então ele parou de caminhar.

— Só uma pergunta, se me permite — disse. Percy não estava em condições de recusar. Aninhando a boneca de palha como um bebê, a menininha fez a pergunta em tom baixo. — Por qual razão você acha que as Mãos são recolhidas?

Foi preciso algum tempo até que ele percebesse a resposta implícita na pergunta. As cicatrizes da menina ainda estavam lá, e isso fez um arrepio frio descer por sua espinha.

Percy então flagrou-se balançando a própria cabeça energicamente, querendo negar a realidade. Quíron não lhe dissera aquilo. Ninguém o dissera aquilo.

Nem mesmo seu livro. Não podia ser real.

— Como espera que eu prossiga com minha missão de atormentá-los pelo restante dos séculos? — brincou, balançando as mãos ao ar para intensificar a fala sarcasticamente aterradora.

— Você usa os corpos deles? — Percy gritou, e os músculos da face estavam duros. — É isso?

A menina afirmou.

— Gostou dela? Ela tinha um irmão adorável. Não sei o que foi feito dele...

— Fazer inocentes pagarem por isso não faz sentido! É injusto!

Cronos fez a expressão da menina se contrair em irritação.

— Deveria dizer isso ao primeiro Guardião. Ninguém mandou que ele fosse ajudar a heroína. O destino dela era morrer. Ou talvez possa culpar os deuses...

— Não estamos presos ao destino — rosnou. — Não estamos.

— Ah, não? — a garotinha sorriu com maldade. — Bem, olhando para você, só vejo o quanto ainda tem a aprender. O Guardião errou. Erros custam caro aqui nesse mundo.

Percy arrancou a espada da bainha e a apontou para Cronos.

— Vamos acabar logo com isso.

O sorriso ainda estava lá.

— Não é isso o que quero.

— Você não irá levar Annabeth. Nem hoje, nem nunca.

A menina balançava a cabeça em decepção, como se Percy fosse um aluno desobediente.

— Isso é uma má ideia, semideus. Uma má ideia.

— Não estou aberto a conselhos.

— Não é um conselho. Na verdade, isso me faz muito feliz.

Ela se aproximou da ponta da espada e a tocou com o dedinho indicador.

— Você pode não saber, Perseus... mas é responsável por algo muito maior acontecer.

— Do que você está falando?

— Quão ingênuo, herói. Quão ingênuo... — ela afastou a mão da espada e ficou ali, refletindo por alguns segundos.

Depois de aparentemente ter tomado uma decisão, encheu os pulmões com novo ar.

— Você abertamente desistiu da Batalha em nome de sua guardiã. Darei-lhe vinte e sete dias para pensar no assunto e mudar de ideia. Caso se atrase, Annabeth será minha e você me enfrentará sem sua Mão. Feito?

— Mas eu não estou desistindo de nada!

— Ou você me enfrenta com sua guardiã, ou não me enfrenta de maneira alguma! — a voz da garotinha repentinamente se tornou gutural e sua face delicada se desfez, voltando apenas um tempo depois como se recuperasse a gentileza rapidamente perdida. — Precisa aprender, meu caro herói, que certas regras nunca mudam.

Ele observou impotente enquanto a menina deixava a boneca cair ao chão e estralava os dedos.

— Eu o verei em breve, Herói. Vinte e sete dias, e Annabeth voltará para mim.

Não! — Percy impulsivamente gritou e jogou um braço na direção dela, sem saber ao certo o que fazer, apenas sabendo que não poderia deixá-la ir... mas era tarde.

Uma nuvem negra deixou os lábios da garotinha, que caiu antes que ele a alcançasse. Percy largou a espada e correu para ela, mas ela se desfez como luz dentro de seus braços, restando apenas a boneca de pano.

Silêncio. Sua cabeça doía e nada daquilo fazia sentido. Parecia mais um pesadelo do qual não acordava nunca.

No entanto, após vários minutos no escuro vazio da casa relembrando tudo o que vira, Percy foi iluminado pelo sol do dia. O feixe de luz adentrou o ambiente através de uma janela meio quebrada e o aqueceu, como se sempre houvesse estado ali.

E assim, sem nem mesmo precisar olhar pela janela, ele soube em seu coração que aquele era o fim da Batalha. De toda a Batalha.

Por enquanto.


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Notas finais do capítulo

Olaaaaaar.
Eu já sei, estou atrasada. Eu realmente tinha um capítulo 39 quase todo encaminhado na época em que postei o 38, mas infelizmente aquele modelo de cenas não funcionou. Não vou explicar tudo porque não faria nenhum sentido pra vocês, mas saibam que não funcionou e eu precisei de bastante tempo até pensar em uma nova estratégia. E, nesse meio tempo, ainda temos a vida acontecendo... blergh.
.
Bem, eu gosto desse capítulo, das revelações dele, mas são bastante complexas e basicamente toda a raiz para a segunda temporada, então eu precisava tomar cuidado. Sim, ainda planejo manter essa história em temporadas! U-huuu! o/
.
Existem algumas coisinhas-inhas-inhas que não me agradam nesse cap, e até comentei isso lá na página, quando sem querer prometi postá-lo no meu aniver, mas não deu certo. Pra resumir: eu cansei de escrever caps de batalha. Sério. É muito cansativo. Sempre as mesmas expressões, cenários e tudo o mais... mas prometo terminar Antigos Escritos. Relaxem.
.
Em particular, adoro a Atena nesse capítulo. Não perguntem o porquê que nem eu sei.
.
Finalmente, eu tô curiosa PAKAS pra saber o que vocês acharam dessas últimas revelações de GdR. Eu vinha guardando isso há tanto tempo que eu nem sei explicar meio alivio por finalmente ter contado tudo! hahaha.
Primeiramente: não, Poseidon NÃO é um vilão. É só um pai incompreendido. Quanto aos outros mistérios, todos eles permanecerão para a segunda temporada ♥ MORRAM teorizando, adoro ler suas teorias. São meigas.
.
Hmmm, o que mais... to ouvindo Don't Threaten Me With a Good Time do p!atd agorinha e eu não consigo raciocinar muito com esse refrão tocando, então não me ocorre mais nada pra comentar. AHHH SIM, estou atualizando a página o tempo todo, Fiquem de olho lá pra lembrar que eu não morri ainda.
.
Por fim, o aviso que mais estou ansiosa para dar: esse é o penúltimo capítulo de GdR.
SIIIIIM.
Isso significa
que
quando eu aparecer aqui de novo
vai ser
pela
última
vez.
YAY.
.
Até lá! Beijocas :D



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