Guardiã do Rei escrita por Miss America


Capítulo 37
A Rebelião III - O Começo do Fim


Notas iniciais do capítulo

Espero sinceramente que essas 13000 palavras abaixo sirvam como um pedido de desculpas.



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I hope one day I am stronger than I feel

And I hope that it feels different than today

~ When You’re Young

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– Começou há algum tempo, não é? Algum tempo, não. Mais do que isso. Nós dois sabemos disso. Talvez eu tenha sido um pouco tola por não perceber antes, mas você não nos enganaria para sempre. De qualquer forma, isso não é de hoje. Há quanto tempo, exatamente? Bem, vamos começar pelo primeiro herói que, estranhamente, nunca retornou de sua missão, ao contrário de seus sucessores. Depois, a memória de Quíron ser arrancada dele, assim, de repente e sem explicações. Mais tarde tivemos o desaparecimento do Oráculo. Apolo foi questionado sobre isso, mas ele nada disse. Então, um ódio explícito e irracional contra semideuses – e a sua surpreendente aprovação, não é? – e a posição de Percy na sociedade, completamente suspeita. Annabeth por pouco não descobre que era a guardiã e... ah, claro, falando nela, onde ela está agora, mesmo? Sim, com Fritz. O sacerdote louco que você colocou aqui dentro do castelo e que causa arrepios em todos os que o observam por alguns instantes. Tudo isso forma uma espécie de quebra-cabeça que só você sabe montar. Só você conhece os motivos e os resultados de tudo isso. Creio que já está na hora de falar o que sabe, Hermes.

Quando a voz da deusa deixou de ecoar no vazio, ele ergueu os olhos. Estava trêmulo de raiva, espreitando a escuridão como um gato arisco. Estava exposto: amarrado a uma cadeira, viu-se sem escapatória ante o interrogatório de Atena.

Ela apareceu um instante depois. Emitia um brilho suave através de sua túnica cinzenta, mas não o suficiente para que Hermes pudesse localizar o lugar em que estavam. Tinha um olhar impassível e os lábios cerrados, intensificando a seriedade ao cruzar os braços.

Atena aguardou uma resposta sem pressa. Ao constatar o silêncio de seu interlocutor, ela inspirou profundamente.

– É mais difícil do que você pensava, não é? – ela arqueou a sobrancelha direita. – Espero que nunca tenha pensado que era fácil controlá-lo.

– Ele... ele já está quase... indo embora – sussurrou Hermes de volta, segundos antes de sentir uma forte pancada dentro de sua cabeça. Contraiu-se na cadeira enquanto a testa brilhava de suor e os cabelos loiros cobriam sua face.

– A questão é saber com qual de vocês dois eu estou conversando – retrucou Atena, que não moveu um músculo durante todo o tempo. – A propósito, ele já está indo embora para onde? – inquiriu.

– O que você fez foi... foi muito... perigoso – Hermes pontuou, ao mesmo tempo em que lutava contra a voz de Cronos dentro de si.

– Você não está com moral para me dizer isso.

– E você? – gritou Hermes repentinamente, e naquele momento soube que não era mais ele quem falava. – Você só está fazendo isso pela garota, sua filha. Você nunca deu a mínima importância ao príncipe nem...

– Hermes, estou falando com você – pediu Atena, em uma voz um pouco mais adocicada que antes; um pedido a um velho irmão. – Por favor, me responda. Não vamos fazer as coisas desse jeito. Sou sua última esperança de um retorno menos caótico ao Olimpo. Nenhum outro deus lhe dará a oportunidade que estou lhe dando. Por favor.

Um riso maldoso acaba por tirar toda a piedade que restava na deusa. Seus olhos levemente marejados automaticamente se secam e suas sobrancelhas retornam à usual posição: franzidas com gravidade, como se a raiva que sentia não coubesse dentro de si e se espalhasse por todo seu corpo.

– A deusa da sabedoria errou – a voz de Hermes zombava, mas as palavras vinham de outra mente. – Qual é a sensação? Saber que tudo isso é culpa sua?

– Basta! – Atena retrucou no tom mais frio que pôde. – Não vim aqui falar disso. Não vou deixar que me influencie. Não vou.

– Mas você sabe a verdade! – a voz destorcida de Cronos gritou, e, por um segundo, Atena pensou que as amarras celestiais não o segurariam, ainda que isso fosse impossível. – Por um mero mortal, Atena? E agora você quer criticar os outros deuses por suas paixões humanas, quando você se rendeu a uma?

– Não acredito que vamos retornar a isso – ela respondeu. – A história é muito mais profunda do que isso!

– Hermes superaria o filho, você SABE! – Cronos rugia. – O seu erro foi provocar a raiva dele.

Atena negava com a cabeça. Cronos tentava de todas as maneiras entrar em sua mente e ela sentia a batalha pesando contra seu cérebro. Era como se suas forças fossem sugadas aos poucos... aos poucos... Mas ainda havia tanto a ser feito. Ela não poderia fraquejar agora.

– Hermes estava à beira do precipício – argumentou. – Não precisaria de mim para encontrar você.

– Atena, Atena... provocar a fúria de um rei e de um deus ao mesmo tempo... instaurar a lei que mata seus filhos... onde está a deusa da sabedoria que conheci?

A figura de Hermes estava contorcida, suando em pleno outono inglês. Os olhos brilhavam dourados e em fúria, mas o sorriso era sedutor. Atena fechou os olhos por um segundo.

– A culpa não é minha.

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Minutos Antes

– Drew, largue-me.

– Pensei que íamos atrás de Annabeth! – reclamou Drew, puxando Rachel pelo braço, claramente desesperada. – Recuso-me a ir encontrar Luke!

Rachel, no entanto, parecia determinada. Andava arrastando a garota oriental, os olhos fuzilando o menino a dez metros de distância dele. Apareceram repentinamente em seu campo de visão, como se até então estivessem invisíveis.

Ou talvez fosse apenas o pânico que dominava Luke e que lhe provocou essa impressão. Ele não negaria isso.

Rachel! – suspirou ele. – Está viva!

A ruiva estacionou, agora a cinco metros. Seus olhos verdes o encaravam com uma mistura de desconfiança e surpresa.

– Luke? – chamou ela. – Você está... se preocupando comigo?

Suas palavras soavam cuidadosas ao extremo.

– Não sei – devolveu ele, automático. – Não sei de mais nada.

Rachel, vamos embora daqui enquanto temos tempo – sussurrou Drew à Rachel, mas ele conseguiu ouvir.

– Não! – pediu de repente, as mãos erguidas e a expressão amedrontada. – Por favor, não. Não vão embora.

Luke respirava pesadamente, não acreditando no que estava dizendo. Mas, irritantemente, nenhuma outra coisa lhe vinha à mente. Ele sentia como se fugisse de si mesmo, e o terror de estar sozinho, sem ninguém para lhe distrair dos próprios pensamentos...

...Pensamentos suicidas.

Rachel não tirava os olhos dele.

– Luke, você bateu a cabeça em algum lugar?

Ele parecia uma estátua aterrorizada. Respirava superficialmente, a expressão vazia.

– Sou um semideus – falou, a voz nada mais que um sopro sem força.

Rachel e Drew falaram ao mesmo tempo:

– O quê?!

– Sou um semideus! – repetiu o rapaz, mais para si mesmo do que para as garotas.

Drew se aproximou dele sem cerimônia. Pousou uma mão em seu ombro, ignorando o alerta de Rachel.

– Como soube? – perguntou, claramente não questionando a veracidade do que Luke dissera.

Ele ergueu olhos magoados para a menina.

– Meu pai – disse ele, e então a agarrou com violência pelos ombros. – Meu pai é um maldito deus!

Drew não reagia. Rachel correu na direção de ambos e os separou com dificuldade. Luke abraçou-se e fechou os olhos com força, como se houvesse recebido uma pancada. Rachel tentou ser dura com ele, mas Drew a impediu.

– Calma, Rachel – pediu ela, a voz doce e profundamente encantadora. – Eu conheço essa dor.

– Você não entende? – retorquiu a moça. – Dern Castellan é um deus. Um deus sedento por sangue, um deus que matava sua raça sem perder noites de sono por isso! – gritou.

Atrás dela, Luke sentia a garganta trancada e cabeça rodando, rodando, rodando.

– Como poderia ordenar a morte do próprio filho?! – continuava Rachel, a cor do rosto combinando com a de seus marcantes cabelos. – Luke está mentindo!

– Rachel, eu sei que é difícil pra você entender – resistiu Drew -, mas deuses são criaturas de vontades completamente incertas. Não julgue um filho por seu pai. Julgue apenas o filho – terminou, apontando para um Luke transtornado. – Hermes pode fazer o que quiser e não se importar com isso. Mas nós, filhos, somos afetados todas as vezes que descobrimos a verdade.

Luke assistia à cena distanciado. Viu quando Rachel virou a cabeça para ele, olhando-o por cima do ombro e ponderando o que Drew dissera. Nunca vira aquela garota antes, mas, de repente, sentiu como se a conhecesse há um longo, longo tempo.

Ela o compreendia.

– Responda a pergunta de Drew – ordenou Rachel, a voz ainda ríspida. – Como soube?

A outrora autoridade usual do menino parecia já não fazer parte dele. Quando falava, sua voz soava como a de uma criança assustada.

– Recebi uma carta assinada por meu pai – contou, com dificuldade. – Soube que o príncipe havia sido encontrado. Retornei imediatamente. Quando fui encontrá-lo, porém... – pausa. Respirou profundamente, e então soltou o ar pela boca com violência. – O maldito pai divino de Perseus estava lá e me disse. Encurralou a mim e a meu pai, até que ele dissesse a verdade. Depois, o pai de Perseus me pediu qualquer coisa relacionada a Annabeth, mas não dei ouvidos. Eu... eu só quis sair de lá.

– Para onde pretendia ir? – pediu Drew.

Luke desviava o olhar das meninas, tenso.

– Eu ia me jogar do Pico Inglês – confessou. – Como Percy. Mas eu morreria de verdade.

– Por quê? – Rachel soou chocada.

– Porque ODEIO semideuses! – chorou. – É assim que fui ensinado, e agora fui traído! Como acha que estou me sentindo?

Silêncio. O vento soprava com força, e vozes gritavam ao longe, muito longe dali... Daquele silêncio sepulcral.

– Eu... sinto muito – Rachel falou baixinho, enquanto Luke limpava uma lágrima com ódio.

– Não quero sua misericórdia – retrucou, violento.

– Não se preocupe, não lhe estou oferecendo – respondeu ela no mesmo tom, recompondo sua frieza.

– Luke – chamou Drew, interrompendo a discussão. Ele a olhou com certo desprezo. – Por que mudou de ideia?

Ele franziu o cenho.

– Como sabe?

– O Pico Inglês fica para o outro lado.

Luke pareceu surpreso com o fato, mas o mundo lhe parecia tão estranho e confuso desde... tudo. Percebeu que não poderia confiar nem nos próprios instintos agora.

Rachel ainda parecia desconfiar dele, mas Drew emanava compaixão.

– Não minta para mim – disse, em um tom quase maternal. – Todos nós queremos culpar alguém quando descobrimos a verdade.

– Não preciso culpar – ele disse, vago. – Tenho certeza de quem é culpado.

– Quem?

O olhar dele viajou de Drew para Rachel, mantendo-se fixo na ruiva e provocando nela um arrepio gelado.

– O sacerdote Fritz.

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O soldado deu um passo cambaleante. Depois outro. Mais um.

Então caiu.

Não houve tempo para maiores reações. O mesmo aconteceu com os outros, um a um, até estarem todos no chão. Desmaiados, dentro de um sono o qual parecia impossível de se perturbar.

Os semideuses se entreolharam confusos e agitados, as expressões cansadas e queimadas do sol ainda capazes de demonstrar medo. A atenção de todos, porém, se voltou para o brilho dourado que surgiu no ar, formando, lentamente, a imagem de um homem.

– Apolo! – uma das crianças o reconheceu, enquanto todas as outras automaticamente se colocavam de joelhos.

O deus soava urgente e pedia silêncio com as mãos, ao mesmo tempo em que dizia não precisar da formalidade. Parou ante o olhar triste de um menino de cachos dourados como os seus, que não estava de joelhos.

– Pai – falou Michael, sem calor na voz.

Seus irmãos pareciam temerosos, mas não disfarçaram que sentiam o mesmo.

– Filho – respondeu Apolo, e sentiu como se a palavra fosse uma música não terminada. O clima de tensão aumentava conforme as duas partes se mantinham caladas.

Todos ali sabiam o motivo: as crianças não defendidas por ele no último julgamento, que Annabeth contou no Acampamento terem sido mortas diante de seus olhos.

– Eu sei – disse o deus, frágil. – Doeu em mim também.

– Como... pôde? – perguntou Michael Yew, a face molhada, o que fez Apolo desesperar-se momentaneamente.

– Não, por favor – pedia ele -, me escute. Foi... foi... necessário.

– Necessário? – retrucou o menino. – O que representamos para o senhor, hein? Meras peças de xadrez que o senhor pode lançar longe quando precisar? Quando for... necessário?

A dramaticidade na voz do filho das Artes fez todos os outros se calarem, igualmente magoados. Já Apolo preocupava-se com aquilo. Ele não poderia perder a fé de seus filhos. Nem o amor deles.

Nem mais um deles.

– Perdoe-me – falou, para a surpresa de todos. O deus parecia humilhado, pedindo perdão a uma criança. Mas Michael não se tocou pelo pedido.

– E o que acontece depois? – perguntou, impassível.

– Estou tentando salvá-los, de verdade – protestava Apolo. – Mas nem sempre as coisas saem como deviam...

– O Senhor é um DEUS! – gritou Michael. – Como... como pôde permitir?

Apolo já não tinha saída.

– Sinto muito – repetiu. As palavras eram vazias de sentido, mas eram as únicas que encontrava. - Por favor, não perca a fé em mim. Eu preciso da sua fé em mim.

O menino não respondeu. Apenas baixou o olhar, limpando as lágrimas vertentes.

– Se não quer fazer isso por mim – continuava o deus -, faça por seus irmãos. Precisamos vencer essa batalha para que todos possam viver. Pense nos vivos, por favor.

– Esquecer os mortos? – retrucou o filho. – É isso o que quer pedir? Esquecer meus irmãos?

– Pense nos vivos – repetiu, estupidamente.

Outro silêncio se instalou. Michael olhava para os amigos semideuses em uma tentativa de evitar o olhar do pai. Queria acreditar. Queria...

– Annabeth está com Fritz! – uma menina gritou durante o silêncio. – Alguém a encontrou?

Apolo pareceu despertar da cena. Teve, por um breve período, a sensação de estar a sós com o filho. Nunca teve essa sensação na vida. E ele percebeu que era bom.

Mas agora era preciso voltar à realidade.

– Exatamente! – exclamou ele. – Foi por isso mesmo que vim encontrar vocês. Rachel Dare passou por aqui?

Michael sumiu por detrás dos irmãos. Apolo engoliu em seco, mas fingiu não ver.

– Passou – a menina irritada continuou. Apolo a conhecia: Clarisse. – A louca foi atrás dela.

– Dela?

– É. De Annabeth.

– Então, ela não é nenhuma louca. Está apenas cumprindo ordens – declarou o deus do sol, com um sorriso determinado. – Minhas ordens, na verdade.

Di Immortales – Clarisse murmurou, olhando para o deus com uma expressão desapontada no rosto. – Rachel é uma mortal... Vocês... Vocês estão todos loucos.

Apolo examinou as outras crianças. Nenhuma parecia disposta a discordar de La Rue.

Nem mesmo o próprio Apolo.

De alguma forma, Clarisse tinha razão. O Olimpo esteve louco pelos últimos cem anos. Tão louco que até mesmo a deusa da sabedoria parecia fora de si. E, então, o deus precisou admitir que aquilo era muito, muito ruim.

Quando existem apenas deuses loucos, nada é seguro o bastante... para ninguém.

Michael ainda o encarava do outro lado do Pátio. Apolo não sabia dizer se o encarava com nojo, desprezo, mágoa ou medo. Talvez uma mistura de tudo. Isso doeu em seu coração paterno, pois Michael era especial. Desde sempre, especial. Orava ao pai com tanta fé que Apolo até brilhava com mais esplendor. Sua voz era agradável. E sua confiança... era valiosíssima.

Vê-lo assim levava Apolo a se perguntar se alguma vez ainda o ouviria orando outra vez.

Então Apolo arregalou os olhos.

É isso!

– Escutem-me! – chamou, e os semideuses se viraram para ele surpresos pela repentina animação. Pareciam invejar que alguém pudesse soar animado em tais circunstâncias. – Por favor, escutem-me. Eu... – pausa. Inspirou e expirou lentamente. Limpou a garganta e continuou – eu sinto muito por tudo o que vivenciaram todos esses anos. Tudo. As perdas, as execuções... tudo. Eu sinto muito.

Michael baixou os olhos. Apolo então começou a andar em sua direção a passos lentos, abrindo, aos poucos, um corredor entre os semideuses acorrentados.

A cada passo, uma nova frase.

– Sinto muito pelas orações não respondidas, e por nosso silêncio. Por nosso egoísmo. Nossa ausência. E eu entendo perfeitamente a dor que vocês sentiram... e entendo o motivo de terem abandonado os sacrifícios e as orações.

Vários arquejos foram ouvidos, e sussurros preocupados dos semideuses encheram o ar. Até mesmo Clarisse arregalou os olhos, em um misto de vergonha e tristeza.

Era verdade. Os semideuses não faziam mais sacrifícios de alimentos e nem mesmo oravam. As cantigas ao redor da fogueira não eram as mesmas. A fé em seus próprios pais deixara de existir há muito tempo, quando perceberam que nenhum dos Olimpianos os salvaria da Lei imposta contra eles.

E Apolo agora sabia disso. E isso explicava tudo.

– Não preciso que se sintam culpados – falou ele. Sua voz era como uma cantiga; agradável e gentil de se ouvir. Ele ainda caminhava entre os semideuses, cada vez mais perto de Yew. – Acreditem: nós, deuses, quando acordarmos para a realidade, teremos uma consciência pesada para carregar durante alguns anos. Mas, agora, tudo o que preciso é que voltem a orar! Voltem a pedir! Voltem a acreditar em seus pais! Por favor – implorou, parando. Estava diante do filho. Sorriu e estendeu uma mão. Michael ergueu outra vez o olhar, totalmente confuso. – Por favor.

Michael Yew olhou para o rosto de Apolo, depois para sua mão estendida.

– Por que eu faria isso? – questionou com o queixo erguido, braços cruzados. Sua falta de fé era tão grande que ignorava o fato de que Apolo era um deus com poderes sobrenaturais e bastante perigosos.

Mas o deus precisava ter paciência. Era agora ou... ou nunca mais.

– Porque... porque é isso que nos faz deuses – declarou. Era a única explicação plausível para tudo o que vinha acontecendo. – Existem deuses olimpianos dentro do castelo, disputando uma coroa, nesse exato segundo. Estão tão necessitados de poder que assumiram uma mentalidade humana. Agem como humanos. Não estão preocupados com a Batalha ou com Percy. Querem apenas reinar. Preciso que voltem a nos enxergar como deuses. Dependemos dessas orações. É importantíssimo que voltemos a nos sentir deuses. E também porque...

Michael ergueu a sobrancelha direita, impassível. Apolo mordeu o lábio.

– Porque... – um suspiro. - Porque somos pais. Pais que se esqueceram de que são pais. Espero que um dia sejamos perdoados por tamanha estupidez.

Sua voz ecoou solitária nos muros. Os soldados continuavam adormecidos. Os semideuses estavam encarando uns aos outros, com sobrancelhas franzidas e sem dizer nada. Uma trombeta se ouviu ali perto. Alguns pássaros saíram voando em bando.

O tempo havia congelado para Apolo e Michael.

O menino analisou o pai divino da cabeça aos pés. Os braços, antes cruzados descontraidamente, agora estavam presos ao corpo, tensos. Apolo quase conseguia enxergar o cérebro do semideus decidindo se acreditava ou não naquilo.

Então Michael olhou ao seu redor. Viu que estava sendo observado por todos os outros. Voltou-se novamente para Apolo. Abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas logo se calou. Engoliu em seco.

Quando não pôde mais evitar, correu para os braços do deus, em um abraço apertado.

Apolo primeiramente se assustou. Nunca havia recebido o abraço de um filho antes. Mas a sensação era de tanta alegria que se perguntou por que nunca o fizera antes.

Devolveu o abraço com igual intensidade. Os outros semideuses assistiam a tudo sem esboçar uma reação sequer. Eles não faziam ideia do que estavam presenciando, mas Apolo sabia.

Cem anos depois, a ligação entre pais e filhos era enfim reconstituída. O Olimpo estava salvo.

Por alguns momentos.

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Zeus pensou que estava sozinho na sala de Conselho, enquanto saía dali.

Agora, no entanto, olhava fixamente para o outro lado da mesa, em um misto de choque e raiva. Seu pulso estava cerrado; os lábios, apertados. Uma estátua fria como mármore, mas que parecia prestes a ganhar vida a qualquer momento.

– Decepção – murmurou, engolindo em seco. – Você é uma decepção, Poseidon! – explodiu, por fim.

O deus do mar tinha um olhar complacente.

– É bom vê-lo outra vez, irmão.

– Cem anos, Poseidon. Cem! CEM MALDITOS ANOS! – a sentença ecoou na sala quase vazia, repetindo duas, três vezes, fazendo Poseidon fechar os olhos, culpado. - E é agora que decide aparecer? Para estragar tudo novamente?

– Perdoe-me – o outro endureceu o tom de voz -, mas não poderia retornar a um lugar onde fui vergonhosamente desmentido.

Zeus exprimiu um grunhido em desprezo.

– Você não poderia ter sido mais baixo. Engravidou a rainha?

– Zeus, você realmente ignora a verdade, não é?

– Que verdade? Que Hermes está completamente fora de si? Sendo dominado por Cronos? Poupe-me de suas invenções, irmão. Admita apenas que perdeu.

Poseidon sabia que andava em um terreno perigoso. Não entendia perfeitamente como, mas estava certo que o irmão havia perdido o juízo – assim como todos os outros deuses que permaneceram no Olimpo. Zeus, porém, era imprevisível, genioso, inconsequente. Uma palavra errada da parte de Poseidon, e tudo acabaria ali.

– Perdi o quê, exatamente, irmão?

Zeus deu um sorriso malicioso, como se o deus das águas houvesse contado uma piada interna.

– O reino, é claro. Todo o poder da Inglaterra. Você perdeu.

Poseidon assumiu discretamente uma posição defensiva. Então, calmo, fez a pergunta direta:

– Mas por que eu precisaria de poder humano, se sou um deus?

Foi como um soco. A expressão do senhor dos céus escureceu gradativamente. Abriu a boca e a fechou logo em seguida. Pouco a pouco, seu rosto contorceu-se em desespero, choque, dor. Pendeu para frente, tropeçou sobre as cadeiras. Poseidon correu em seu auxílio, mas Zeus recusou com a mão direita.

Apoiou-se sobre a mesa, respirando com dificuldade. Piscava os olhos repetidas vezes e parecia a ponto de desmaiar. Foram longos minutos em um silêncio aterrador, em que Zeus se recuperava sem dizer uma palavra.

Então, ele se endireitou, deixando o apoio. Seus olhos azuis elétricos pousaram em Poseidon com ódio estampado, provavelmente imaginando a melhor forma de estrangulá-lo ali mesmo.

– Saia... daqui... agora – murmurou. – Imediatamente.

Poseidon escolhia as palavras mais gentis.

– Zeus, por favor – implorou. – Desperte.

A mesa foi empurrada em sua direção.

– SAIA DAQUI! – Zeus gritou, e raios tomaram conta dos céus.

– Você sabe que estou dizendo a verdade! – insistiu o irmão.

Cadeiras caíram umas sobre as outras.

– SAIA!

A sala do Conselho tinha agora uma arena em seu centro. Zeus erguia os braços, e Poseidon sabia o que viria em seguida. Lutou contra o próprio instinto, devido à sua promessa a Atena. Não poderia colocar tudo a perder. Não iria.

– Não vim até aqui para brigar com você, Zeus – declarou, firme.

Zeus transpirava em pleno inverno.

– Você veio até aqui apenas para conseguir esse reino. E está me distraindo para consegui-lo antes de mim. É isso o que está fazendo.

Poseidon olhou para o irmão com pena. Zeus estava cego por um desejo puramente humano. Não havia palavra que o convencesse. Não havia mais nada que ele pudesse fazer. A voz de Hermes ressoava em seus ouvidos. “Não se lembra, Poseidon? Sua palavra e nada foi a mesma coisa anos atrás”.

– É claro que vim por causa do reino – sorriu. Mas era um sorriso de despedida. A partir de então, ele travava uma guerra contra sua família divina. - Vim entregá-lo nas mãos de seu verdadeiro rei. Vim salvar meu filho.

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Fritz parecia tão confuso quanto Annabeth.

Luke Castellan? – grunhiu, a voz como unhas em uma parede de pedras, empurrando a menina para trás. – Como raios você veio parar aqui?!

Os olhos azuis do menino pareciam vazios enquanto permaneceram pousados nela, mas, assim que viajaram até Fritz, eles se tornaram ainda mais cruéis e assustadores.

– Acredito que você tenha a resposta perfeita.

O sacerdote o analisou por inteiro.

– Ah... agora entendo – concluiu, carregado de admiração como um jardineiro admira uma planta frutífera.

Annabeth estava perdida em algum lugar entre as alucinações provocadas por Fritz e pela realidade diante de seus olhos. O desejo de entender o que estava acontecendo era forte, mas a necessidade de sair dali viva era ainda mais esmagadora.

Com isso em mente, ela se deslocou um passo para trás, sumindo na penumbra da casa velha.

– Como foi que descobriu? – Fritz perguntava.

Luke olhou de relance para Annabeth, que congelou, e logo voltou a encarar Fritz.

– Da forma mais improvável – respondeu.

Annabeth deu o segundo passo e se agachou. Suas mãos feridas buscaram a única arma disponível no local: cacos de vidro.

– Dificilmente seria de outra forma, garoto.

– Mas teria que ser através do pai divino de Percy?

O fôlego da menina prendeu-se em sua garganta. Ela tinha razão. Todo esse tempo, ela teve razão.

– Sou um maldito SEMIDEUS! – Luke gritou, desembainhando sua aterrorizante espada e avançando com ela na direção do sacerdote. O velho abaixou-se a tempo e Mortífera cravou inutilmente a parede. Annabeth, fraca, caiu para trás com o susto, rolando para outro cômodo. Cobria precariamente a própria cabeça enquanto estantes de poções, livros e ferramentas de alquimia estilhaçavam-se ao chão.

Luke estava ofegante. Fritz parecia indeciso entre temer o garoto ou entregar-se à morte que ele oferecia.

Todas as vezes em que vim até aqui durante todos esses anos – Luke choramingava -, você escondeu isso de mim! E eu confiava em você. Confiava.

Annabeth ergueu o olhar. Viu quando Fritz tentou se aproximar do rapaz como se estivesse se aproximando de um tigre. Luke, por sua vez, não baixava a guarda.

– Não fale assim, pequeno – disse, em tom paternal. Annabeth não entendia nada. – Nós dois somos vítimas nessa história.

AAAARGH! – rugiu Luke, mas a espada ficou no ar, não tocando Fritz.

Fritz deu um sorriso triste.

– Você sabe que isso não vai acontecer – argumentou o sacerdote. – Não vai ser assim.

O outro rangia os dentes. Não parecia tão assustador agora. Muito menos Fritz. Pareciam ser apenas o que diziam ser: vítimas.

Annabeth observava os dois, buscando qualquer explicação lógica para o que acabara de ver, mas uma mão agarrando seu pulso esquerdo a despertou de repente.

Annabeth, venha! – a voz de Rachel soou atrás dela, urgente. Annabeth teria gritado de alegria ao vê-la, mas seu instinto foi apenas obedecer àquela ordem, abandonando a sala em poucos segundos e sem pensar duas vezes... da mesma forma que se abandonaria o inferno.

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– Você deve permanecer vivo, Perseus – ele ouviu o sussurro irônico atrás de si. – Pense em Annabeth, pense em seus amigos, em seus pais. Permanecer vivo é o seu escape.

As palavras de Deméter vieram ao seu encontro como agulhas. Sentia a ironia e o descaso em cada sílaba, mexendo com aquela ferida como agulhas. Manter-se vivo. Nunca foi tão difícil cumprir essa tarefa.

Percy olhou ao seu redor. O semicírculo de deuses que havia atrás dele não deixavam dúvidas de sua impotência. O povo à sua frente não era misericordioso. E ele era fraco. Sentiu-se minúsculo, prestes a ser esmagado por mãos invisíveis – e, se ele fosse esmagado mesmo, o que importaria? Seria melhor, talvez. Desistir. Até o momento ele não havia provado nada. Era fraco e estúpido a maior parte do tempo.

A Sacada Real, sempre tão imponente e destemida, era agora um lugar solitário. A multidão lá embaixo o vaiava sem piedade alguma. A pedra que veio em sua direção o acertou em cheio na testa, que agora sangrava incessantemente. O papel que tinha em mãos pesava muito mais do que devia, mas não tanto como sua culpa. Então é esse o preço que se paga quando se é fraco, pensou. A humilhação.

Agora era um pouco tarde para rever tudo o que sabia. Talvez, seu orgulho devesse ter sido menor. Seu medo devesse ter sido menor. Talvez devesse ter acreditado em Annabeth desde o princípio.

Ah, Annabeth... ele sentia sua dor. Enquanto tentava manter os olhos presos ao seu discurso, ele ouvia os gritos dela. Fechava os olhos e balançava a cabeça, mas as imagens penetraram sua mente de tal forma que se tornaram incontroláveis. As piores coisas que podiam acontecer a um ser humano aconteciam a Annabeth.

Viu quando um ferro em brasas foi prensado contra a pele branca da menina. Percy sentiu sua própria pele queimar. Não se importou em procurar a marca em sua própria pele: sabia que não havia nada. Mas provavelmente havia em Annabeth.

Revoltado, afastou a mão que Dioniso havia pousado em seu ombro. Ao fitar o deus, percebeu que ele mesmo suava frio, e seus olhos ardiam. O deus do vinho era o responsável pelas coisas que via em sua mente. Se tais imagens eram mesmo verdadeiras, Percy não sabia. Mas tinha a certeza de que Dioniso poderia intensificá-las caso as coisas não saíssem como o planejado.

Tentando controlar os sentimentos, fechou os olhos por um instante. Ao abri-los, antes mesmo que pudesse raciocinar, algo – ou, mais precisamente, alguém – chamou sua atenção no meio de toda a algazarra do povo.

Os olhos de Percy fixaram-se aos olhos daquele homem estranho. Olhos verdes como os seus, mas totalmente penetrantes e intimidadores. Em pouco tempo, eram tudo o que via: adeus multidão, adeus deuses vis, adeus discurso. Em vez disso, sua mente foi levada a uma sala onde acontecia um jantar.

Ele precisou de alguns segundos para notar que se tratava de uma parte do castelo. Mais do que isso: era um lugar no qual ele já esteve antes. Olhou para si mesmo e concluiu que estava em carne e osso. E, alguns metros à frente, ele viu outro Percy. Um Percy levemente entediado, remexendo a comida no prato com um garfo de prata. Ao seu lado, sentava-se... Nancy.

Nancy Bobofit. Sua ex-prometida. Internamente, ele se perguntava o motivo daquela visão.

Percy olhou para as outras cadeiras e viu seus pais, sorrindo com gentileza para os pais de Nancy, que não retribuíam com a mesma vontade. Ele começou a sentir o peso da saudade e seus olhos arderam por um segundo.

Sentiu saudades daquela paz, daquelas guerras internas que tinha e que agora pareciam tão efêmeras e infantis. Cresceu sob uma perspectiva inocente de ser inalcançável e imbatível; pensava que o mundo era só um lugar superestimado. Era o herói de sua própria fantasia, fantasia essa que jogava obstáculos em seu caminho e ele enfrentava todos, sem nunca questionar – afinal, um herói salva tudo no fim, não é? Ele não sai por aí indagando a própria capacidade.

Talvez em algum ponto no meio do caminho alguém lhe tirou os olhos, fazendo-o cego de todas essas verdades, até que Annabeth aparecesse para devolvê-los. Mas não foi o suficiente. Isso não o impediu de errar. Ele a perdeu e, agora, perdia a si mesmo pouco a pouco.

Se ele pudesse retornar àquele momento, faria diferente. Muito diferente... De qualquer forma, isso agora era impossível e ele tinha consciência disso. Entretanto, a visão continuava.

E ela o guiou até o olhar zombeteiro que Nancy formava lentamente. Viu quando sua própria figura encarou a da menina com suspeitas.

Então, a voz aguda e tão característica dela soou.

– Ah, querido, agora vamos ficar juntos, assim como você me pediu quando tínhamos seis anos!

O Percy da visão avermelhou-se por completo, e Percy sabia que, mesmo depois de todo aquele tempo, também estava da mesma cor. O menino abaixou os olhos para a taça enquanto a visão apontava estes movimentos para Percy. Ele se lembrava muito bem de tudo o que aconteceria a seguir, e até mesmo sorriu quando viu a água espirrar com força no rosto de Nancy.

Mas foi o sorriso fraco de Sally que o fez perceber. Ele era a água. E isso fazia todo o...

– Comece logo o maldito discurso – Ares cuspiu. – Não pretendo esperar até o final do passeio de Hermes.

Repentinamente, Percy voltou para a cena que vivia. Zeus ainda dizia as mesmas palavras que antes, como se toda a visão não tivesse durado sequer um segundo. De alguma forma, Percy voltara da visão diferente. Sentia que havia algo a ser feito, mesmo sem saber o que era.

– Como símbolo de justiça – continuava Hera – vocês, ingleses, enganados pela perfídia e astúcia malignas de uma mulher e de um deus, terão a chance de vingar sua honra. Façam com que Perseus, o falso príncipe¹, aprenda o gosto de vossa lei.

Hera o empurrou para frente. À beirada da Sacada, ele viu o rosto mais uma vez.

Atordoado com as visões de Annabeth e daquele rosto estranho, machucado pela violência de seu povo e sentindo seu coração batendo mais forte a cada segundo, teve de reunir toda a sua força para começar a falar.

– Povo da... – assustou-se com a fraqueza de sua própria voz. Antes que recebesse alguma repreensão, corrigiu-se rapidamente. – Povo da Inglaterra. Peço humildemente vossa atenção para que possais ouvir... possais ouvir minha confissão.

Seu discurso foi interrompido por mais vaias, que duraram por vários minutos.

– Eu, Perseus Blofis Jackson, nasci... nasci de uma relação amaldiçoada pela Igreja. Sou um bastardo, filho do deus das águas. Minha mãe, a rainha Sally, escondeu-me de vosso rei, Paul, para que eu ainda tivesse direito ao trono.

Uma segunda pedra, ainda mais afiada que a primeira, o acertou no peito. Com um gemido, Percy lutou para recuperar o fôlego, enquanto seu sangue quente descia por seu abdômen.

Ignorando a dor, continuou a leitura. A folha tremia em suas mãos, que pareciam querer agir por conta própria. Faça alguma coisa!

– Sendo um semideus, meu destino é a morte, juntamente de outros semideuses que aqui estão. Não estando presente o rei Paul, todos os direitos de governo passam para meu... meu Parlamento – Percy leu a palavra com estranhamento, sem dizê-la em voz alta o suficiente. Sentia o olhar dos deuses pesar sobre ele, mas já não se assustava como antes.

Seus olhos voltaram a se fixar no homem estranho. Mas ele já não era estranho. Algo familiar emanava dele. Percy engoliu em seco uma palavra de gosto amargo.

Pai?

O homem que o ignorou a vida toda. A humilhação que sofreu durante a infância e que agora sofria duas vezes mais. Sua vida controlada o tempo todo, cada passo, cada respiração, cada vestimenta, cada palavra. Deuses, deuses e deuses, e, no fim, nenhuma de suas preces foram atendidas.

E, nem mesmo naquele momento de desespero, seu pai parecia ter pressa em ajudá-lo.

Percy sentiu o desejo extremo de inundar tudo. O que uma vez foi apenas uma taça inofensiva, agora se transformara em toda a água que circundava o Pico Inglês... ali, à sua disposição, para descontar tudo o que sentia. E ele sabia que podia fazer isso. Inundar tudo. Acabar com tudo. Levar tudo embora. Ele podia.

Suas mãos se abriram e seus dedos fizeram força, como se erguesse o mundo sozinho.

Os deuses ao seu redor notaram a mudança. Percy percebeu pelo canto do olho quando alguns se afastaram, outros murmuraram ameaças e dois se colocaram em posição de ataque.

E seu pai continuava observando-o, em silêncio.

O garoto parece não temer mais a morte, hã? – A voz de Dioniso ecoou em algum lugar perto dele, fazendo Percy se desconcentrar. Olhou ao redor, mas tudo estava silenciosamente tenso na Sacada, e o verdadeiro barulho vinha do povo abaixo deles.

Percy franziu o cenho. Ele já havia escutado aquilo antes. Sua expressão agora se dirigia ao pai com uma mistura de confusão e agonia.

Talvez já tenha notado que é mais importante vivo.

Atena. Como não reconhecer sua voz? Mas ela não estava ali. Não, não.

Ela estava em sua mente.

– Termine, garoto – Dioniso repreendeu-o, com algo que parecia um rosnado. As vaias sob a Sacada recomeçaram. E tudo se esclareceu na mente de Percy.

Ele tinha de estar vivo para passar o poder para os deuses. E depois, ele seria jogado no lixo. Com a conclusão, a raiva começou a fervilhar dentro de seu ser como uma brasa que quase se apagara.

Logo a multidão se silenciou, enquanto Percy os analisava lentamente com uma nova expressão em seu rosto. Sua respiração tornou-se pesada. Seu pai o olhava com preocupação. Era isso o que queria dizer.

“A morte seria como uma escapatória”.

A mesa de Conselho. Os deuses. A visão. Apenas alguns minutos atrás. Percy esteve tão distraído que no momento não havia entendido. Mas agora ele compreendia perfeitamente. No instante exato.

Seu coração acelerado finalmente relaxou. Um sorriso determinado substituiu o que antes era apenas uma expressão derrotada. Ergueu as mãos lentamente.

Entretanto, lá embaixo, seu pai arregalou os olhos em surpresa. Não estava feliz. Estava desesperado. Percy leu em seus lábios um claro “não! NÃO!”, mas não viu motivos para se importar. Aquele deus nunca se importara com o próprio filho, mesmo.

Percy deu um longo suspiro, assustadoramente calmo. Multidão em gritaria, deuses distribuindo ameaças. Mas os olhos do príncipe permaneciam fixos nos do pai ausente.

Os nãos continuavam. Não, Percy, não faça isso. Não, NÃO FAÇA ISSO, NÃO!

Bem, pensou Percy. É um pouco tarde.

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Atena sentiu quando a garganta formou um nó. Em sua mente, as vozes dos filhos ecoavam. Ela não conteve um sorriso. Apolo. Você conseguiu.

Hermes a observava um tanto confuso. Atena raramente interrompia suas próprias falas, ainda mais quando estas eram sermões. Era visível como Cronos tentava descobrir no quê ela estava pensando. No entanto, o rosto franzido de Hermes denunciava que o titã invasor nada conseguia.

– Meus filhos – falou, de repente, não dando ao adversário maior tempo para deduções vazias. Sua voz estava ligeiramente embargada, suave. – Eles estão orando.

Seus olhos cinza fitavam o nada, mas logo recaíram desconfiados sobre o deus mensageiro. Parecia ter despertado de um sonho.

– Isso não pode ser você – concluiu, mais ríspida que antes.

Houve um riso de escárnio em resposta.

– Para uma deusa da guerra, você é tão manipulável, cara Atena – a voz grave e perturbadora de Cronos encheu o lugar. – Diga-me: como espera que, em plena guerra, seus filhos se voltem para você? Logo para você? Quanta ilusão.

Ela não havia se movido um milímetro até então.

– Era isso desde o começo... não era? – retorquiu, inabalável. - Afastar os deuses de seus filhos. Seu plano perfeito.

Já fazia alguns minutos que Atena havia encontrado os pontos, finalizando a lógica perfeita. Mas, ainda assim, mesmo diante de um Hermes dominado e réu confesso, toda aquela ideia lhe parecia desprezível demais para colocar em palavras. Tinha o estômago revirado só de imaginar que, mesmo sem saber, contribuíra para tudo aquilo. Os dentes trincavam-se involuntariamente ao tentar exprimir o que sentia.

Mas ela engoliu a raiva, o arrependimento. Estava ali para consertar tudo, e até Cronos sabia disso. Por isso, tentava desestabilizá-la por completo.

Atena, porém, não permitiria.

– É claro que era – grunhiu Cronos através dos lábios de Hermes. Os olhos dourados a esquadrinhavam lentamente. – Deveria sentir vergonha de não ter agido antes, Sabedoria.

– Minhas ações são julgadas apenas por mim.

– Talvez tenha sido as amarras daquele amor impossível...

– Não vamos retornar a Leonard.

As sobrancelhas de Hermes se ergueram no mesmo instante.

– Como não retornar a Leonard? – riu. – Se tivesse resistido ao rei, seus filhos não estariam aí, sendo mortos constantemente.

– Leonard era um louco! Não tenho uma dúvida sequer que você mesmo possa ter influenciado sua loucura.

– Talvez você esteja correta quanto a isso. Mesmo assim, nada fez quando a rainha jogou o bebê na lareira. Era ­seu filho, Atena. Você mesma se afastou dele.

A deusa mordeu a língua.

– Fez menos ainda quando a rainha traída instaurou a Lei – continuou Cronos. Atena balançou a cabeça, obstinada.

– Não interferimos na vida humana.

– Forma adorável de nomear o abandono.

– Ligação entre pais e filhos rompida – observou ela. – Filhos perdem a fé. Pais perdem o juízo. Ótimo para seus planos. Uma Batalha praticamente ganha.

Hermes sorriu outra vez. Aquele mesmo sorriso de escárnio que já tirava a paciência restante de Atena.

– Nem tudo é tão simples assim – zombou. - Some um príncipe traumatizado, um reino em crise, sátiros revoltados, um Olimpo destituído de poder. Vocês esperaram demais para ouvir as preces de seus filhos. Agora as coisas não se resolverão com tamanha facilidade.

Ela finalmente concordou com a cabeça, solícita. Era verdade. Uniu as mãos, andou ao seu redor. Deixou que a frase ecoasse solitária no ambiente, retornando para eles e voltando até que desaparecesse.

Virou-se novamente para Hermes. Os olhos estavam estreitos e o corpo inclinava-se aos poucos para frente, como uma professora prestes a mostrar ao seu aluno onde estava o erro em seu trabalho.

– Então chegamos ao ponto que queria – disse, delicadamente, quase sorrindo também. – O ponto em que admitimos que o plano não é perfeito para nenhum dos lados.

O dourado olhar do deus pareceu subitamente mais fraco.

– Não se iluda, cara Atena – insistiu Cronos, mas não funcionou mais.

– Eu sei o que você quer – declarou, endireitando-se outra vez. – Você quer vencer essa Batalha. E você precisa de Percy sozinho para isso. Por isso o afastou de todos. De seu próprio pai, de seu exército de semideuses e de sua ajuda divina. Todos o odeiam. Mas você não. Você o quer. Vivo, de preferência.

Cronos rosnou. Hermes mexeu-se bruscamente na cadeira, mas não conseguia tirá-la do lugar. Atena sorria diante de tamanho esforço inútil.

– Entretanto, enquanto estive no Conselho, o que notei foi uma curiosa atitude de Dern Castellan – disse o nome com sugestiva comicidade. Hermes remexeu-se mais uma vez. – Dern queria Percy morto. Não importava como, apenas morto.

– Hermes é um idiota – Cronos grunhia, irritado. A movimentação na cadeira foi diferente dessa vez, muito mais agressiva. Foi uma movimentação vinda do próprio Hermes. A cabeça do deus balançava de um lado para outro, como se tentando expulsar Cronos de dentro de si.

Atena voltou a andar em círculos ao redor dele, ignorando o que acontecia. Mantinha-se fria, controlada. Falhar, naquele momento crucial, estava fora de cogitação.

– É claro que isso me confundiria – explicou, falando com a mesma paciência com que se contariam histórias de ninar. - Não via como Cronos poderia usufruir de um Herói morto, uma vez que é Percy quem pode trazê-lo à vida se chegar a perder a Batalha.

– Já disse que Hermes...

– E todos os que deixaram o Olimpo durante a loucura dos deuses sabem que Hermes ressuscitou Luke. Hermes queria que Luke fosse o Herói. Queria, de todas as formas, torná-lo um Percy. Isso definitivamente não estava em seus planos.

Hermes continuava balançando apenas a cabeça, quase a arrancando do corpo. Totalmente descontrolado. Cronos perdera o controle.

– Chega! Pare com isso!

– Você se apossou de um deus magoado. Sabe o quão perigoso é isso?

CHEGA!

Atena parou. Diante de si, a fúria de Hermes era apenas mantida retraída pelas correntes de bronze. Um animal selvagem que em breve se libertaria. Ela suspirou. É agora.

– Conte-me mais sobre os objetivos contrários de Hermes – pediu. Sabia que, mesmo em meio a tanta violência, ainda era ouvida. – Conte-me sobre como é instalar uma guerra dentro da mente de seu próprio hospedeiro, Cronos.

Cronos urrou. A caverna estremeceu por dentro. Antes que pudesse reagir, Atena foi jogada metros longe, mas, enquanto caía, estendeu a mão direita para o alto.

Em uma fração de segundos, as amarras desapareceram. Atena as retirou.

Eles estavam soltos.

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– Estou orgulhosa de você, Apolo.

Ele sorriu. A irmã parecia ainda mais jovem do que a última vez que a vira.

Ártemis foi apenas a primeira a chegar. Dez segundos antes, o Pátio Real estava praticamente deserto, exceto pelo pequeno grupo de semideuses em seu centro. Ajoelhados, falando com os próprios pais pela primeira vez em anos. Apolo não podia garantir que daria tudo certo, mas não restavam opções.

Felizmente, eles foram ouvidos.

E, agora, o Pátio se enchia de deuses e criaturas sobrenaturais, carruagens douradas, caçadoras espalhadas carregando armas e uma quantidade dobrada de novos semideuses. Praticamente tudo o que havia de mágico no mundo estava reunido ali, e continuava chegando mais e mais... todos prontos para uma Batalha.

Íris surgia envolta em cores. Hécate foi mais discreta, mas trouxe consigo alguns filhos de alguma terra distante, pois eram diferentes dos semideuses ingleses. Nêmesis não tinha a melhor expressão de cumprimento, mas não virou as costas quando seu filho se aproximou. Apolo se alegrou. Ethan dissera-lhe minutos antes que achava que sua mãe não o ouviria. Agora, ele se abraçava a ela, sorridente.

Entretanto, nem todos estavam ali.

– Não insista, Hades não aparecerá – disse Ártemis ao seu lado, como se lesse os pensamentos do irmão. – Você sabe que não.

– Eu sei – o deus do sol confirmou, bastante abatido.

– Muito menos qualquer outro Olimpiano – a irmã continuou. – Sinto dó daqueles semideuses. Seus pais não os responderão agora – completou, com um olhar triste na direção dos irmãos de Clarisse, que gritavam e batiam os pés com força no chão. Outras crianças, de lindas feições e cabelos bonitos choravam. Alguns, provavelmente filhos de Deméter, murchavam as flores do castelo apenas com o olhar.

Apolo não soube o que responder.

– Senhora Ártemis? – uma caçadora atrás deles chamou. – Por onde começamos?

Um círculo formou-se ao redor dos gêmeos no mesmo instante, onde todos se entreolhavam aguardando instruções.

Ártemis se virou para Apolo.

– Onde estão Poseidon e Atena?

– Ocupados – respondeu o outro, ansioso. – Poseidon está de olho em Percy.

Mal terminara sua frase quando Íris o interrompeu.

– Vejo Percy e Poseidon – falou. – Também vejo água... por todos os lados. O menino está em perigo.

– Todos nós estamos em perigo – devolveu Momo². – Ou, pelo menos, foi o que me disseram.

– Sem discussões! Ajam como deuses maduros. – uma menina de uns oito anos pediu. Sua voz era tão doce que não foi preciso falar duas vezes.

– Obrigada, Héstia – disse Ártemis. A deusa da família sorriu, devolvendo a palavra aos gêmeos.

Apolo engoliu em seco.

– E Atena... bem... Atena está com... – sua voz tornou-se um sussurro - ...Hermes.

Apesar da discrição, todos ouviram. O burburinho retornou ainda mais urgente.

– Acalmem-se, todos – pediu Ártemis, que tentava aparentar uma segurança que, obviamente, não encontrava mais. – Preciso que me escutem atentamente. Não temos tempo para uma estratégia mais detalhada. Também não temos tempo para questionarmos se isso dará certo ou não. Não há espaço para dúvidas. Como ouviram, tanto os deuses quanto Percy e Annabeth precisam de nós imediatamente. E nós vamos ajudá-los. Entendido?

Um meneio positivo e silencioso foi a reação geral. Ártemis mordeu o lábio, pensativa. Apolo pousou uma mão em seu ombro, tentando reconfortá-la. Ela agradeceu com um sorriso.

– Muito bem – continuou, muito mais segura que antes. – Vamos ao único plano disponível. O tradicional plano de Batalha dos Olimpianos. Mas, uma vez que os próprios Olimpianos não estão presentes, serão vocês – apontou para os deuses menores – que ocuparão suas posições originais.

Embora a tensão no ar fosse quase palpável, ninguém discordou. Houve apenas uma troca de olhares firmes e dispostos em resposta.

– Enquanto a linha de frente fica sob nossa responsabilidade, caçadoras e semideuses devem encontrar Percy e Annabeth e trazê-los ao campo de batalha o mais rápido possível. O trabalho de vocês será o mais minucioso e, acima de tudo, sigiloso. Terão nossa cobertura, mas não por muito tempo. Cada segundo é precioso. Todos compreenderam?

Na outra extremidade do círculo, Clarisse deu um corajoso passo à frente. Tinha o rosto um tanto cansado, talvez até revoltado. Nada disse. Apenas observou duramente seus companheiros meio-sangues até que todos também se posicionassem um passo para frente. Ártemis sorriu.

– Acredito que está na hora.

Clarisse abria a boca para falar qualquer coisa... mas foi interrompida pelo som ensurdecedor do chão tremendo sob seus pés.

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Drew era a última pessoa que Annabeth esperava encontrar fora da casa de Fritz. Mas, depois de tudo o que vivenciou lá dentro, já não exigia muito da realidade.

Ela só queria saber de uma coisa.

– Olha, Percy está... – Drew gaguejava - ...bom, ele está em perigo, sim. Mas eu não posso simplesmente deixar você sair correndo por aí. Está com uma cara péssima.

Annabeth se virou para Rachel. A ruiva suspirou, aparentando um cansaço extremo.

– Nós vamos encontrar Percy – prometeu. – Mas Drew tem razão, Annie. Quinze segundos antes você estava sob o poder de Fritz. Não fazemos ideia do quê ele pode ter lhe feito beber...

– Por favor – interrompeu Annabeth -, não me façam lembrar disso.

Sem notar, sua voz soou tão perturbada que Rachel e Drew trocaram um olhar nervoso.

As três já estavam vários metros distantes da casa de Fritz, de onde não era mais possível escutar qualquer coisa que viesse de lá. Annabeth ainda tremia da cabeça aos pés, mas pelo menos não via mais uma Rachel triplicada. Isso deveria significar alguma coisa.

No entanto, apesar de sua missão ecoar dentro de sua mente, ela não conseguia parar de pensar na conversa entre Luke e Fritz.

– Luke ser um semideus definitivamente não me surpreende – falou, assim que engoliu seu último pedaço de ambrosia, lembrando-se de seus dias no castelo. – Mas...

– Mas Fritz com certeza não esteve em suas deduções – Rachel completou. E ela estava certa.

Drew terminava de prender os cabelos de Annabeth em uma trança comprida. Annabeth estranhava tanta doçura repentina, mas sempre ouvira que os tempos de guerra mudam as pessoas... Ou não.

De qualquer modo, agora não havia tempo para esse tipo de dúvida.

– O que ele foi fazer ali? – perguntou a menina em um sussurro curioso.

– Luke disse a mim e a Drew que Fritz tinha uma parcela de culpa sobre tudo – explicou a outra. – Não faço ideia de como...

Annabeth arrancou a manga direita suja do vestido que usava e a atirou longe.

– Fritz é um semideus também – contou, apenas para ver o choque estampado no rosto de Rachel. Annabeth imaginou que não era bem isso que ela esperava ouvir. – Estamos cercados por mais semideuses do que alguma vez presumi.

– De quem ele poderá ser filho? – Drew disparou logo em seguida.

Houve um silêncio tenso antes da resposta.

Hécate – respondeu Annabeth, seca. – É claro que seria Hécate. Eu que fui uma idiota por ter passado quatro malditos meses no castelo sem ter notado ao menos isso! – gritou, arrancando a manga esquerda.

– Não se culpe, Annie – falou docemente Rachel. – Toda a história é muito mais profunda do que poderíamos esperar. Não tem como adivinhar tudo.

Annabeth olhou para a prima do príncipe com raiva, mas logo se acalmou. Rachel não entendia... Na verdade, nem Drew, nem outros semideuses e nem ninguém poderia entender o peso de ser uma guardiã. A responsabilidade que se acumulava sobre seus ombros era constante e não deixava espaço para erros como os que ela cometeu.

Sabia que, a partir de agora, não poderia cometer mais nenhum.

– Ainda não entendo o que Fritz pode ter a ver com Luke – insistiu Drew. – Ele guardou o segredo de Luke ser um semideus? É isso?

– Não – Annabeth murmurou. O diálogo entre os dois ainda se repetia claramente em seus ouvidos. – Tenho certeza de que foi algo muito mais sério. Luke estava a ponto de matar Fritz, mas então...

– Então não o matou – concluiu Rachel uma segunda vez. Annabeth a encarou. A ruiva tinha os olhos vazios, olhando para algum ponto aleatório do gramado.

– Como sabe? – indagou Annabeth, desconfiada.

– Eu... – a outra mordeu o lábio, confusa. – Eu não sei. Eu só... imaginei. Imaginei o que poderia ter acontecido.

Ninguém retrucou. No entanto, Annabeth continuava analisando Rachel.

– Fritz disse algo sobre morrer – contou, esperando a reação dela. Rachel não esboçava qualquer expressão. – Algo sobre querer morrer.

Assim que terminou a frase, Annabeth jurou ter visto os olhos de Rachel faiscarem.

– Fritz não pode morrer. Por isso quer morrer – falou ela, como se aquilo fosse lógico, claro, evidente. Mas Annabeth não tinha ideia de como Rachel tinha chegado a essa conclusão.

– O que você quer dizer com isso? – Drew perguntou, tão chocada quanto a loira. – Rachel, está tudo bem? De verdade?

Os olhos vazios de Rachel finalmente encontraram os de Drew.

– Sim – respondeu, distraída. – Estou ótima. Por quê?

A filha de Afrodite não tinha certeza se explicava ou não.

– É que você... hm... como você... – então, um tremor de terra súbito interrompeu a frase.

As três jovens perderam o equilíbrio, caindo ao chão enquanto tudo balançava. Galhos se partiam, sendo levados por um vento que rugia impiedosamente sobre todo reino. O som de um turbilhão de águas se erguendo foi ouvido.

Vocês precisam encontrar Percy imediatamente! – gritou Rachel, tentando ser ouvida em meio ao barulho de árvores se quebrando. – Agora!

No entanto, ninguém conseguia ficar de pé. O tremor durou quase três minutos inteiros, transformando tudo ao redor delas em poeira. Quando cessou, Annabeth ainda precisou de alguns segundos para conseguir respirar.

Quando conseguiu ficar em pé, precisou ajudar Drew e Rachel a se erguerem também. O trio retornou alguns metros do que haviam andado, até visualizarem a casa de Fritz.

Estava no chão, como tudo ao redor. E não havia sinal de Luke ou Fritz.

– Vamos atrás de Percy, agora! – ordenou Annabeth, sem pensar duas vezes. – Esse não foi o último tremor, virão outros.

– E toda aquela água? De onde está vindo aquilo? – Drew desesperou-se.

A garganta de Annabeth secou.

– Isso... – ela sabia a resposta, mas preferia estar errada.

– Vão vocês – Rachel falou, ainda olhando para a casa destruída. – Eu preciso fazer algo.

– Você enlouqueceu? – Annabeth gritou, confusa. – A Batalha está prestes a começar, não posso deixá-la aqui!

– Você é a guardiã de Perseus, não minha – retrucou a outra, voltando olhos tranquilos para suas interlocutoras. – Eu sei o que estou fazendo. Preciso ficar.

Annabeth não sabia como responder.

– Você não...

– Vá ajudar Percy. Ele precisa de você.

– Mas...

– Apolo alertou-me sobre isso – segredou Rachel, a voz tensa, como se tivesse evitado tocar no assunto até o momento, mas a semideusa a obrigara a contar. – Há algo naquela casa que necessito ver por mim mesma. Eu... – molhou os lábios, incerta - ...eu sinto muito.

Completando a frase, a jovem estendeu suas mãos para Annabeth. Ao olhar para baixo, Annabeth viu sua capa da invisibilidade dobrada delicadamente, com marcas de terra e um pouco úmida, sendo oferecida de volta à sua dona original.

Ela não pôde evitar uma expressão chocada.

– O que isso está fazendo aqui?! – disparou. – Era para estar com Percy!

– Quando Percy chegou ao castelo, retiraram tudo dele – contou Rachel, nervosa. – Ele está sem espada, sem capa, sem nada que o defenda. Quem me trouxe a capa foi o próprio Apolo, para que pudesse encontrar você. Você é a maior defesa de Percy, Annabeth.

Annabeth tinha as mãos trêmulas ao pegar a capa. Ergueu os olhos de volta a Rachel, que a encarava de volta com determinação. Teve vontade de abraçá-la, mas mal conseguia reagir.

– Certo – confirmou com a cabeça. Aquelas palavras a encheram de uma coragem que pensava ter perdido na casa de Fritz. – Vou encontrá-lo imediatamente.

– Boa sorte – desejou Rachel.

– Ei – chamou Drew. Ela olhava para um ponto escuro acima de suas cabeças. – Vejam aquilo!

Annabeth olhou para o céu. Via apenas uma mancha negra flutuando, aumentando de tamanho conforme se aproximava da terra.

Di Immortales – exprimiu a loira, não acreditando no que via.

– Annabeth, alguém vai ajudar você a encontrar Percy rapidamente – riu Drew. Uma risada que ecoava sozinha em meio à destruição que as cercava.

Rachel reconheceu a figura em poucos segundos, e também se permitiu rir.

– Annabeth, você conhece Blackjack?

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Enquanto a Sacada Real ainda não havia se tornado uma cascata de água abundante, ninguém era capaz de entender a expressão sorridente de Percy erguendo os braços.

Mas Poseidon entendeu.

Apesar de todos os seus protestos, o filho não lhe deu ouvidos. Lembrou-se de Atena falando que Percy não estava com boas impressões sobre o pai, mas jamais poderia imaginar que o menino chegaria a tal ponto.

A água levou deuses, mortais, cortinas, trombetas, bandeiras, tudo. Vazava torrencialmente pelas janelas do castelo e caía sobre a população como uma enchente. Era salgada e trazia consigo móveis, livros, candelabros gigantes e tudo o mais que encontrou pelo caminho enquanto atravessou o interior do castelo.

A gritaria era praticamente ensurdecedora. Em poucos segundos, as pessoas se aglomeraram sobre os portões tentando sair, mas não havia quem os abrisse. Poseidon então ergueu as mãos para a cascata formada, tentando desesperadamente consertar o estrago de Percy. Porém, sorriu ao notar que o filho soube exatamente o que fazer.

Apesar de violenta, a água chegava ao chão e logo se espalhava, evaporando, sobrando uma quantidade incapaz de afogar até mesmo um gato. A correnteza formada por Percy inundou apenas o castelo, que estava vazio, e desacordou os deuses que o cercavam na Sacada. Na parte de baixo, no entanto, ela perdia a força, servindo apenas como um susto que aparentasse ser real o suficiente para que toda a população evacuasse o pátio em pouco tempo. Os móveis trazidos estavam empilhados logo abaixo da Sacada, sem ferir ninguém. E toda a violência do mar se resumia agora em algumas poças espalhadas.

Percy ainda não havia perdido totalmente o juízo. Isso era bom, pensou Poseidon.

Ele mesmo terminou de acalmar as águas e levá-las de volta ao mar. Ainda olhava para a Sacada, sem encontrar um vestígio sequer de Percy. Torceu internamente para que Annabeth já estivesse a caminho.

Afinal, se o filho não o ouvia, o cavalo dele deveria ouvir.

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Percy não tinha certeza se daria certo. Surpreendentemente, deu.

O espaço de tempo entre o barulho da água alcançar a Sacada até os deuses se darem conta do que estava acontecendo foi de, no máximo, três segundos. Todos voaram na direção de Percy, tentando impedi-lo, mas demoraram demais. Percy já tinha pulado da Sacada.

Suicídio falso, confere.

Sem príncipe, sem reino. Alguém tinha que fazer isso. E Percy detestava saber que esse tipo de coisa teria que ser feita por ele.

De qualquer jeito, o castelo virou oceano. Não tinha mais volta.

O próximo passo era, obviamente, evitar o suicídio. Percy fez aquilo que sempre quis fazer desde criança, mas não exatamente “cabível” ao príncipe que era: pendurar-se na cortina real.

Enquanto a água jorrava, ele escalava a cortina por seu lado interno. Bem mais fácil do que tinha previamente imaginado. A cortina era espessa e a água não era um problema – era um auxílio, na verdade. Subiu por toda sua extensão em poucos segundos.

Finalmente, terceira parte do plano: telhados.

Era o lugar mais óbvio para se refugiar. De repente, todos os anos que passara sobre os muros e telhados do castelo pareceram, finalmente, úteis. Andar por cima da enchente era um tanto perturbador, mas ele estava a salvo. Esperava que a população também estivesse. E os deuses... bem, eles estariam só um pouco molhados.

Quanto a seu pai... De cima do castelo, ele o viu. Aparentava agonia ao olhar para a Sacada e não ver mais o filho. Percy esperava qualquer demonstração de poder, de revolta, de divino. Talvez algumas luzes, ventania e água, claro. Terremotos, quem sabe. No entanto, viu apenas o homem moreno, forte e alto andando pelo pátio, com uma expressão chocada no rosto e - caso seus olhos não o estivessem enganando - até mesmo um pouco triste.

Percy sentou-se no telhado, exausto, observando o pai. Não tinha forças para reagir. Imaginou que era assim que aquele deus estava se sentindo. Uma pontada de culpa incomodou Percy. Ele baixou a cabeça, desviando os olhos da cena. Sabia, em seu íntimo, que ainda conversaria com aquele ser. Mas não seria agora, definitivamente. Ele tinha uma Batalha, e seu pai saberia dar conta de todos aqueles deuses desacordados na Sacada.

– Você realmente quer me matar de preocupação, Perseus.

Aquela voz.

Aquela voz fez sua respiração falhar e plantou um sorriso gigante em seu rosto.

– Você sabe o que estão falando lá fora? – continuou, irritada. Como sempre, claro. – Que o príncipe acaba de se jogar da Sacada Real, logo após inundar todo o reino com água do mar.

Percy não pôde evitar um riso contido. Apesar do sermão que recebia, ele estava adorando cada segundo daquilo.

– Adorável, não acha? Praticamente um mártir.

Um pouco mais recuperado, Percy ficou em pé. Virou-se lentamente para trás, encontrando uma figura alta, de braços cruzados, usando um vestido todo rasgado e uma longa trança loira pousada sobre o ombro esquerdo. E lá estavam os olhos cinza como tempestades de verão que o perseguiam noite após noite, desde o dia em que se conheceram.

– Olá, Annabeth.

Ela curvou-se debochadamente.

– Sua Alteza – zombou. Percy não se importava. – Venho pessoalmente buscá-lo para sua Batalha Real, que acontecerá a qualquer segundo e, portanto, temo ser necessário apressar seu traseiro real para o Pátio Real onde todos estão reunidos e se preparando para uma morte real iminente, enquanto o senhor ocupava-se em regar as plantas reais de seu castelo real.

Ele estava tão feliz em revê-la que se contentava apenas em rir.

– Sinto muito, Annie. Não foi minha intenção preocupá-la. – garantiu, apesar das risadas.

– Percebo seu terrível arrependimento – devolveu Annabeth, sarcástica.

Percy se aproximou.

– Nada de perdão real?

Ela fingiu refletir.

– Pensarei sobre seu caso.

– Agradeço a compaixão.

Annabeth também se aproximou, analisando-o com olhos estreitos e sorriso suspeito. Depois de alguns segundos assim, ela repentinamente agarrou seu colarinho e o puxou na direção de seu rosto, até que os narizes se encostassem.

É bom que você nunca mais tente se matar sem me avisar, entendido? – ameaçou. - Porque a única coisa me impedindo de te empurrar daqui de cima é essa Batalha.

Percy ergueu as sobrancelhas, surpreso.

– Única coisa?

Os olhos cinza o esquadrinharam uma segunda vez. Ela estava séria, e Percy era capaz de vê-la ponderando alguma coisa.

Antes que pudesse fazer qualquer outra brincadeira, Percy foi puxado outra vez.

Dessa vez, foi de encontro aos lábios rosados de Annabeth.

Então ele sentiu tudo o que os cantores falavam sobre o amor. Sentiu a ansiedade, o êxtase e o sabor de uma sensação que, até aquele momento, jamais experimentara. Nem Nancy, nem Drew, nem ninguém mais. O encaixe perfeito entre os dois agora justificava tantas noites sem dormir e tantas borboletas ocupando indevidamente seu estômago. Justificava também o modo insistente como seus olhos pousavam em Annabeth e recusavam-se a se afastar.

Em qualquer lugar dentro de si, Percy repreendia-se por não ter feito isso há muito tempo.

E tudo isso durou pouco menos que seis ou sete segundos.

– Percy, temos que ir – Annabeth o afastou delicadamente. Apesar de corada, não tirava sua mente da missão durante um segundo a mais.

Percy disfarçou a decepção de um beijo tão curto.

– Você está certa. Como nós...

– Blackjack nos espera no telhado da cozinha.

– O quê?

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Rachel sabia que Annabeth já estava bem longe dali, mas continuava olhando para o céu.

Não se sentia exatamente preparada para o que viria, muito menos queria estar... mesmo assim, a voz de Apolo em sua mente era firme como um sino ressoante.

“Desculpe-me pelo que verá agora”, dizia. “Desculpe-me pelo que verá agora.”

Mordendo o lábio, soube que era hora de encontrar a casa.

Ao se aproximar, viu que parte dos cômodos manteve-se em pé, apesar da ventania ter derrubado mais da metade da pequena casinha. Talvez três quartos, uma sala grande, uma cozinha estreita. Por cima de tudo, estantes de livros quebradas, livros com páginas rasgadas e vidro – vidro por todo lado, sendo que alguns cacos ainda guardavam gotículas de líquidos coloridos e mal cheirosos.

Andando com cuidado ao redor da casa, Rachel sentia a respiração falhar ao perceber que não encontrava sinais de Luke ou Fritz. O que raios Apolo quer me mostrar?

Foi quando seus olhos se focaram em um livro de capa vermelha, com um castelo sobre nuvens desenhado em dourado. Sentia que já o havia visto em algum lugar. Porém, enquanto tentava se lembrar de onde poderia conhecê-lo, a visão começou.

Havia um rastro de sangue pelo chão, seguido por vários corpos espalhados. Muitos deles estavam mutilados, com rostos desfigurados e sendo pisoteados pelos soldados. Rachel precisou de tempo para identificá-los como tais: eram pessoas de todos os tipos, idades e gêneros, correndo na mesma direção e lutando contra seres invisíveis. Estavam vestidos com armaduras douradas e pareciam infinitos.

Então ela viu o céu. Uma tempestade rugia em perfeita sintonia com a guerra. Com um pensamento súbito Rachel lembrou-se do próprio quadro, que havia pintado há muitos dias. Ela estava diante da mesma cena, só que, dessa vez, era assustadoramente real.

Rachel buscou pelo inimigo tão feroz que aparentava ser o inimigo daquele exército, mas não o encontrou. Pelo contrário: Rachel visualizou o herói do povo. Ou, pelo menos, sua silhueta contra o pôr do sol. Ele estava sobre uma montanha, erguendo acima de sua cabeça uma espada reluzente, mas sobre a qual parecia não ter muito controle, como se não fosse habituado a manejá-la.

Havia algo de preocupante naquela cena, mas o povo parecia não notar – exceto, talvez, por um jovem entre todos eles. Por volta de vinte anos, cabelos arenosos e olhos claros, tinha as sobrancelhas unidas no meio da testa e gritava em desespero qualquer coisa que Rachel não foi capaz de entender. Mesmo assim, soube que ele era importante para a visão, principalmente quando saiu correndo na direção do herói, ainda gritando.

Ainda observava a cena quando começou a se sentir cercada por um vento tão forte que acabou por empurrá-la para longe do campo de batalha. Rachel flutuou sobre o que pareciam estrelas, entretanto mil vezes maiores e mais brilhantes. Quando sua visão já estava a ponto de não suportar mais a claridade delas, Rachel pousou delicadamente sobre um chão de madeira.

O piso era velho, sujo e quebrado. Estremeceu quando algo pesado caiu sobre ele. Rachel ergueu os olhos e viu... Fritz. Exatamente como o conhecia, exceto pela faca que estava cravada em seu estômago.

O velho rastejava-se com dificuldade pela casa, onde vários móveis estavam derrubados e roupas reviradas. Nem diante daquela visão agonizante, Rachel conseguia penalizar-se pelo sacerdote.

Fritz mantinha uma mão sobre o ferimento e a outra estendida para um quadro na parede. Quando conseguiu tocá-lo, o jogou para longe com a pouca força que ainda tinha. Onde estava a tela, agora se via uma portinhola de madeira. Ele a abriu com uma chave pequena, e logo depois se contorceu de dor. O pequeno esforço que fazia parecia tremendamente difícil.

Com cuidado, ele levantou um fundo falso de tecido e apalpou a região até sorrir. Trouxe em sua mão ensanguentada um pequeno frasco aparentemente vazio. A expressão de sofrimento dera lugar a uma alegria descontrolada e perturbadora.

– Agora, verei se você realmente funciona – ele disse, com a voz quase inexistente.

Cravou os dentes na pequena rolha e a destampou com facilidade. Rachel observava curiosa enquanto o velho bebia o líquido invisível e encerrava o gole com uma forte e dolorosa crise de tosse.

Seu suspiro foi sumindo cada vez mais rapidamente, até que não houve mais força em seu corpo, levando o sacerdote a desmaiar sobre o piso. Aparentemente morto, Rachel tentava entender o que tinha visto quando um cheiro forte de enxofre encheu o ar. Ela estava a ponto de perder o oxigênio e desmaiar também, mas algo a manteve desperta: o corpo inerte de Fritz havia começado a flutuar.

A partir de então, Rachel tivera as piores visões que poderia imaginar. A pele de Fritz foi arrancada violentamente de seu corpo, e todos os seus ossos e carne ficaram expostos, ainda no ar. Parte a parte, o corpo se desfazia como um boneco de madeira desmontado e seus pedaços giravam em redemoinho pela casa.

As bolas brancas que antes eram os olhos de Fritz passaram na frente do rosto de Rachel, como se pudessem vê-la, mas ela sabia que não era possível. O cheiro de enxofre transformou-se em um odor que só se sente quando um corpo já está morto há vários meses.

Rachel sentia o vômito subindo à boca, mas forçava-se a engoli-lo. Por um segundo, pensou que aquilo jamais acabaria e gritou. Seu desespero aumentou quando viu sombras dançando pelas paredes, e o corpo começou a se montar outra vez. Quando os olhos foram postos de volta em seu lugar, e o crânio de Fritz voltou a examiná-la, Rachel fechou os olhos em pavor.

Só voltou a abri-los vários minutos depois, quando o cheiro se dissipou. Viu, então, que todo o sangue espalhado pela casa havia sumido. O corpo de Fritz jazia sobre sua cama, sem facas cravadas ou qualquer outro tipo de ferimento. O sacerdote dormia em perfeita paz.

A porta da casa se abriu de repente, dando visão a um homem alto e em belas vestimentas. Estava tão transtornado e angustiado que Rachel precisou olhar mais de uma vez para seu rosto para conseguir reconhecê-lo: Dern. Ou Hermes.

Em seus braços ele trazia algo pesado e envolto em panos escuros. Rachel olhou para trás para ver Fritz, e o achou em pé, com roupas diferentes. Notou que vários dias, ou talvez meses, haviam se passado desde a noite que acabara de testemunhar.

– Você sabe o que fazer – Hermes disse em tom de ordenança, mas sua voz era vacilante. – Não me decepcione.

De Fritz, a única resposta foi um aceno afirmativo de cabeça. Quando o sacerdote estendeu os braços para pegar aquilo que Hermes trazia, Rachel ouviu seu nome ecoar pelas paredes da casa. Sabia que a visão estava perto do fim.

Correu para perto de Fritz, enquanto o sacerdote pousava os panos pretos sobre uma segunda cama existente em sua casa. Observava por cima do ombro do velho conforme este desdobrava com precisão cada camada de tecido. Fazia tudo tão devagar que Rachel teve vontade de desdobrar os panos ela mesma, antes que a visão acabasse.

Segundos depois – que mais pareceram décadas -, o tecido escuro foi retirado. De dentro do casulo, Rachel conseguia ver o formato do que era um corpo humano. Sentiu o ar ir embora de seus pulmões quando reconheceu o garoto de cabelos arenosos e, entre suas mãos, um pequeno lenço vermelho. Havia nele um bordado em dourado, de um castelo... nas nuvens.

Então tudo ficou extremamente claro e, logo em seguida, Rachel se viu novamente diante das ruínas da casa de Fritz. No centro da destruição, a capa do livro vermelho a encarava de volta. A respiração dela ainda estava falhando, e continuou assim conforme o vento empurrava a capa e as folhas do livro, abrindo-o e revelando sua história.

Antes de chegar ao fim, Rachel viu que as últimas folhas haviam sido arrancadas. Isso não importava, de qualquer maneira. Rachel agora sabia o fim da história daquele livro.

E isso a fez cair de joelhos, recuperando o ar em uma respiração longa e profunda.

– Luke – sussurrou para si mesma, ainda em choque, apoiando-se sobre a terra. – Luke... foi... foi o primeiro... Guardião, mas... mas o que diabos isso quer dizer?

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Quíron acordou no meio de uma clareira. As árvores ao seu redor lhe cobriam como espectros negros contra a luz do pôr do sol que se iniciava. O centauro parecia completamente perdido quando levantou a cabeça e visualizou o lugar onde estava. Levantou-se com dificuldade, sentindo uma dor aguda vinda do ferimento na perna dianteira esquerda.

Ao recuperar o equilíbrio, sacou com rapidez o arco que trazia pendurado ao ombro. A flecha foi prontamente mirada em todas as direções, enquanto Quíron analisava o silêncio do ambiente. Por fim, concluiu estar mesmo sozinho, perdido em algum lugar do caminho entre o Reino e o Acampamento.

Sua memória estava pior do que nunca. Borrões ocupavam sua mente todas as vezes em que se esforçava para recordar os últimos minutos vividos. A cabeça latejava incessantemente, forçando o centauro a escondê-la entre as mãos. Pensou em Percy, Annabeth e todos os outros semideuses que tanto amava. O ar estava pesado, quente e parecia não preenchê-lo por completo.

Repentinamente, a claridade do pôr do sol deu lugar a sombras. Quíron ergueu a cabeça pronto para encontrar-se cercado por inimigos, mas o que realmente encontrou não passavam de... sombras.

Elas dançavam ao seu redor como fumaça, sem formas ou sons. Conforme os segundos passavam elas adquiriam cores, rostos e profundidade. Quíron prestava atenção a cada uma delas, completamente maravilhado pelas coisas que via. As sombras formavam agora cenas de sua vida, mostravam o Acampamento e, por um breve segundo, ele viu quando Percy discutiu pela vida de Annabeth em sua sala, na Casa Grande.

E, de cena em cena, o centauro percebeu que o tempo retrocedia nas imagens. Via tudo de seu ponto de vista, desde quando esteve dentro do castelo como sacerdote indo até mesmo ao tempo anterior a esse, durante a guerrilha contra os sátiros. Quanto mais o tempo voltava, mais rápidas eram as cenas. A expressão maravilhada de Quíron transformou-se lentamente em choque e surpresa ao notar que as sombras estavam chegando a pontos da história os quais ele não conhecia... ou não se lembrava.

Então, ele viu a garota. A garota de olhos azuis elétricos. E o grito de Zeus que quase partiu o mundo ao meio. E antes disso. E muito antes. E Luke. E tudo.

E Quíron engoliu em seco. Quem quer que seja que tenha tirado sua memória estava agora lhe devolvendo. E ele soube disso, quando pulou contra as sombras e elas penetraram em seu ser.

Ele caiu sobre a terra. Ergueu os olhos para o pôr do sol, e os raios iluminaram sua face quando ele suspirou, cansado.

– Eu me lembro de tudo.

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Quando a escuridão se dissipou, restou apenas Hermes.

Atena o observava de longe, ainda temendo qualquer reação brusca, mas nada aconteceu. Ele continuou na posição em que estava: de joelhos sobre o chão, com as mãos na cabeça e, muito provavelmente, à beira das lágrimas. Mesmo assim, diante de tal fraqueza, Atena não sabia se era seguro se aproximar.

Foi ele quem quebrou o silêncio.

– Estou... arruinado – disse, finalmente chorando.

Atena engoliu em seco, forçando-se a dar um passo para mais perto dele.

– Hermes – chamou.

O deus recusava-se a erguer a cabeça para ela.

– Não preciso que me diga que errei – sua voz era grave, mas não agressiva. Apenas... frágil. – Eu tenho plena consciência do que fiz e o que acontecerá comigo agora.

– Eu não estou...

– Vá, Atena – fungou. Parecia exausto. – Você tem um dever a cumprir com eles.

Atena realmente tinha pressa, mas, ao mesmo tempo, não queria deixá-lo. No entanto, Hermes não cooperava. E ela não tinha tempo para uma conversa familiar. Mesmo assim...

– Deixe-me fazer apenas uma pergunta – pediu.

Hermes finalmente ergueu os olhos para ela. Seus antigos olhos azuis, gentis e até um pouco divertidos, mas que agora transmitiam apenas uma agonia terrível.

– Faça – assentiu.

Ela anuviou a expressão, tornando-se o mais doce que conseguia.

– Por quê?

O deus não pareceu surpreso com a pergunta. Apenas focou em algum ponto atrás de Atena, perdido entre memórias e mais memórias. Falava devagar.

– Porque... Eu não aceitei o fim de Luke. E, talvez, jamais aceitarei.

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Annabeth preparava-se para apontar para o Pátio Real quando Blackjack foi atingido.

A força com que foram empurrados para a esquerda lançou Percy e ela em direções completamente opostas ao Pátio. Enquanto caía e rolava pelo gramado, escutou a gritaria dos semideuses que corriam em sua direção.

O impacto não teve amortecedor. Annabeth teve a clara impressão de quebrar todos os seus ossos de uma única vez. Abriu os olhos com dificuldade, tentando focalizar urgentemente o local em que caíra.

Estava vários metros longe do Pátio Real. Enquanto levantava, sua cabeça girou com o esforço. A visão estava turva, mal reconhecendo Percy, também caído, pelo menos cinco metros dela. Não viu mais Blackjack.

Antes que a ajuda pudesse chegar até Annabeth, o chão voltou a tremer. Dessa vez, porém, o tremor foi diferente. Ela soube instantaneamente que aquilo era muito mais perigoso do que apenas Percy movendo as águas.

A terra pareceu imediatamente viva, movendo-se sob seus pés como um coração palpitante. Os semideuses que vinham em sua direção também pararam, congelados pelo medo. Ninguém sabia como reagir.

E não havia nenhum deus por perto.

Um silêncio aterrador tomou conta do reino. O vento havia cessado, e até mesmo o canto dos pássaros nas árvores não existia mais. Annabeth arrastou-se até alcançar Percy. O menino segurou a mão dela instintivamente. Quando os olhares de ambos se encontraram, Annabeth soube exatamente o que aconteceria a seguir.

Quinhentos metros ao sul de onde estava, uma fenda se abriu no chão. Ela se partia ao meio em uma velocidade assustadoramente alta, e vinha na direção deles. A vala que se formava era profunda, e parecia capaz de dividir o mundo em duas partes.

A mão de Percy apertou-se com força na de Annabeth, e o menino a puxou para si. A fenda, porém, alcançou o casal e os separou com violência, impedindo qualquer reação. Quando suas mãos se soltaram e Percy tornou-se apenas uma silhueta disforme do outro lado da vala, Annabeth gritou.

Mas sua fina voz foi suprimida por um estrondo muito mais alto e grave do que qualquer outra criatura viva poderia emitir. O vento recomeçou forte e gelado como aço e a lua, que havia acabado de surgir, desapareceu dos céus.

A Batalha dos Cento e Vinte anos havia começado.


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Notas finais do capítulo

Eu fiquei DOIS ANOS sem aparecer, então é lóóógico que teremos Notas bem compridas.
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Olá.
Primeiramente: perdão. Perdão por sumir, por não responder os reviews, por prometer capítulos novos em dezembro de 2013 e não ter cumprido a promessa. Perdão.
Bem, o que aconteceu é que 2013 foi uma ano bem ruim. Eu comecei a me perder em GdR a partir de abril, demorando pra postar. Atualizei em maio, depois só em julho. E, desde então, nunca mais.
É que 2013 ficou ruim a partir de abril, também. Maio foi horrível, junho foi pior, julho ainda mais e por aí em diante. Problemas e problemas pessoais se acumularam em cima de mim, tirando a graça de praticamente tudo o que eu fazia. Em algum momento, é claro, esses problemas atingiram o Nyah, e foi quando eu não vi mais graça em escrever.
Depois de beirar a depressão, finalmente meu mundo melhorou em dezembro. Consegui escrever esse capítulo em um dia, faltando apenas o 38 e o 39. Foi quando publiquei no meu perfil aquelas datas para postagem. Só que... eu tinha ficado muito tempo longe daqui.
Acabei esquecendo partes da história, e aquele capítulo estava CHEIO de lacunas e erros de continuação. Notei isso dias antes do Natal, que era o dia de postar. Fiquei com raiva, apaguei tudo.
2014 foi meu terceirão. Escola integral, particular, material Positivo do capeta. Enfim: eu não tive tempo pra nada. Surgiu uma ou outra história minha nova aqui no Nyah, mas eram apenas lampejos de inspiração que se iam no mesmo segundo. Travou tudo. Nem mesmo meu livro andava (tô escrevendo um livro, sabiam? :D). Toda aquela pressão de "tire uma nota boa no Enem, passe na faculdade!" me deixaram quebrada.
E então, veio 2015! O ano em que decidi finalmente acabar Guardiã do Rei e outras fanfics postadas aqui no site. Tive essa resolução por dois motivos:
a) quero escrever meu livro com a consciência tranquila;
b) sentia saudades de vocês.
Pedi ajuda a uma beta aqui do site e uma amiga da "vida real", heuaheua. Pra beta, contei toda a backstory que imaginei pra GdR. Embora ela tenha apenas me escutado (como colocar nos ombros dela uma fic enorme como GdR? :0), ajudou demais justamente por ter escutado. Enquanto expliquei a fic pra ela, consegui desenrolar cada nó que tinha ficado. Foi mágico.
E minha amiga da vida real, claro. Que me ajudou a construir a cena mais difícil do capítulo: Percy inundando tudo. Ficou meio viajado, mas eu adorei. ehauehauheua
.
É claro que eu nunca imaginei que o cap ficaria tão grande. Mas era muita informação nova para entregar, muito personagem pra direcionar. E, devido a tanta saudade, coloquei de tudo: desde tragédia até Percabeth meloso! E fiquem à vontade para fazer perguntas. Eu muito provavelmente não responderei toooooodas (posso dar spoilers!), mas tentarei ajudá-las a captar tudo. Precisei reler a fic desde o início - e eu cometia tanto erro de português, vocês nem imaginam o.O -, mas isso cooperou pra que eu encontrasse os pontos mais importantes do enredo. Usei a técnica dos trechos de música pra destacá-los. Deem uma passeada por aí pra refrescar a memória, people. :D
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Finalmente, perdão mais uma vez. Não sumirei mais, heuaheua. Meu plano era escrever os três últimos capítulos de uma vez, mas... ao terminar esse, eu senti TANTA vontade de postar que não resisti. Aviso desde já que posso demorar a entregar os próximos capítulos, mas isso não siginifica outro hiatus, viu? Não mesmo! :DD
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Era isso.
Queria agradecer a todo mundo que leu a fic durante o hiatus, e também a todos que se importaram em deixar um review pra me apoiar. Vocês não têm ideia do quanto foi importante. Sempre que tinha vontade de jogar tudo pro alto, voltava a ler e me inspirava.
Amo vocês.
Perguntas, reclamações, sugestões... só falar. Tô aqui, ouvindo. Minhas redes sociais estão lá no meu perfil. Mais uma vez, desculpe.
E que venha a reta final de Guardiã do Rei!!! o/



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