Um Dia Qualquer. escrita por Hikari


Capítulo 33
Flashback.




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Pov. Will.

–Não acho que dará certo. –respondi-lhe, sentindo o temperamento quente do celular em minha palma esquerda. Pressionei o botão retangular na caixa metálica diante de mim, escutando o som de ruídos automáticos e esporádicos. A mecânica apitou, soltando vários estalos repetidamente. E por fim, a máquina moveu-se. Observei a espiral de aço girar em seu mesmo eixo, desenroscando uma lata de conserva de massa alimentícia. Aguardei enquanto o mecanismo funcionava metodicamente, lentamente, assim como meus batimentos cardíacos estavam. O ar estava gelado e congelava a superfície de minha pele, que por um descuido meu esquecera-me de recobrir, ficando totalmente exposto as correntes tilintantes e rançosas do sopro ilegítimo. Fiquei ali, sem me mover, com o celular, apenas aguardando-a retrucar e dizer algo imprudente como costume. A decência de sua consciência não podia ser controlada; suspiro, um vapor abafado dissolve-se no vento a frente, efeito de minha expiração. Dou alguns pulinhos frenéticos e enfim a máquina finalmente desprende de seu interior a lata que tanto dependia minha permanência ali. Continuo com a mão esquerda tampando meu ouvido respectivo, agacho-me, dobrando os joelhos cautelosamente, em posição um tanto desconfortável que logo me acostumei, estendo minha mão impondo-a na abertura maleável de onde retiro o propósito infeliz. A lata estava quente. Agarrei-me àquele calor e empertiguei-me novamente. Escutei uma respiração pesada e vagarosa do outro lado da linha.

–Claro que você não acha! Quer confiar por um segundo em mim, por favor? Ela irá adorar. –a voz alterada de minha prima revidou alegremente, sem demonstrar aparente incômodo com meu tom de resposta. Ela ainda acredita que aquela ideia surpresa poderia acabar em bons resultados. Gostaria que ela pudesse analisar sobre minhas perspectiva, o que era, obviamente, impossível. Tinha uma forte impressão de que algo estava fora da trilha, algo desviara-se. Com o pressentimento de que esse “algo” poderia colidir a qualquer instante em uma barreira obstruindo seu caminho, restando-lhe apenas vestígios de um dia ter passado por tal lugar. E isso não era bom. Meus dedos envolveram com mais intensidade ao redor da lata com a tentativa de transmitir aquele aquecimento para meu corpo, contudo ainda sentia as linhas trêmulas do ar noturno pairando acima de minha cabeça, de meus membros, paralisando-me como uma frágil vítima prestes para ser abocanhada. Semicerrei os olhos e olhei para a máquina que incendiava uma luz solar irradiando-a para aquela rua vazia e estaticamente grande. Meus olhos arderam. Não conseguira desvendar como raios minha prima ainda suportava ficar até aquele momento da noite (ou seria madrugada?) desperta sem um traço sequer da familiar sonolência a qual já adentrava minha caixa craniana para domar meus sentidos. Balancei minha cabeça, espantando a letargia. Concentrei-me nos meus pés.

–É meio complicado pedir isso para mim, prima. Vindo de você. –não quis lhe dar a oportunidade de acabar me arremessando em outra armadilha como determinadas que planejara e organizara sobriamente quando éramos menores. Parecia que eu tinha uma corda inquebrável enroscada em meu tornozelo, cuja extremidade Aimee prendia no pulso e me arrastava para onde quer que ia. Embora fosse mais velha, não era de plena responsabilidade exemplar. Um teste? Se fosse fazê-lo (e acredite, eu já o fiz) facilmente iria ter um consenso unânime de minha afirmativa caso o discutisse com alguém próximo a ela, tal como Aaron. A prova viva, e conveniente, eram suas próprias irmãs gêmeas, Arianne e Trianne.

Como eu a aguentava por todos esses anos me usando como cobaia experimental em suas experiências especulativas? Sinceramente? Eu não sei.

–Ora, como se fosse uma decisão. Você vai confiar em mim, queira ou não. Irei agradá-la como deseja, é o aniversário dela, afinal! Por que não deveria se alegrar com nossas visitas? Não se preocupe, você está (e devo acrescentar, é) muito aflito em demasiada insistência. Já disse para relaxar! Irá ocorrer tudo bem, pode deixar em minhas mãos. –após recitar as palavras com uma energia cheia de veracidade, a linha fica muda e sou deixado a meio passo de reiterar os fatos, a boca aberta, a expressão fechada e arreliada, testa franzida apreensivamente. Não sabia se devia repreendê-la, ou encorajá-la. E não pude escolher uma das opções, pois ela já houvera desligado. Respirei fundo novamente e lentamente abaixei meu braço, colocando o aparelho no bolso de minha calça, aproveitando para acomodar minhas mãos em um revestimento morno, ali dentro. Brinco distraidamente com o celular entre os dedos. Levanto o rosto, refletindo sobre a conversa que acabara de ter com minha prima. Não poderia evitá-la, claro. Estava em desvantagem. Eu, contra Aimee, Aaron, Arianne, Trianne, meus tios e minha irmã. Obviamente, a inclusão de Aimee como “líder” já excluía qualquer indício de possibilidade em optar para vencer uma discussão. Mas não podia deixar de tentar.

Meus olhos passeavam pelo negrume ao meu redor, meus ombros encolheram-se quando estremeci ao sentir a brisa suave e cortante rastejar pelas dobraduras de minhas roupas e subjazer por entre as entradas, recortando pedaços de minha pele. Reprimi a onda de tremor que subia pela minha coluna, retesando meus músculos e apagando aquela imagem da realidade de minha mente. Meus olhos fixaram-se na roda gigante que instalaram perto de onde me encontrava, para o festival – ou confraternização, como desejarem chamar –que teria dali algumas horas. De onde estava as pontas das árvores e as trevas ocultavam sua metade, e conseguia visualizar apenas o pico da roda. Meu peito subiu em um gradual suspiro, que desvaneceu com a memória apagada há muito tempo. Meu pai levara-me certa vez para aquela recreação. Tivera temor de subir na plataforma fechada em que entrávamos. Suas portas, paredes, teto e solo eram de vidros, portanto iríamos subir com a crescente sensação de estar sobrevoando o terreno abaixo, sem nenhum apoio. Não havia cadeiras. Entretanto, havia barras transparentes, porém presentes. Meu pai havia gargalhado de mim e segurado firmemente em uma das barras de aço incolores, e eu houvera abraçado sua perna com o máximo de força que tinha quando era pequenino. Ele afagara minha cabeça nas três voltas inteiras, completamente constituído de uma presença de espírito forte que me trazia coragem, fazendo-me perder o medo e voltar-me para a beleza natural que antes era privado. Pudera, quando relaxei, estudar cada arquitetura, cada paisagem e cada estrela no céu onde encontrava-se naquela época. Conhecera uma nova garota naquele dia, o primeiro deslumbre, o primeiro encanto que prendeu-me a afeição até uma inexplicável carência de seu reflexo. Era uma estrela. Uma preciosa e especial estrela. Ela encontrava-se escondida entre as bilhões de suas companheiras, e reconhecera-a como sendo minha. Ela fora minha guia por anos, e estava lá quando chorei, sim, pelos meus pais. E estar naquela plataforma envidraçada fora uma experiência excruciante, aterradora, bucólica, e pacífica. Sentira-me incapaz de suprir minha audácia a princípio, depois começara a me ater a esperanças brilhantes e efervescentes e por fim reunira força o bastante para me possibilitar as grandezas que até aquele momento ignorava.

Obriguei meus pés a me obedecerem, um passo após o outro. Afastei os pensamentos de imediato. A lembrança mostrava-me os últimos momentos que tive com meu pai, antes de ele vir a... bom, não estar mais conosco. Ainda segurava com uma pressão contínua a lisa e morna lata. Sentia em minha nuca o que havia atrás de mim. E podia sentir a amarga angústia pesando minhas costelas, meu esôfago e minha medula, transmitindo-me através do meu organismo uma adrenalina a qual tornava impossível descansar. Algo estava acontecendo. Tinha certeza disso. Mas o quê?

Pensei nela novamente. A garota que me evitara por três longos, desgastantes e dolorosos dias. A sua imagem com infinitos prováveis acontecimentos atormentavam meu sono. Meu receio do que havia decorrido com ela me fazia todos os dias recorrer a diversas maneiras de tentar me contatar com ela. Queria poder saber o porquê de seu súbita desaparecimento. Queria poder ouvir sua voz. Segurar sua mão, aquecer seus dedos. Sentia falta de sua presença ao meu lado.

Annie. O que acontecera? Por que tinha esse opressor pressentimento achatando-me?

Meus pés estancaram seus movimentos. Agucei minha audição e ouvi o som de passos coléricos por perto. Cinco minutos mais tarde, seguia as costas, na região entre as escápulas, de um homem correndo, apressado, a minha frente, após ter passado por mim sem notar-me. Meu corpo abrandou a tensão de cada molécula corriqueira, e só então percebi minha postura. Elevei meus olhos para os céus. Nenhum sinal de estrelas. Nenhuma evidência de minha estrela. Apenas uma ofuscada, pálida obscuridade abrangente e notável, inundada de mistérios para nos revelar no tempo adotado. O que nem sempre era o tempo que queríamos. Não era como naquela noite. Era como a noite anterior, e a outra, e a outra. Um buraco incompleto instalara-se no meu peito, impossível de preencher. Lacunas abertas da ferida de que não conseguia curar. Ignorante em relação aos motivos. Tudo começou quando ela não aparecera em nosso ponto de encontro, piorando quando seu irmão me contara sobre sua má saúde e pela proibição de visitá-la, e ainda da restrição que tinha em, ao menos, conversar calmamente com ela.

Era assim que me estava minha conduta. Como aquele céu. Inúmeros infinitos, inúmeras incógnitas, incontáveis impossibilidades. Nenhum guia. Não sabia o que fazer para encontrá-la. Não conseguia encontrar minha estrela. Ela estava inalcançável, recoberta por um tecido vultuoso e efetivo. Assim como Annie. Era como se um asteroide inesperado houvesse caído dos céus, uma ira do passado galáctico, e segregara-me dela. De Annie. Um enorme abismo formando-se aos meus pés, de valor intransponível, provocando-me e intimidando-me, atiçando-me a observar Annie em uma aflição que eu não podia conter, não podendo consolá-la, abraçá-la.

Meus pesadelos frequentemente representavam essa paisagem. Havia sombras que escondiam-me da visão de qualquer um, tornando-me apenas um contorno invisível e insignificante, com o mesmo abismo rachando o solo diante de meu corpo, e eu paralisado, sem tentar me mover, ou escapar – apenas inerte. Com os olhos fitando a frente onde uma garota encolhia-se, ajoelhada, na beira do estupendo buraco negro, os cabelos escuros cascateando as laterais de sua feição, o rosto indefinido por conta de uma máscara fina e confusa. Suas mãos levantavam-se, em cada cena, não importa o quanto repetisse, e fechavam-se em punhos na altura do peito, indicando algo dentro de si, algo que a atormentava e perturbava. Porém não sabia o que era, e mesmo se soubesse não faria tanta diferença. Como poderia ajudar estando tão longe? Como poderia confortá-la? Acreditava que mesmo o tão alto que gritasse, ela não me escutaria. A máscara me impedia de vê-la, mas sabia quem era. Sempre soube.

Por longas horas ponderei sobre aquele sonho ter algum significado. Entretanto, se ele realmente o tinha, não estava servindo de grande ajuda. Não encontrava o ponto que buscava, e continuava sem solução para os problemas que pareciam me sufocar.

Meu pulso vibrou conforme o relógio alarmava-me, sacudindo-se freneticamente como se um germe o houvesse dominado. Dois bipes. Três. Chacoalhei meus braços para espantar a dormência e ergui o pulso na frente de meus olhos. Semicerrei minhas pálpebras para adequá-las a luz quando uma pontada aguda transpassou meu globo ocular, experimentando a iluminação e ajustando-a para poder abri-los inteiramente e fitar os números que piscavam, insurgentes. A digital marcava precisamente o horário. 2:00 AM. Hora de voltar.

Hora de fazer minha escolha.


Pov. Chloe.

–Você está sentindo-se melhor? –escutei sua pergunta como se estivesse a milhas de distância. Encarava o alimento como se fosse um grande e venenoso maciço cremoso. Não conseguia engolir, não conseguia responder. Era obvio que não estava. Era obvio que não ficaria por um longo tempo. Uma nota decrépita soou pelos meus ouvidos, e pausou em meio ao caminho de meu cérebro; não consegui interpretá-lo. –Chloe?

Sua mão quente enganchou-se na minha, consolador e amigável. Levantei meu rosto abaixado e vi os âmbares me fitarem preocupados. Deslizei um sorriso encenado para ele, tentando inventar uma discrepância em minha feição, tentando transformá-la no máximo possível parecida com um rosto saudável. O assunto que estávamos dedilhando com cautela era algo substancial, perturbador e me trazia certo desconforto. As palavras de papai relembram-me, importunando-me e retalhando os finos e delicados fios que tecia dentro de mim a fim de me proteger. Eles estavam se rompendo, e nada poderia fazer. Ninguém podia.

–Sim. –forcei a saliva amarga escorrer pela minha garganta, levando com ela o néctar que bebericava sem muito apetite. –Sim, Luke. Estou bem, bem.

Luke suavizou a expressão, mas não cedeu a minha resposta. Não culpei-o, não tencionava convencida o bastante. Estava insegura, e temerosa. Era de admirar que até agora ele conseguira permanecer em sua cadeira e não levara-me para a extremidade mais longínqua de Panem. Luke não estava determinado o suficiente para me confiar a responsabilidade que herdara de meu pai. Franzi a testa, e afastei meus pensamentos, estufando levemente minhas bochechas e enfiando mais líquido para dentro de minha garganta para dispersá-lo e não denunciar minha paisagem eólica, cujas características poderiam perder-se para a infinidade por um simples sopro, o mais suave que fosse. Como se fosse ele quem decide as questões de minha vida. Luke... Luke. Por estar bebendo meu licor, quando fui bufar despropositadamente, engasguei de uma maneira deliberada e tossi para liberar meu sufoco. O âmbar imediatamente arregalou-se e foi parar a minha frente com um senso agitado enquanto lentamente eu ia me acalmando. Um segundo depois, um sorriso engloba seus lábios, imperial e travesso. Observo-os ainda recompondo-me.

–Pensamentos viajantes, Grace? Não me assombra esse evento ocorrer com tanta veemência. –rolo os olhos e ele solta uma gargalhada, limpando meu queixo com o dedão. Balanço a cabeça e ele levanta-se de onde estava agachado, ainda detectando meu rosto com os âmbares intensos. Ele não para de me acompanhar como se eu fosse desvanecer ou fraquejar em meu ponto mais indesejado e versátil de minha vida. Carrancuda, mostro a língua para ele, como nos velhos tempos, imitando uma atitude típica de quando éramos menores. Por que fizera isso? Eu não sei. Talvez eu sentisse falta de nossa antiga intimidade, quando podia dizer-lhe tudo o que sentia, ou o que se passava em minha cabeça. Não que eu não pudesse fazer isso agora, eu simplesmente... não conseguia. Como se algo me impedisse, uma barreira, uma rocha, algo. Estava privada do que mais ansiava, e não mais podia dar-me a concessão de estar com ele dessa maneira. Mas por quê? Uma parte de minha mente indagava-me. Por quê? Só por causa do acordo? Isso não muda absolutamente nada, você sabe disso. Claro que muda. Muda... ou seria apenas impressão? Nada era como antigamente, como desejava que fosse. Pessoas foram perdidas, nós crescemos, assim como nossos Conselhos e os ideais. Uma melancolia e nostalgia crescente assombra o passado e entorna minha mente com violência. Focalizo em seu sorriso, cujo surge mais reluzente e... real. Como há tempos não pude receber. Como nos antigos tempos, quando ele pegava minha mão e eu brincava com seus dedos inocentemente. E então, Luke curva-se, bagunça meu cabelo já desarrumado, abre a boca e deixa escapar com um tom vitorioso: –A velha Chloe está de volta.

Rio por um momento notando o tom ingênuo que a risada absorve conforme eu relaxo. Paro, percebendo repentinamente o que estava fazendo. Limpo a garganta e enrijeço minhas costas. O que acontecera? Não. Não posso me portar assim, não mais. Não sou aquela pequena garota que o conhecera há anos, na Área Sul, quando meu pai foi chamado em uma missão e eu tivera de segui-lo. Desviei o olhar e notei seus âmbares me perseguindo, desconfiados. Luke suspirou pesarosamente, o sorriso apagando-se aflitivo, e sentou-se novamente a minha frente na pequena mesa da cabana, longe de qualquer Distrito, onde ele alojara-se desde quando cheguei, com ele sendo meu companheiro de viajem. É nítido que seria. Mesmo que retrucasse reiterando para ele o quanto os dois líderes dos dois mais importantes Conselhos saindo da proteção de nossas fronteiras ser algo relativamente perigoso, ele não dava a mínima. Não queria me deixar.

Fixo meus olhos no prato novamente. Não quero voltar a pensar sobre isso. Supunha já estar acobertada pelos acontecimentos recentes protegendo-me, contudo, percebo agora que era mais complicado livrar-me de minhas raízes do que de início planejara. Não podia escondê-las no solo fértil, e ele se tornaria estéril. Não poderia cortá-la, pois ela reverteria a ação para nocautear-me duplamente mais ardilosa. Não poderia queimá-la e as queimaduras apareceriam em meu próprio corpo. Estava presa, e portanto, ainda não conseguia ponderar se isso seria minha ruina, ou minha salvação. Se era uma maldição... ou se era uma benção.

–Olhe para mim. –Luke chamou-me, sua voz estava calma, paciente, e não atingia aquele nível frio no qual ultimamente adequara-se. Era o tom sutil e brincalhão de antigamente, quando o conheci pela primeira vez. Por uma distração, eu fiz o que me mandou. Talvez eu quisesse tê-lo feito. Talvez eu queria vê-lo daquela forma genuína e compadecida como o via antes de tudo desmoronar, quando o ar tornara-se lúgubre e ácido, corroendo meu exterior e deteriorando minha mente enquanto acomodava-se em minhas células como elementos radioativos em alta disposição. E portanto, naquele instante, algo pareceu dilatar-se dentro de mim, e seus olhos voltaram a ser os amenos e reconfortantes, o refúgio que buscava por anos. –Chloe, por que você está agindo assim comigo, com todos? Você não é assim. Ou, pelo menos, não era...

Não respondo. Entretanto, não intercepto nossos olhares. Mantenho-o comigo, tentando suprir a necessidade de dizer-lhe o me incomoda. Normalmente não preferiria, mas naquele momento, gostaria de estar em uma chacina, onde saberia o que fazer, e que passo dar, quais movimentos escolher e que arma lutar. Aqui, eu estava inapta, desarmada e vulnerável. Tinha a frágil impressão de ele conhecer meus pensamentos, e saber o que estava pensando. Sua expressão torna-se cuidadosa, como se temesse no que diria a seguir.

–É por causa do acordo, não é? –ele indaga. Não questiono, não afirmo. Mas também não nego. E ele está consciente disso, pois seu olhar torna-se duro e desolado, como se eu houvesse o esfaqueado no peito. Às vezes, não pronunciar sua palavra, pode ser a pior opção a escolher. Os âmbares transformam-se de vívidos para apagados, quase escuros. Um calafrio percorre minha nuca. –Não vou obrigá-la a concordar com todos os tópicos requeridos. Não a tornarei minha adversária caso queira quebrá-lo, os laços do meu Conselho continuarão unidos com o do seu...

O tom de sua voz firme torna-se ligeiramente e brevemente trêmulo, até por fim abaixar-se, e passo a vê-lo como um borrão. Uma sombra esburacada, vinda do lado oposto de um alto muro consistente e opaco. Tento empurrá-lo com minha palma, mas o toque frívolo e áspero faz-me retrair. Ainda consigo escutar seu timbre, porém, não sei de onde ele o vem. E então, outras vozes passam a preencher minha cabeça. Outro espaço passa a encobrir o território em que me encontro. Não estou mais na cabana confortável e rudimentar de Luke, onde as chamas do fogo baixo na lareira esquenta nossos pés e a mesa simples abriga o alimento servido.

Estou correndo. O vento açoita meu rosto quando levanta meus cabelos e fazem-no dançar em volta de meu rosto. Estou sorrindo, e minhas bochechas estão doloridas por repuxar meus lábios de alegria. Minhas mãos estão entrelaçadas com uma maior, que facilmente consegue ocultar minha pele. Um riso alto e reverberante ecoa pelos meus ouvidos, e eu reconheço-o. É o riso de meu pai.

Porém, antes de levantar os olhos para enxergar quem me guia, uma memória rapidamente ultrapassa e esquiva a frente de outra. Arquejo, esbaforida e imagens pulam de minha visão, a própria embaçada e tortuosa, colidindo rispidamente com fragmentos alterados de memórias frenéticas. E tudo para. Vozes alteiam, e eu escuto.

–...e esta é a minha princesinha, Chloe. Cumprimente-os, querida. Não tema.

Estou em uma área plana e arejada. A meia-lua descansa em seu ápice acima de nossas cabeças, faiscando sua luz, banhando-nos com seu sorriso lôbrego e mortífero, o vento morde e belisca minha pele, mas o casaco de couro que visto, maior do que meu próprio corpo subitamente menor do que usual, me resguarda. A lembrança parece vaga, e são aparentemente movimentadas automaticamente, deixando-me incapaz de controlar meus membros. Meu braço estica-se e a manga do casaco pende frouxamente de meu pulso, quando eu puxo o longo tecido para cima, afastando-o e descobrindo minha mão, tornando possível que uma segunda pequena mãozinha, próxima a minha, a aperte, assim como outra maior. Reconheço-os. Eu...

–Chloe. –minha voz se prolonga sem que eu comande, ela está nitidamente mais fina e infantil, de quando era menor, e logo levanto meu olhar, encarando a minha frente... –E você, é?

–Sou Luke. –ele sorri, e posso observar seus olhos peculiarmente âmbares rirem. A sua versão mais jovem, de sete anos, veste uma túnica negra, cobrindo suas roupas igualmente camufladas. Apesar de conter um arco preso nas costas, ele não o faz parecer estranhamente inadequados em seu corpo, ou desproporcional para sua idade, apenas diferente. E não poderia resmungar sobre qualquer coisa, de qualquer jeito. Em minha figura da mesma idade aparento ter roupas sobrepostas de papai e, embora ninguém as vejam, uma série de adagas alinhadas em meu cinto, tornozelos, sapatos e antebraços.

–E eu sou Septimus, seu pai. –o homem ao seu lado acrescenta, apoiando seu grande braço nas costas de Luke e dando uma leve batida em seu ombro, afavelmente. Torno minha atenção para ele, e analiso-o. Ele se assemelha de muitas formas com seu filho. Usa botas de couro que sei estar escondendo algo, e na lateral da túnica escura tem uma protuberância onde seria seu cinto, com evidentemente o cabo da espada, onde sua mão esquerda está apoiada. Porém, apesar de todos os detalhes, não o temo. Ele sorri abertamente para mim, os olhos pintados de uma harmonia carinhosa e um cansaço acumulado por um longo tempo, com rugas dando indícios em sua testa e abaixo dos olhos, salientando-se quando franze a testa e volta para meu pai. –Ela parece muito com você, Grace. Tanto na postura como na graciosidade.

Ele ri, divertido, e papai concede um leve sorriso verídico, dando-lhe um soco brincalhão. Parecem se conhecerem, como velhos companheiros de infância. Suponho, entretanto, que eles não realmente se conheceram jovens. E sim, estava certa quanto a isso. Papai volta-se para mim, uma das pernas visando uma rocha mais à frente indicando sua postura de partida para outro caminho. Ele alterna-se para mim e para Luke.

–Voltaremos logo, será que podemos contar com vocês para fazer a guarda?

Ambos assentimos energeticamente, vigorosos, e então eles se vão. Olho ao meu redor e por fim acabo ficando de frente a Luke. Tenho uma leve impressão de que essa não é uma simples visita, e que nós não vamos apenas nos ver de passagem. Um forte pressentimento atesta-me de terei de lidar com ele por muito e muito tempo, acostumar-me com seus hábitos. Este ostenta um sorriso torto e sarcástico, e a testa enruga-se quando diz:

–Você quer postar-se a minha esquerda, ou a minha direita?

A imagem muda, mas nesse período tenho um breve tempo para me recompor. Aquela foi a primeira vez que o vi. Obviamente, estava certa em relação a nossa intimidade. Depois daquele dia, papai frequentemente passou a se encontrar com Septimus, e consequentemente via Luke. As constantes visitas passaram a tornar-se quase uma rotina, até por fim virar realmente uma, e eu considerá-los membros de minha minúscula família, constituída apenas por mim e meu pai.

Lembro-me do dia em que ele o perdeu. Digo, quando Luke começou a mudar. Quando começou a ter mais fardos e responsabilidades do que deveria, quando era Septimus quem tinha de estar tomando a liderança – mas que escolha havia, se ele não estava mais lá? Lembro-me de seu rosto, de quando consolei-o em meus braços.

Risos comunicam-se entre si, unindo-se e misturando-se a gritos desconsolados e desesperados. Cores se enroscam e vidas se transmutem, fios ligam-se e respostas piscam. O solo titubeia em meus pés, mas logo consigo equilibrar-me.

–Acho que nunca cheguei a contei a você o porquê de meu pai se chamar Septimus. –Luke diz ao meu lado enquanto termino de descer da árvore na qual escalamos. Uma risada desvanece em minha garganta, um sorriso dá lugar para uma careta de curiosidade.

–Não. Você me dirá? –questiono-o, e percebo que estou usando botas maiores feitas de pele de alce, com uma camada impermeável por dentro. Um casaco pesado, desta vez favoráveis a minha estatura, recobre meus ombros, caindo confortáveis pelo meu corpo. Eu estou quase da altura de Luke, embora ele consiga me ultrapassar por poucos centímetros. Ele também aparente estar mais velho, e as roupas não estão mais desajeitadas em seu tronco. Vejo que se passou algum tempo. Seus braços estão puxados para trás, com uma das mãos agarrando o pulso de outra, olhando-me desafiadoramente com uma sobrancelha arqueada.

–Se você quiser. –finalmente pronuncia-se; franzo a testa, desconfiada. Estávamos na época do inverno, e uma neve branca paralisa o chão. Tínhamos escalado a fim de observar o campo ao nosso redor, nunca ficávamos confortáveis em Áreas desconhecidas, ambos não tínhamos experiências convenientes e agradáveis para relatar sobre o tempo que eventualmente passávamos por lá. Nossos pais estavam em uma reunião, líderes dos respectivos Conselhos, em busca de outras missões e informações com outros grupos, unindo-se naquela vila; que não mais parecia uma vila para mim já como suas fronteiras alcançavam os dois pontos de um oceano. –Não é grande coisa, realmente. Mas talvez ache interessante sua história.

Nunca me veio a cabeça perguntar-lhe sobre tal assunto, embora tenha certo intuito em descobrir mais sobre a vida deles. Começamos a andar pelas árvores ao redor criando buracos na neve abundante, marcas de nossa pegada, e iniciei meu trajeto acomodando meus pés nos passos já dados dele, encaixando-os na neve afundada. Entretanto, não havia tantas árvores como na floresta densa mais no interior, e podia assistir as crianças da vila correndo em volta de um rabugento e desconhecido animal, como um lobo, porém três vezes maior, com os pelos eriçados e chifres pintados com listras azuis, indicando sua Casa. Algumas das pequenas também tinham tais listras, mas não eram sempre as mesmas. Conhecia aquela vila, e sabia de sua distribuição de população. Alguns tinham símbolos estoicos esverdeados gravados na pele. Outros eram símbolos mais divagantes e azuis, como o do animal. Notei crianças com marcas amarelas e cinzas, poucas azuladas e verdes. Talvez pergunte a meu pai certamente como funcionava o governo daquela Área. Não sabia do governo muitas Áreas pela qual passava, não me interessava, para admitir com sinceridade.

Encarei Luke novamente, e torci para não dispersar outra vez.

–Sim, conte-me. Por que o nome de seu pai é Septimus?

Luke empertigou-se e virou-se para poder me examinar. Continuava caminhando de costas e fixava em mim os seus âmbares penetrantes. Ele compôs uma feição séria e abstraída, limpou a garganta. Tentei não rir, e essencialmente me concentrar em sua história.

–Meu pai é o sétimo filho de um sétimo filho, porém, ao contrário de muitos mitos, ele não tem nenhuma aptidão para tornar-se um caça-feitiço ou algo do gênero. –uma raiz se engancha para fora da neve, dando-lhe um aspecto exótico e visível. Luke se esquiva dela, contudo não sei como consegue vê-la, considerando a maneira como está sua determinada posição. Ele leva as mãos para a nuca e as cruza, confortavelmente. –Cada um de seus irmãos tinham um nome baseado em seu número de nascença, e todos estão espalhados por todas as direções que você decidir seguir. Cada um recebeu uma missão, e uma pedra.

–Hm. –murmuro, e aperto o passo, aproximando-me dele. Inclino minha cabeça para frente. –E para qual propósito, exatamente, isso serve?

–Para qual você acha? –ele abaixa os braços e os aconchega no bolso da calça, seus lábios vertem-se em uma meio sorriso maroto e seus olhos âmbares imploram por mais perguntas. Seus ombros levantam-se, como se fosse obvio, e seus pés param, fazendo-me cambalear e não ter mais do que alguns poucos metros de distância entre nós. Seu corpo verga-se para frente, e ele sussurra em meu ouvido: -Para ficar mais intrigante.

Prendo a respiração, relembro do que meu pai me ensinou por todos esses anos. Talvez nós criamos situações para tornar nossa vida singular e única, menos desesperadora nas mãos da monocórdia. Lembro-me das discussões acirradas que de vez em quando papai e Septimus tem. E de nossas inesperadas fugas. Ele tem um trato, uma missão, uma pedra, um motivo... Entretanto...

–Mas... –sussurro mais baixo ainda, minhas mãos derradeiramente mais geladas do que antes. –Tudo isso tem um preço. Não é?

Um rumor reclama mais alto em nossos ouvidos, e repentinamente um estrondo ribomba ao nosso redor, um clarão ofusca minha visão e um tremor violento derruba-nos no inebriante gelo no qual parece me arranhar e desmotivar, congelando meus ossos e despedaçando minha alma. Meus ouvidos zunem e as parcas árvores ao nosso redor começam a arder em chamas. Meus braços parecem fracos, porém ignoro a latejante dor que teima em evoluir e levanto-me de onde estava caída, em um dos braços de Luke. Seu rosto está inexpressivo e pálido e fita o espaço atrás de mim. Equilibro-me em um tronco com as folhas dos galhos mais altos faiscando e me dirijo para trás de meus ombros.

A vila explodiu em um devastador incêndio. Apesar de estarmos no inverno, e entretanto não estar nevando, a cena parece sombria e pacata, com as cinzas borbulhando dos céus. Não sei o que aconteceu, nem o que poderia ter causado isso, apenas um pensamento envolve minha mente como um alerta repudiado.

Meu pai está preso lá. Ele está dentro da vila. Ele pode ter sido atingido.

–Não, não... –Luke pragueja cada vez mais alto, e observo-o levantar-se com uma veemência que nunca tinha presenciado. Ele engole em seco enquanto se posta ao meu lado, o maxilar trincado e os olhos piscando um brilho pungente e ardente. –Isso não pode estar acontecendo.

–O que não pode estar acontecendo? –tenho de aumentar o volume de minha voz, pois gritos torturantes e aflitos decaem do interior da vila, e um sibilo de escárnio escapa das labaredas a nossa volta. Tento me estabilizar no chão, porém ele ainda foge de meus dedos, e minhas tentativas são vãs.

–Não há tempo para explicações. –Luke recobre o espaço que há entre nós e enlaça minha cintura, ajudando-me a andar. Com o apoio dele conseguimos prosseguir, e conforme me acostumo com a sensação firmo-me ao chão sozinha, e corro ao seu lado, ele segurando minha mão com obstinação, não deixando-me ficar para trás. Estávamos perto da vila quando vi os primeiros vestígios da devastação. As crianças que vira naquele momento brincar com o mutante de chifres de linhas azuis estavam caídas, esfaceladas, chamas engolindo os restos de seus corpos. Apertei a mão de Luke com força, e minha garganta fechou-se, mas não desviei o olhar.

Um segundo estrondo estourou em meus ouvidos e mandou-nos para trás. Uma corrente de ar quente empurrou-nos para contra uma barreira invisível e eu separei-me de Luke, e desabei com o braço acima de meu corpo. Uma dor aguda provocou arrepios pelo meu corpo, mordi meu lábio inferior, tentando conter a maresia que me infligia. As chamas agora lambiam as fronteiras da vila, e eu não conseguia vê-lo por causa da fumaça e névoa que encobriu e impregnou-se no vento.

–Luke? –chamei, e sentei-me desajeitada. Meu braço formigava e assinalava uma agonia pontuada em cada célula de meu membro. Uma tosse áspera subiu pelo meu organismo e lutei contra a sujeira ordenada, pondo-me de pé antes de outra rajada martele novamente para dentro de mim. Segurei meu braço com o saudável. –Luke!

–Chloe! –por trás da chuva mortiça eu o vi, e ele correu para minha direção, levando sua mão até meu rosto e estudando-o, passando o dedo pela minha bochecha. –Você está bem?

Assenti rapidamente, e comecei a examiná-lo, notei um corte em sua testa, e um fio de sangue escorria para dentro de seu olho esquerdo, o qual ele fechara, incomodado. Arquejei e esforcei-me para levar minha mão até o ferimento, tentando limpar o sangue de cima de sua visão obstruída.

–Céus... você está sangrando. –murmuro quase sem voz, Luke fita meus olhos fixamente e agarra a mão a qual está em seu rosto, entrelaçando nossos dedos de modo protetivo. Faço uma careta e ele percebe meu braço deslocado, e arruma velozmente uma maneira de manter meu braço confortado.

–Sim, eu estou sangrando, isso é evidente. Mas nós já estamos acostumados a isso, certo? –assegura para mim tropeçando nas palavras, ele impulsiona-me para frente e me encoraja: -Vamos, temos de nos apressar, não temos muito tempo.

Não o retruco, pois esta é a verdade. A neve começa a derreter sob meus pés e não as deixo terminar o que se iniciou. Logo, não posso mais senti-los, porém não me importo. Meu braço atingido formiga, e quase não posso ter sua sensibilidade. Posso sentir a temperatura contra Luke, mas nada mais me parece real quando eu os vejo.

A minha frente, não há nenhum vestígio do que um dia a vila foi. Papai nunca me contou como era as experiências de quando fora para suas missões, e nunca me deixou acompanhá-lo, e muito embora nunca o tenha compreendido, após ter visto a paisagem corrompida e mórbida que domina a antiga vila, não posso mais negar o já presenciado. A segunda explosão fora pior do que a primeira, e a construção perto da floresta desabara, soterrando os resquícios das brincadeiras infantis as quais o terreno estava abrigando.

–Papai me advertiu contra isso... –escutei Luke resmungar para si mesmo, em um tom próximo ao inaudível e pude ter a visível impressão que ele não desejara me informar sobre seu segredo.

–Ele sabia que isso aconteceria? –fito-o, perguntando no mesmo tom solene dele. Luke torna-se para mim e posso perceber algo mudar em seus olhos. Não realmente imaginava que fosse me responder. Embora o conhecesse por anos, não o forçara a revelar sobre o que nitidamente ocultava, porém...

–Sim. Sim, ele sabia. Só não sabia quando viria. –consentiu, e eu calei-me.

Imagens passaram rapidamente, mostrando o que não narrarei. Cenas que não gostaria de lembrar. Fogo, ruínas e incrédulos detalhes desalentados, deprimentes e irrevogáveis. Passáramos em todos os cantos, em busca de alguém. Qualquer um. Mas não havia um ser vivente. Formaram-se cortes, hematomas e cicatrizes em nós, porém nós não paramos. E então vieram os gritos. Aquela breve alegação com um vestígio de esperança desestimulada. Havia sobreviventes. Havia...

Estávamos dentro. Dentro do edifício onde papai e Septimus haviam estado na reunião. Colunas estavam desabadas, atiçando o fogo. As paredes estavam imundas, encobertas por pó impossibilitando-me de vê-la. A poeira e os destroços se divertiam sacolejando o lugar como seu próprio parque de diversões. O chão rachara-se em inúmeras partes, traçando brechas que nos faziam tropeçar.

A fumaça ameaçava alimentar-se de meus pulmões cada vez mais fracos. A determinação e confiança de Luke esgotava-se cada vez mais rapidamente, escorrendo como águas imundas de um oceano congelado. Ele gritava pelo pai, mas sua voz aninhava-se em minha audição como ilustres e vagas sensações. Varria a sala em busca de minha única família, o único sentido que tinha de continuar na trilha.

Uma tosse ruidosa engolfou-se em Luke. Olhei para trás e não havia mais escapatória. As chamas consumiam a cada rudimento, seja de madeira, de aço ou de pedra. Fogo maldito, era raro de se ver por essa Área. Principalmente pelo Sudeste ser considerado pacífico, mórbido, até. Não percebera, mas Luke sustentava-me com mais energia do que aparentava, mais energia do que a necessária, e isso estava desgastando-o. Forcei-me a equilibrar-me, ignorando as reclamações de meu próprio corpo e comecei a carrega-lo. Tínhamos que nos afastar daquilo. De tudo.

–Vamos, Luke. Sei que consegue. –encorajei-o, e de esguelha pude notar seus olhos estreitados, esforçando-se para enxergar mais além do que poderia. Seu rosto estava sujo de fuligem e arranhões. Ele encaminhara-se para as situações mais perigosas, e engrenhou-se nas passagens mais difíceis, abrindo caminho para mim. E ele não estava apto a prosseguir. Não... Localizei um ponto livre, parcialmente, dos destroços, e empenhei-me a chegar até lá. Era um pavilhão vasto, e uma plataforma erguia-se no centro. A área nos degraus desta, onde levava Luke e era o único lugar em que não havia obstáculos, estava úmida, e segui as gotas até o teto rochoso.

Um aperto se formou em meu estômago e lutei contra um nó enjoado aparecendo em minha garganta. Sangue. Não era umidade da água de neve derretida, como ponderara. Era aquele licor embriagado e apático. Engoli em seco e velozmente voltei-me para o chão, pousando-o sutilmente nos degraus da plataforma, a poça a curta distância de nós. A nossa volta, o ar tornava-se escasso pelo fogo consumi-lo vorazmente, cada vez mais rápido. Tínhamos pouco tempo.

–Vou procurá-los. Você fica aqui. –seguro seu queixo e obrigo-o a fixar e mim. A sua respiração é tão pesada quanto a minha, porém houve mais perturbações nele do que em mim, propriamente. O pedaço de escada que caiu sobre nós? Ele que ajudou a desviar e assim comprometera seu braço quando foi salvaguardar-me. A lâmina saída do aparente vazio e quase nos atingira? Ele nos defendeu e acabou recebendo um grave corte no quadril onde ele pressionava. O escarcéu do incêndio não nos ajudava. Porém, pelo menos, havíamos conseguido entrar no prédio onde há as reuniões. A sala dos Conselhos não devia estar longe. Porém, precisava ir sozinha. –Você está me ouvindo?

–Não. Eu vou. –ele balança a cabeça e tenta levantar-se, mas eu o detenho. Nunca vi os seus âmbares tão desesperados como estão agora, ou infelizes e angustiados. –Chloe... por favor.

–Não posso. –olho para o lado e percebo a porta a qual terei de me dirigir. Já havia estado lá antes, sete anos antes, quando tinha seis anos. Naquela época havia me esgueirado pelos corredores a fim de seguir meu pai, e gravara cada passagem pela qual passara. –Voltarei logo.

Levantei-me e desviei minha mão de Luke, que tentara agarrar-me. Sabia que não me seguiria, pois não conseguiria de qualquer jeito. Mal era capaz de se firmar sentado, quem diria em pé, ou andando. E apesar de relutar em deixá-lo sozinho, não havia outra maneira...

O corredor vazio, a porta trancada, os gritos. O cordame que me prendera, a estátua de um leviatã desabando sobre o meu corpo e obstruindo minha saída, os pedaços do gesso por sorte não distorcendo-se e me atingindo. A sensação que me causou um arrepio de alívio quando achei a porta de que me lembrara, a última vez vista tantos anos atrás. Encontrando-me com meu pai e Septimus. Nós descobrindo o pai de Luke com ferimentos nas costelas, e cada vez piorando. Tudo isso passou em máxima velocidade pela minha cabeça, como se houvesse apertado o botão de avançar em um filme surreal.

E por fim, a cena que sempre me fez lembrar todo momento em que concretizo um sofrimento de Luke. O seu grito angustiado, chamando-o...

–Pai! –Luke ainda está sentado nos degraus, tentando puxar-se para cima com os braços, içando seu corpo para próximo da plataforma. Estou segurando o braço de meu pai, e ele manca furiosamente. Não conseguirá equilibrar-se por muito mais tempo, e eu não terei forças o suficiente para carregá-lo fora do edifício. Septimus ainda está menos prejudicado, pois papai conseguiu protegê-lo da melhor maneira em sua capacidade, portanto apenas resta-lhe alguns cortes e o nariz quebrado por uma batalha recente. –Pai, você está bem?

Septimus apressa o passo a nossa frente, embora seja nitidamente complicado, difícil para sua perda constante de energia. No entanto, ele aparenta não se importar. Um sorriso se revoluciona pelo meu rosto quando ele chega até o filho e o abraça com força.

–Ele não parou de falar sobre Luke desde quando ficamos presos naquela sala. –papai me informou, aproximando-se de meu ouvido. Seu braço envolto de meu ombro traz-me conforto apesar de meu suor pegajoso impregnando-se em minha nuca e grudando meu cabelo em minha testa e na maça de meu rosto. –Não terão muito tempo...

A cena salta em outro espaço, como se entrasse em um buraco negro. As vozes foram engolidas e as imagens ofuscadas. Havíamos saído do edifício, as minhas mãos ardiam e meu pai apoiava-se em um bastão torto, quase estragado por completo, esfarelando-se.

–Nós temos que voltar. –Luke sobrepuja-se a nossa frente, a voz inundada de determinação e ira. Seus olhos pareciam ter sido imutadas nas flamas do incêndio, amaldiçoando sua visão. Olhei para trás, e observei as telhas destituírem-se. O pai de Luke não estava conosco, e eu não conseguia enxerga-lo onde quer que ele poderia estar. –Meu pai. Ele não nos seguiu.

Parei. Imaginava que ele estava atrás de nós enquanto fugíamos. Tínhamos nos separado quando o corredor se bifurcara, porém, havíamos nos deparado com Luke mais tarde, mas não havia percebido que o seu pai não estava com ele, apenas tinha disparado para fora, para a tênue luz, com meu pai em segurança, sem pensar em mais nada a não ser nele, a preocupação que tinha se desabrochado mais cedo murchando de meu peito. Septimus não nos seguira, e Luke estava chamuscado, mas bem. Como não desconfiei? Era sempre assim. Como todas as realidades, ou todas as ilusões. Sempre... como um ciclo. Devia ter deduzido.

Entretanto, meu pai não parou como ponderado.

–Pai. –chamei, Luke parecia pregado ao chão, e fiquei ao seu lado, encarando as costas de meu pai, entre sua omoplata. Ele aparentou não me escutar. “Não terão muito tempo” dissera. Ele... já sabia? –Pai, Septimus...

–Ele não irá voltar. –papai assinalou, o bastão em suas mãos fincando-se na terra lavrada, adubada com os corpos e o sangue de pessoas incoerentemente leigas no motivo de todo o conflito. Engoli rispidamente, sentindo uma pontada incomodante durante o processo.

–Não, ele tem de voltar. –Luke contradiz, tento segurá-lo mas ele dispara para a abertura, mancando e tropeçando a cada passo, forçando-se a sustentar-se em quaisquer destroços próximo ao seu tato. Estou prestes a segui-lo, porém sou detida pelo braço forte de papai, que impõe o bastão a frente de meu corpo como lanças cruzadas negando minha continuidade. Olho para ele em busca de justificativas, entretanto ele não está tencionado a mim.

Luke não tem tempo o suficiente para chegar a brecha de esperança que tinha. O edifício é finalmente eliminado pelos dentes crispados e incisivos, levando junto tudo – e todos – os que compartilhavam um vão dentro de seu interior. Inclusive...

–Não! –seu berro hediondo ecoou pelo espaço crepitante. A velocidade foi lentamente diminuindo até não passar de passos deleitosos na realidade dolorosa e lancinante. –Não, não... Pai, você prometeu!

Os gritos de Luke tornam-se cada vez mais veementes e devastadores. Quero parar de ouvi-los, no entanto sei ser impossível. Não posso ignorá-los. Não posso apenas virar minhas costas e desprezá-lo. Mas, também, não posso ir até lá. Posso apenas ficar aqui, imóvel, observando-o. Inutilizada, sem notórios diversificados movimentos. Presa, acorrentada. E minha punição é seu timbre, sempre constante, sempre presente. Perturbado, constrangido, e violentado...

Balanço a cabeça para espantar qualquer lembrança desafortunada. Não chamei-as, mas olhando-o esta noite era como se revivesse todas nossas experiências juntos. Os âmbares se infiltraram por minhas defesas e senti-me vulnerável, como se a qualquer momento pudesse ser apunhalada na boca do estômago por uma lâmina maldita. O que ao todo não era algo improvável de ser considerado.

As palavras que proferira, relembrando-me sobre o acordo entre os Conselhos fazia-me estremecer. Era uma questão resolvida não entre nós, mas entre nossos pais, quando estes ainda viviam. Quando o assunto era tocado, era como se rudemente encostassem a ponta de um arame farpado e eletrizado em uma cicatriz aberta, um ferimento recém-feito, um corte formado recentemente e escancarado para qualquer doença passageira. Não era insuportável, poderia tolerar sua dor, entretanto não era recomendável tê-la por perto. Tanto por minha capacidade física quanto minha sanidade.

Conseguia recordar, ao evidenciar suas feições, a concreta expressão que tivera quando me passara as notícias.

Era um dia frio, exatamente como foi naquele incidente. Ainda tentava me recuperar de minhas contusões, embora a maioria das bombas do Cavalo de Tróia já houvessem desaparecido. Irá fazer um ano desde quando Luke assumiu o comando do Conselho de seu pai. Ele começou a frequentemente reunir-se com meu pai, e discutiam arduamente por horas, fazendo-me esperar longe, sem questionar. Era uma responsabilidade recorrente, honrosa e eu a respeitava. Porém, apesar de não querer admitir, faltava-me ter alguém para acompanhar em meio as tediosas tardes em que ficava solitária. Sentia uma profunda falta de ter Luke ao meu lado, depois de tantos anos tendo-o por perto.

Naquele exato dia, entretanto, fui convocada a aparecer. Ou melhor, a participar. Não era uma reunião grande, considerando a quantidade numérica contando apenas papai, Luke e mais três líderes consecutivos, que raramente se reunia conosco, porém que os conhecia como velhos e amistosos colegas. Poderia ser mesmo uma discussão serena entre íntimos amigos. Sentia-me confortável e tranquila. Bem, aparentava que poderia finalmente ter minha voz no dissenso.

–Septimus e eu fizemos uma decisão para resolver a questão da união entre nossos Conselhos. –papai começou, acomodando-se melhor no tronco de árvore que arranjara de uma árvore caída. Permaneci calada, escutando-o, deleitando o sentimento caloroso emanando da fogueira em nosso centro. Luke assistia a madeira queimar e os indícios planarem no ar; já devia saber dessa decisão, e evitava me encarar apesar de eu procurá-lo a todo instante em busca de conforto. –Como sempre, não podemos cegamente escolhermos nos ajuntar. Tem de haver uma troca, um laço, algo para nos mantermos convincentes quanto a confiança de um ao outro. Não por nós, mas por quem nós representamos. E nossa escolha é visada no modo antiquado e benevolente dos tratos.

Uma pausa. Essa pausa pareceu-me mais longa do que pretendia. Parecia preencher o local com um odor inflamável a qual somente um toque em falso, uma reação excessiva ou um movimento impensável poderia confranger em um desastre descomunal.

–Nós decidimos...

Pisco como se acordasse de um sonho milenar, embora, pelo relógio incrustado a frente da lareira, visível para qualquer cômodo que se aninhasse, indicasse claramente ter passado apenas alguns segundos. Noto que ele ainda balbucia desculpas e rapidamente interrompo-o.

–Não, Luke. Está tudo bem. Mesmo. Isso não tem nada relacionado ao acordo. –ele se cala como se houvesse recebido um choque elétrico, empertigando-se e desviando o olhar, fazendo-me pensar que se eu não o conhecesse bem o bastante poderia ter imaginado estar envergonhado. –São somente preocupações... familiares. Você sabe, todos esses fatos revelados em uma só carta, em uma só visita. É um tanto complicado para suportar a morte dele, e a revelação dela ainda com o coração palpitando e...

Não suponho que precise de mais explicações. Minha boca fecha-se sem precisar me interpor. Luke assente e endireita-se na cadeira, aparentando desconforto. Um ressentimento denso sobe pela minha garganta como se houvesse engolido enormes tarântulas objetivas e tento espairecer minha mente para longe do aposento caloroso. Ele não tinha culpa, não podia agir dessa maneira apenas porque... bom, mal eu sabia o porquê de usurpar dessa atitude. Talvez, e só talvez, ainda estivesse sobre a distorção da realidade. E sobre a insegurança. Depois de saber que toda a minha vida fora arquitetada por um daqueles que pensava mais poder confiar. Por quinze anos, quinze longos anos a partir de hoje.

–Nesse caso, você pode contar comigo. –levanto o olhar e fito Luke com apreensão. Ele está com a expressão resoluta, visivelmente inquebrável. Minha relutância passou a desenvolver-se como uma praga dentro de mim, a cada dia alastrando-se mais e mais, formando uma barreira onde deveria haver somente a desconfiança. Estava enclausurando-me. Eu era um câncer. Mas ele parecia não se incomodar.

Sei que não posso enganá-lo, portanto ao menos obrigo um sorriso a evoluir em minha forja, mantendo meu rosto inexpressivo, como sempre é restituído quando deito minha defesa. Às vezes, penso que Luke de fato tenha um sexto sentido. Ele morde o lábio inferior como se sofresse internamente, porém, convenho que deve apenas ser a amargura de não conseguir atravessar meu estupor. Eu conheço.

–Eu posso não compreender de modo preciso como você se sente, Chloe. –a voz de Luke estremece, e ele vira a cabeça para encarar a madeira sendo consumida pelo ardor do fogo. Seus olhos desfocam-se e era quase como se conseguisse visualizar uma cena tecendo-se a partir das fagulhas falsamente extintas. –Ah, mas eu conheço como é estar sozinho.

Se essas eram palavras com tentativas fúteis de tentar me reconfortar, não estavam dando certo. Comecei a imaginar uma porta, a qual eu estaria prestes a abrir. Minha mão já alcançara a maçaneta, embora eu soubesse por algum instinto que ela estava trancada. Entretanto a imagem peculiar e abstrata de uma chave moldava-se no canto de minha visão. Era uma armadilha. Eles queriam que eu entrasse, assim como eu tinha essa vontade irracional de esquecer as ameaças e apenas adentrar. Mas, como sempre há uma oposição, havia uma força, uma pressão, que me mantinha a distância dessa determinada chave que me levaria ao aprisionamento. E sabia o que, quem, era.

–E você, Chloe Grace, -Luke levantou-se e pegou o prato de onde jantava, caminhou os poucos passos precisos para chegar até mim e os depositou em cima dos meus já vazios. Apesar de estar com uma indigestão inconformada dentro de meu estômago, e um embrulho nervoso, minha fome precisava ser saciada, e uma das lições que aprendi com meu pai era que se havia alimentos não podíamos desperdiçá-los simplesmente ignorando o que há invariavelmente a sua frente, afinal nós nunca sabemos quando não o teremos no final. E eu sabia que quando voltar para casa não receberei nenhum convite de boas-vindas, e muito menos sobras para satisfazer minha, digamos, carências. Ajeito-me para o lado, contemplando as feições de seu rosto mais suaves e travessas do que alguns segundos atrás. Talvez, quem sabe, provavelmente sereno. Luke esboça um sorriso brincalhão nos lábios e beija o topo de minha cabeça, sussurrando perto de meu ouvido: –Você não está.

Por fim, ele contorna minha silhueta e apanha os pratos, equilibrando-os em uma mão enquanto a outra segura meu ombro de modo firme, seus dedos me transmitem calor sob o tecido de minha vestimenta, acariciando minha pele.

–Seja forte, Chloe. Eu confio eu você. –seus dedos conduzem uma pressão carinhosa antes de serem retirados de meu encontro, a marca tátil de onde estava pousada delineando um traço frio em minha pele. E ele acrescenta, enquanto segue para o espaço minúsculo da cozinha. –Agora, acho que você deve ir.

Quando ele desaparece no frágil bloqueio que nos separa, noto minhas pernas dormentes, pesadas e rançosas. Eu não quero partir. Não quero ir para casa. Não quero encontrá-los de novo. Minha mãe, meu irmão... eles. Seria amanhã. Ou pelo menos, amanhã seria o começo. Luke estará do meu lado, assim como prometera, entretanto, ainda temia. Eu tinha esse pânico involuntário de que não conseguiria, não importa quem me acompanhasse.

E essa impressão? Ela apenas aumentava. Crescendo como se pretendesse me incinerar, causar-me uma impossível falta de esperança, e zelando pelo meu desprazer. E sei que não vou conseguir livrar-me dela. Pelo menos, não até tudo estiver em ruínas, e a única escolha que eu tiver será finalmente ceder.


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Notas finais do capítulo

O Will só complica, não é? Vocês vão entender melhor o que ele quis dizer no próximo, eu acho...
A Annie e Fynn não apareceram?! É, senti falta deles também, mas queria me concentrar um pouco na Chloe e no seu passado e explicar melhor a participação de Luke. Talvez eu faça um capítulo especial narrando alguma parte da vida dela quando era menor, se quiserem, mais tarde.
Obrigada pelos 100 comentários! Obrigada por cada um de vocês que me acompanham! Reviews, me digam o que posso melhorar!!!