Um Dia Qualquer. escrita por Hikari


Capítulo 32
Maus caminhos.




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Pov. Annie.

Engoli em seco enquanto caminhava apressadamente pela trilha com meu irmão ao meu lado. As folhas farfalhavam ao nosso redor, crepitando quando pisávamos nelas. O vento sussurrava advertências em meus ouvidos, e um gelado dedo pareceu passar as pontas de sua pele jocosa por minha espinha em minhas costas, seguindo minha coluna. Ignorei o pressentimento que estava absorvendo-me. Mantive meu queixo erguido, os olhos ardendo pela falta de sono e lacrimejando por sua ardência incômoda exageradamente absurda. Os pensamentos me confundiam, desfocando imagens óbvias, portanto segurava as mãos de meu irmão, para não desequilibrar-me ou começar a correr, fugindo do lugar onde tudo se iniciara, onde uma forte ameaça parecia me fazer recear, bloqueando minha passagem.

Por que tudo aquilo parecia uma ideia tão... derradeira? Por que uma parte de mim recusava-se a aceitar a oportunidade de desvendar o porquê de tudo ter acontecido comigo; e como acontecera? Certamente, talvez eu nunca iria conseguir descobrir. Talvez tudo não se passasse de tentativas insanas e irrisórias, que não faziam sentido algum. Por que iria encontrar algo naquele lugar? Depois de tanto tempo? A probabilidade era mínima, entretanto meu irmão continuava a me guiar firmemente para frente. Meus músculos rijos e meu maxilar apertado tentava relaxar. Eu tentava aparentar que não sentia a dor. Mas ela ainda continuava lá, constante, companheira.

–Estamos quase chegando, irmã. –Fynn disse com a voz suave e mansa, apertando meus dedos que até aquele momento não havia percebido estarem frios. Frios como a própria morte. E apenas quando senti o calor vivo da palma de meu irmão queimar afetuosamente a minha eu notei. Não havia percebido o quão aquela perturbação em minha consciência afetava meu físico. Não admitira a minha pele pálida do horror acumulado em meu íntimo, o qual crescia e tornava-se um alegórico espelho dos meus piores temores, e não considerava minha expressão fechada, nitidamente com traços de estafa, e com linhas esbofeteadas embaixo de meus olhos, formando bolsas ligeiramente arroxeadas, meu semblante contraído e retesado, como um filhote em meio a uma caça confinada e sanguinária de sua própria família, transparentemente quando a vi no espelho. Nem confessei a minha concordância quando minha mãe observara meus olhos inchados e meus lábios sem cor. Sentia-me como se houvesse sido vítima de experimentos radioativos, meus órgãos arranhados, minha pele cortada, e meu corpo posto em conserva por um milênio com a mente simulada e, após um indeterminado tempo aparentemente eterno, voltado de uma quase morte apunhalada na base do crânio.

Mas não iria refratar isso para meus pais. Não mesmo.

Respirei fundo e fechei os olhos. Fiquei assim por um bom tempo. Deixei-me ser guiada pelo meu irmão, confiando-o toda a minha frente, de que não iria me possibilitar ganhar um novo hematoma na testa ou tropeçar em alguma pequenina pedra e cair no chão. Não, sabia que ele nunca faria algo da espécie comigo. Bom, pelo menos não mais.

E então, nós paramos. Abri os olhos novamente e senti a dor em meu pescoço exacerbar, até tornar-se uma mistura desconexa e dardejante. Estremeci e uma carga de oprimidas lembranças vieram e achegaram-se em minha mente. Recordei-me daquele momento confuso e divergente. Meus membros amolecidos e fracos, sem força para levantarem-se. Meus pensamentos entorpecidos. Minha cabeça uma forma desconfortável e atormentada, onde um ninho de vespas indolentes instalara-se. Uma congelante e afiada ponta de uma insurgente lâmina fina penetrando-me a pele da nuca; trazendo-me um sentimento vazio e abrasador que abrigara-se em mim. Em cada célula de meu corpo, queimando-me viva.

Alguma coisa encaixava-se em minhas lembranças. Algo pesado que parecia rastejar em um complicado e bucólico mel de inércia para acomodar-se em uma das muitas lacunas obscuras de minha mente errante. E então ela veio, como sempre. A familiar confusão atordoante, dominando-me, estimulando-me a sentir o medo. Aquele temor e receio sobre o que poderei descobrir. Eu queria mesmo saber o que acontecia comigo? Já tinha a resposta. E ela não era a mesma a que teria anteriormente.

Eu havia lembrado. E isso não me trouxe alívio, como pensaria. Não me trouxe paz, como gostaria. Mas me perturbou, roubando minhas esperanças, expondo minhas vulnerabilidades, trazendo-me um distúrbio onde teria de combater com minhas mãos atadas, inaptas. Sob meus pés, não parecia mais um solo concreto, e sim uma imensidão interligada a vários pontos que subitamente acenderam-se em meu córtex cerebral, onde minhas memórias inflamaram-se como uma distorção quimérica.

Minha cabeça virou-se rapidamente, captando um movimento lateral, e observei uma rosa branca dançar pelo ar, traçando lentos círculos no chão enquanto o vento levava-a pela sua corrente. O mundo girou, rodopiando convulsivamente e apoiei minha cabeça desesperadamente em minhas mãos. Fynn chamou-me, mas parecia que sua voz vinha de longe. De que estava submersa em um redemoinho dentro de um tornado e que ele estava do outro lado, na segurança. Não queria arrastá-lo comigo. Não queria que ele se preocupasse mais. Não era uma simples memória. Não era uma simples dor. Não era um simples engano. E toda essa agitação e confronto antagônico contra mim mesma não iria simplesmente desaparecer.

Eu estava certa. Algo estava errado.

Soltei-me das mãos de Fynn, as palavras explicativas sendo envolvidas dentro de minha garganta encravada por crostas duras da intolerância. Não conseguia abrir a boca, estava paralisada, exatamente como aquele dia. Não conseguia transmitir-lhe minhas lembranças. Peças de um quebra-cabeça insolúvel começara a juntar-se ao meu redor. Mas faltava. Faltava uma lacuna. Estava incompleta; e isso me torturava, me afetava, de uma forma incompreensível.

Antes de meu irmão agarrar-me a mão novamente, eu corri. Fugi para longe dele. Saí da trilha onde seguíamos e adentrei a floresta que adornava a paisagem. Adentrei a densa vegetação que crescera durante os anos, embrenhando-me nas verdes folhas sufocantes e carentes que suplicavam por minha atenção. Ignorei-as. Ignorei toda a minha realidade. Isolei-me do que se passava a minha volta. Não liguei para os galhos arranhando-me a pele, encravando-se em minhas pernas, golpeando-me inexoravelmente, as raízes que abriam espaço pelo solo fazendo-me tropeçar, o ar a minha volta tornando-se mais pesado e abafado. Não liguei. Não percebia. Escutava apenas minha respiração. Minha respiração acelerada e dolorida. Meus pulmões estourando em explosões influentes.

Vozes gritavam em minha cabeça, e puxei minhas mãos para meus ouvidos. A dor tornou-se intensa, insuportável, e incompassíveis. Ela alastrou-se para meu corpo, tornando-o lento e minha cabeça zonza. Meus pensamentos quase claros embaralharam-se. Pareciam controlados, mas não estavam. Uma dormência tomou conta de mim. Não sabia há quanto tempo corria. Não sabia mais onde estava. Só sabia que tinha de fugir. Fugir de quê? Não sabia. Meu sangue parecia ter sido substituído por flamas que lambiam-me a pele, dando-me saudações, como aquele mesmo dia. Senti-me dominada pela frustração. Tão perto de descobrir... e agora tão longe.

Rangi meus dentes, mordendo o interior de minhas bochechas e sentindo o fluxo de sangue escorrer pela minha garganta adentro, mesclando-se com a ira das chamas. Percebi subitamente minha respiração lenta e insubstancial, uma fraqueza entrando em meu ser. Meus pulmões gritavam por ar. Minhas pernas gritavam por sossego. Meu corpo gritava por complacência. Não conseguia parar. Não conseguia lutar de volta. Lançava-me debilmente em obstáculos para tentar estancar minha corrida, mas tudo que conseguia era um prejuízo ainda maior para mim. Mais dores irremediáveis. Mais tormento. Tentei novamente, de novo e de novo, violentando-me em qualquer ponto que deveria evitar para poder ter uma chance de bloquear-me. Talvez não iria fazer meus pés quietarem-se, mas poderia levar minha mente a paz, esquivar-me daquele sobressaltado distúrbio. Mas não conseguia. Nunca conseguia.

E, por fim, minha energia esgotou-se. Uma raiz protuberante a minha frente fez-me tombar para os braços do solo, e permaneci ali. Não conseguia refletir, nem ponderar sobre o que acontecera. Aquelas recordações despertaram algo dentro de mim. Algo que não pude ser capaz de controlar. Conseguira quase juntar peças amargas que insistiam em vagar para longe de minhas mãos fartas, ansiosas para agarrar algo a que poderia me segurar para não cair naquele poço profundo da incerteza. No entanto, não havia nada. Nada a qual poderia me servir como barra para apoiar. Nada que poderia ser uma corrente para puxar-me de volta para a superfície, onde não há dúvidas. Porque era inevitável, isso não aconteceria.

Consegui sobrepujar força o bastante para virar-me tolamente para o lado, desabando de costas no chão, os olhos fixos a frente, no céu que já escurecia-se, o sol ainda presente, porém, as primeiras estrelas já vistas. Não, não podia ser. Saíra com meu irmão naquele final da manhã, a tarde ainda não havia chegado. Horas tinham se passado, sabia e não aceitava essa verdade.

Não conseguia sentir minhas pernas, e minha respiração estava difícil de sair, e mais complicado ainda de puxar o ar para dentro. Esforcei-me para olhar para baixo, para meu corpo que ardia lentamente em um incêndio particular. E quando meus olhos recaíram sobre meu corpo não foram chamas que enxerguei, no entanto não poderiam ser muito pior.

Minhas roupas estavam em frangalhos. Rasgadas e retalhadas em praticamente todas as partes, como se houvessem saído de um triturador. Minha perna sangrava, tanto pelas feridas que ganhara quanto pelos cortes grandes, pequenos, ralos e extremamente profundos que encobriam não só a perna como meu corpo inteiro. Meus braços embarcavam em um banho de vívidas gotas lacrimais. Minhas costas estavam eletrizadas e imaginava seu estado não muito melhor do que a minha pele exposta, a que eu conseguia observar. Meu pé estava com uma cor incrivelmente sublime e ativa, e também jorrava vagarosas linhas daquele líquido pungente. Minha respiração finalmente prendera-se ao arquejar. Meus olhos estavam saltados. Minha cabeça caiu com força no solo e um feroz e voraz ruído pinicou-me a audição e cobriu todas as supostas vozes longínquas vindas de longe. Minha visão estava obscurecendo-se. Como não havia percebido meu estado antes?

Aquela dor em meu interior que se impregnara em mim fizera-me não conseguir sentir aquelas feridas que me faziam sangrar tanto. Não as sentia, porque outra maior amadurecera e inflamara-se em mim, reinando mais poderosa que as outras. Por isso não percebera meu sangramento. Era como quando era criança, quando teimava em seguir minha mãe pela floresta. Caíra e ralara meu joelho e a dor era algo incredulamente horrenda para mim, mas quando eu torcia meu pé em uma depressão escondida, aquela primeira dor era esquecida, mergulhada naquele sofrimento mais impetuoso e violento.

Finalmente, antes de desfalecer, olhei ao meu redor. As árvores haviam se espalhado no campo onde me encontrava, estava deitada em uma relva grande e desenvolvida, os troncos das árvores eram mais finos do que eu conhecia, e ao estudar mais minunciosamente o céu, as estrelas que opunham-se nela não eram as mesmas que conhecia. Eu não sabia onde estava. Não era meu lugar. Eu nunca estivera ali em toda a minha vida.

Então como chegara até aquela área? Por que viera até aqui? Por que não consegui parar quando a inconsciência me ameaçava, intimidando-me?

Não pude responder essas perguntas, pois no segundo seguinte minha consciência esvaiu-se, perdendo-se na paz e tranquilidade do mundo irreal...

***

Pov. Fynn.

Raios, Annie. Por que você tinha de fazer isso tão subitamente? Não pude me preparar, e agora lá estava eu. Parado, sem reação, observando-a desaparecer pelos troncos e galhos das árvores da floresta a nossa volta. Retraindo-se para dentro da imensidão descomunal, onde eu podia facilmente perdê-la de vista. Meus pés pareciam presos no mesmo solo duro e contráctil que serviam como espinhos retorcendo-se em meus tornozelos. Contemplei os longos cabelos de minha irmã sumirem de minha visão, ao longe, quando ela saltou para uma depressão em meio a aglomerados de rochas unidas em um trecho mucoso, e novamente voltei minha atenção ao exato lugar onde ela estava repousada alguns dias atrás, quando ela começara a agir estranhamente. Um movimento fugaz apareceu em meu campo periférico e logo virei-me para me deparar com um roçar forte do vento fresco do final da manhã, que golpeou-me no rosto e adentrou em minhas narinas, e senti o suave odor do frescor nunca absolvido pelos desastres que me abalavam.

Respirei fundo e pude sentir o vento rodopiar ao meu redor e brincar com meus cabelos, acariciando minha mente e clareando meus pensamentos. O zumbir ameno de seu sussurro tornou-se claro e um clamor alto que me despertou do torpor no qual grudava-me em minha posição aparentemente eterna. Minha força de vontade foi mais rápida que meu corpo e logo estava disparando na direção que minha irmã correra, meu coração batendo fortemente contra meu peito, meus pulsos palpitando, meus pés tentando manter meu equilíbrio perturbado pelas raízes convidando-me a tocar-lhes. Tropecei inúmeras vezes antes mesmo de começar meu fluxo na corrida, mas sempre conseguia me firmar no último instante em algum tronco próximo ao meu tato. Escorreguei em uma área úmida antes de chegar as rochas que minha irmã pulara e notei algo incomodar meus sapatos e fazer-me derrapar. Parei por um milésimo de segundo para levantar minha perna e agarrar meu pé infortunado com uma das mãos, ficando frente a frente a uma flor delicada e agora totalmente destruída, com as pétalas desprendendo-se de seu centro, branca. Rapidamente, sem pensar muito a respeito, raspei a sola de meu sapato no tronco da árvore, deixando ali a flor desestruturada e miseravelmente retraçada na grossa madeira e disparei novamente para longe, deixando para trás uma vazia e espantosa recordação.

Minha irmã precisava de auxílio. Vi em sua expressão um momento antes de desviá-la para as feições espantadas e gritantes dela. O terror e a proliferação da macabra sensação da morte espalhando-se por cada linha de seu rosto: nos seus olhos amedrontados, em sua testa enrugada pelas sobrancelhas curvadas, e o nariz franzido em uma careta, a linha da boca tensionada quando rangeu seus dentes fortemente, o maxilar rijo. Pude vê-la, pude sentir seu desconforto e medo. Mas medo de quê? Ou de quem?

Pulei sobre os conjuntos de rochas e segui em frente, chegando a uma trilha que era visível até mesmo para alguém completamente cego. Por um momento, aturdido, diminui minha velocidade e analisei o espaço a minha volta. Galhos estavam repartidos, cortados e cravados ao chão. Retorcidos em seus troncos. Perdidos em grupos de folhas secas. Enquanto eu me aproximava mais e mais descobria-os cobertos de algo viscoso e quente. Sangue.

Estanquei quando cheguei nas primeiras folhas manchadas de escarlate. Olhei para baixo, e não pude ver uma única passada de minha irmã, apenas as minhas pesadas e ruidosas. Mesmo em seu desespero, Annie conseguia pisar com suavidade e maciez no solo, não deixando rastros assim como mamãe fazia em suas caçadas. E eu, infelizmente, não tenho essa sorte. O único sinal de que um dia estivera ali fora a desolação que causara em sua linha frontal.

Abaixei meu braço em que havia enroscado com o dedo na ponta ensanguentada de uma folha próxima e limpei o sangue na parte dentro de minha camiseta, para assim não atrair más deduções alheias. Foi quando percebi algo. E decidi retroceder. Voltar a seguir Annie não seria difícil, ela deixara claro a rota que seguia – não que eu conhecesse onde ela estava indo, claro, mas poderia muito bem me guiar pelas agitações que abandonara na fuga inesperada, pelas feridas que causara a si e a presenteara na vegetação. Não podia continuar, pois algo me alarmava. Sentia alguém atrás de mim, e meus instintos nunca se enganavam.

Podia muito bem não ter a agilidade e ferocidade em me disfarçar e deslocar silenciosamente como mamãe e Annie, mas podia muito bem ter a plena percepção dos mínimos ruídos e avanços e intenções perto de mim, meus sentidos apurados me confirmavam isso. E podia ouvir um tilintar de folhas quebrando-se e uma respiração elevando-se. Recuei lentamente e furtivamente tentei tornar minha própria inspiração lenta, soltando-a baixo e quase abafada. Cautelosamente escolhi onde pisar e logo tinha me afastado do trecho onde as árvores ficavam mais mórbidas e os galhos rompidos. Os ruídos aumentaram de volume, e ocultei-me em um tronco de árvore razoavelmente largo o bastante para abranger meu corpo inteiro, e deslizei vagarosamente minha cabeça parcialmente para o lado, conseguindo enxergar o que se encontrava a minha frente, por entre as folhagens.

Aquele quem franzia a testa e sacudia a cabeça na tentativa de encontrar quem-quer-que-seja (e tenho o conhecimento de que sou eu), era aquele maldito ruivo. Balanço minha cabeça penosamente devagar, o mínimo que me permitia. Não era o momento certo para ele transfigurar-se. Will não deveria estar aqui. Minha irmã tentara evitá-lo nesses últimos dias, e portanto ele não estava em minha mente quando imaginara que poderia estar nos seguindo. Mas obviamente que estava. Ele tentara me contatar todos os três últimos dias que Annie fugira da escola, sem que meus pais soubessem, ao chegar ao portão na manhã escolar. E é claro que ele viria novamente a mim naquele dia particularmente monótono e sem aulas, conversar com a Annie talvez. Era uma ideia, a única que tinha. Se não... por qual outro motivo ele estaria ali? Naquele determinado lugar? Não podia – e não era – coincidência. Ele devia ter-me visto correr para a floresta, era a única razão de estar tão perto de onde havia vindo. Ou me vira, ou vira minha irmã. E ambos os casos não são nada bons.

Meus dedos estavam inquietos no tronco, decidia o que fazer. Não podia deixá-lo prosseguir na trilha, ele veria os galhos quebrados, o sangue impregnado neles, a trilha tortuosa e catastrófica, e por fim, veria minha irmã. Minha irmã, com toda a certeza, não estava sã. Não estava com a mente vigorosa e inerente a coerência. Pude ver seus olhos atemorizados antes de ela desgarrar-se de mim. Pude ver suas mãos trêmulas quando correu para longe de meu alcance. Além do mais, a principal motivação por tê-la feito se afastar do próprio garoto era sua situação atual, e eu não podia deixá-lo vê-la daquela forma, não podia deixar ninguém vê-la dessa forma. Não, não iria conceder. Ele poderia contar, e eu apenas quero proteger minha irmã. E ambos sabemos que a escolha certa era não preocupar ainda mais os nossos pais, nem espalhar o que acontecia com Annie. Não, ainda não.

Por isso, saí de onde me escondia, e fingindo não tê-lo notado continuei a caminhar, não sem antes causar o máximo de ruídos que conseguia, e adentrar na trilha oposta a de que minha irmã pegara, tentando ser um falso guia, tentando atraí-lo para longe. Não olhei para trás para ver se me acompanhava. Estava perto para ele me escutar, e próximo o bastante para me visualizar. Pude sentir a presença dele nas redondezas, e felizmente, meus pressentimentos e deduções estavam certos. Quando virei uma curva, pude ver o cabelo ruivo rapidamente se esconder detrás de um tronco, fluidamente por pouco não consegui captar seu corpo conhecido. Tentei não sorrir. Estava conseguindo. Estava conseguindo levá-lo longe de minha irmã.

Mas quanto mais andava para longe, mais um profundo e intenso temor dominava-me. Uma aflição indomável ameaçou me comprimir. Estava sim levando-o para longe, mas com isso, também levava-me para longe de minha irmã. Para longe dela, de onde poderia ajudá-la, consolá-la e descobrir o que acontecera. Não queria isso, mas era preciso. Will não podia saber. Ninguém podia.

E por isso, continuei.

A casa de Colin, afinal, estava perto. Não iria levantar muitas suspeitas, pois ele abrigava-se com a família em uma cabana na floresta. Talvez por motivos pessoais, ou pela aversão dos pais a qualquer distrito, não se sabe dizer. Porém, pelo menos, posso encontrar bandagens e curativos para Annie na cabana. Alojando-se na floresta, como era, praticamente sua casa era um hospital particular. E, por isso, apertei o passo, apressando-me a chegar logo. Até que a vinda de Will não foi tão ruim. E assim que conseguir os medicamentos certos, poderia despistá-lo.

Isso. Era o que eu iria fazer.

Eu já estou chegando, Annie. Aguente apenas mais alguns minutos.

[...]

Pov. Chloe.

Soltei o braço do homem a minha frente após sentir seu pulso fixo, estático da corrente sanguínea vivaz que corria pelo seu corpo. A mão escorregou de meu tato e desceu pesadamente ao chão, inerte, sem movimentação. Virei a cabeça e observei o rosto de cada um dos integrantes que haviam saído do aerodeslizador. Todos não moviam sequer um músculo. Levantei-me perscrutando meu arredor. Até encontrá-lo.

Caminhei para a fagulha de vida que tentava se erguer, os cotovelos apoiados no chão maciço e lamacento de sua própria poça de sangue. Um ferimento abria-se em seu peito, onde eu o atingira com meu punhal ainda projetando-se sobre sua pele, o tecido banhado e manchado com um amplo círculo de vermelhidão. Ele gemia e tossia gotículas inflamadas ao chão, que juntavam-se para seu lago particular. Agachei-me a sua frente, inclinei a cabeça para o lado assistindo as tentativas fúteis de ele tentar escapar. Estendi minha mão próxima a sua nuca, pretendendo dar um fim indolor a sua existência, lancei a palma para trás e quando fui puxá-la para frente, algo me deteve.

Ergui meu olhar, encontrando-se com os âmbares penetrantes dele. Ele agarrou minha mão cuidadosamente e apertou-a transmitindo-me suas mensagens silenciosas; ainda que eu conseguisse me desvencilhar, eu não o queria. Quase deixei escapar um suspiro de alívio por não precisar finalizar com mais um sopro de vida, que tantas vezes fura submetida a extinguir.

Minha atenção voltou-se a frente quando o homem vultuoso a minha frente gritou algo ininteligível e puxou minha adaga de seu peito. Encarei os olhos lunares pálidos efervescentes que incrustaram-se em mim, inundados de uma fúria dona de anos de abrigo em sua mente. Mesmo sem forças o suficientes, ele arremessou o braço em minha direção, e facilmente pude me jogar para trás levemente, a lâmina não mais que um brinquedo inofensivo naquele homem precário e desbotado que vagarosamente desfazia-se no chão. Empertiguei-me novamente quando ele caiu dolorosamente ao solo medíocre, espalhando gotas rançosas do sangue por minhas vestes e respigando em meu rosto. Não me importei de limpá-las.

Volto minha atenção aos olhos âmbares ao meu lado, ainda com minhas mãos deitadas e acomodadas nas dele. Ele levantava um sorriso singelo, fazendo sua expressão austera ficar mais branda na má iluminação dentre as árvores.

–Por que está aqui? –pergunto-lhe com a voz firme e autoritária, ignorando a minha vítima a frente. O homem apunhalado teimava em arrancar o ar para os pulmões, e podia ouvi-las saindo rancorosas e dementes. Tentei filtrar os ruídos, concentrando-me apenas nele, ainda sorrindo enviesado. Não podia perder a compostura, e levantei o queixo enquanto sustentava seu olhar sádico e zombeteiro.

–Por que sempre estou aqui? –retrucou ele, agachando-se ao meu lado e circundando o dorso de minha mão com seus dedos nobres. Contive-me para não explodir em minha frustração e soltar minha mão da dele bruscamente. –Estou protegendo-a, minha Chloe. Como sempre irei proteger. Eu fiz uma promessa a seu pai.

Seu tom era tão inabalavelmente orgulhoso que quase lhe dei um soco naquele rosto convencido. Tive de engolir várias golfadas de ar para me reprimir, como tinha de fazer para não romper nossas alianças. Agora como líder, eu odiava ter de ser responsável por todas as ações que iriam desencadear consequências sôfregas a Demanda. E odiava ter de ser um alvo para uma aliança estúpida. Mas meu pai a queria, e nada podia fazer. E agora tinha de tê-lo por perto. Engoli em seco, freando as lembranças e amargas decisões. Não queria pensar naquele assunto nesse instante.

O homem a nossa frente ainda engasgava-se na própria saliva. Fixei meu olhar nele para não ter de fitar os olhos âmbares que me examinavam mais do que me era confortável.

–Não posso deixá-lo sofrer por mais tempo. Solte-me. –falei em tom baixo, tentando não dar espaço para o meu áspero som escapar, como tanto queria. Ele riu de mim, e tocou-me com os dedos de sua mão livre em minha bochecha, enterrei minhas unhas em minha palma, fechando o punho violentamente. Centrei-me em meus batimentos cardíacos, constantes e sonoros. Respira, Chloe... respire. Convergi minha visão novamente para os olhos faiscantes dele, sem realmente desejar.

–Minha Chloe... sempre preocupando-se com os outros. –sussurrou para mim, aproximando-se. Tive de usar todas minhas forças de vontade para não recuar, e desviei novamente meus olhos. Fiquei imóvel, retesada e rígida. Depois de um longo tempo onde apenas os gorgolejos úmidos de minha vítima era o único som, ele me soltou. Tão rápido quanto isso aconteceu eu logo me remexi para afastar-me dele e segurei o homem pela cabeça, apoiando minha mão na base de seu cérebro, atingindo-o velozmente na cavidade da garganta com a outra mão livre, onde imediatamente ele tornou-se um corpo morto e instantaneamente um cadáver. Abaixei os olhos e depositei-o novamente no chão, levantando-se e examinando cada uma das doze vítimas que incapacitei e desobstruí do caminho. Todos facilmente reduzidos a nada mais que rochas incômodas, mas inócuas no caminho.

Respirei fundo, o trabalho já feito. Andei pelos corpos puxando uma adaga dali e uma flecha de lá, e limpando-os na terra, guardando-os limpos sob minha roupa esfarrapada e já suja de terra e sangue. Ele me seguiu, não pronunciando um som sequer, porém sabia o que ele queria, e tentei o máximo possível evitar seu olhar, tentar ignorá-lo e ganhar tempo. Reuni os corpos em uma pilha e quando fui buscar o último, aquele mesmo homem, pude vê-lo sendo jogado acima de todos por ele, que sorriu para mim eficazmente.

–Que tal eu levá-la para jantar hoje? –perguntou-me tranquilamente, limpando as mãos na roupa. Olhei para baixo, sem resposta. Fiz o possível para sobrestar meus pensamentos. Sabia que não devia tratá-lo de tal jeito, ignorando-o e fingindo que ele não existia. Mas não conseguia organizar os tumultuosos pensamentos em minha cabeça. Era complicado, e embora ingenuamente concorde, confuso. Por que estava agindo dessa forma? Já havia aceitado o acordo, não era? Já havia aceitado o que viria a acontecer, aceitado e permitido o que era visível na aliança que estávamos fazendo. Então por que agora eu estava lutando contra o futuro? Por que eu estava resistindo?

Limpei a garganta, sabendo que ele esperava uma resposta.

–Hoje? –pigarreei e me obriguei a levantar a cabeça, ele continuava a me observar com seus olhos âmbares que já me familiarizara. Desejei ardentemente ter algum compromisso, alguma tarefa para esse dia. Mas não tinha, claro. Ele anuiu, acrescentando:

–Sim, amanhã sei que não será possível. Terá aquela confraternização, certo? –ele fez uma pausa, e eu assenti. Aproximou-se de mim, delicadamente, e parou a uma boa distância, notando meu desconforto. Pareceu-me seus olhos ficarem mais claros da usual escuridão que conhecia, e as linhas de seu rosto adquirirem uma forma esperançosa e ingênua. –Bom... então?

Ajeitei minhas mãos para trás de minhas costas onde ele não veria, e agarrei meu pulso, fortemente, para não dizer algo precipitado. Fitei meus pés. Hoje... teria de ser. Assim, poderia mandá-lo fazer algo amanhã, para poder ficar um tempo com Fynn. Ao menos um instante, ao menos para poder aproveitar os restantes pequenos que teria com ele. Para poder aproveitar a tranquilidade que me invadia ao estar ao seu lado. A ter aquele calor desconhecido dentro de mim por um último minuto. Para poder rir verdadeiramente uma última vez. Para me despedir.

Levantei a cabeça, afundando na minha realidade como tinha de estar. Encontrei-me com seu olhar e dei um ligeiro sorriso, forçando-o a tornar verídico.

–Está bem. Nos encontraremos aqui esta tarde.

***

Pov. Annie.

Despertei lentamente, com um som desajeitado e lamurioso. Um fungo e algo posto em cima de minhas feridas, algo gélido, úmido e ardente, que ao mesmo tempo picava-me e machucava-me e me trazia um enorme alívio inexplicável. Minha cabeça ainda zumbia e trazia-me uma desconfortável e imprudente sensação de estar sendo comprimida para uma pequenina bola de inconsistência mental. Ignorei os protestos e esforcei-me a acordar por completo. Meus olhos foram abrindo-se com uma lentidão entorpecida, e meu corpo parecia submergido em uma letargia interminável.

Um ponto em meu quadril foi pressionado com algo macio e ardente, e fechei os olhos ferozmente contra a dor que me esfaqueava, forçando-me a não gritar. Lembrava-me de quando disparei enfurecida pelas árvores, porém desconhecendo o motivo disso, lembrava-me da lembrança esquecida, porém sem entender o porquê ela havia demorado tanto a se transparecer. Lembrava-me também de vozes ao fundo, porém essas logo foram abafadas pelo som conhecido me chamando.

–Annie? Annie, você acordou? –a dor foi lentamente se dispersando, agora acostumando-se ao bolo incomparável enchendo-me, e ergui as pálpebras para me dar de cara com o rosto do meu irmão, as linhas do rosto retesadas, expressamente preocupadas e aflitas, cheias de uma dor mordaz que reconhecia. Abaixo de seus olhos olheiras formavam-se, e as bochechas estavam coradas ao logo notar trilhas de lágrimas que ele tentava ocultar.

–Fynn? –minha voz era áspera como se há tempos não a usasse. Desviei meu olhar para poder rodeá-la a minha volta, descobrindo estar no mesmo lugar onde caíra, em um trecho infindável de um campo de plantações altas e irreconhecíveis a mim, o final da floresta a meus pés mostrando-me um caminho alarmante por onde eu passara, um trecho aberto e encharcado no meio de verdes folhas límpidas. Acima, o céu estava estrelado, e não havia sinal do sol. Conforme percebi, meu irmão arranjara uma lamparina a qual deitava-se ao lado de diversos remédios na área de grama limpa, encontrada em direção da parte esquerda onde minha cabeça repousava, e fizera uma fogueira respeitável que crepitava ao meu lado, emanando uma forte luz e um intenso calor que grudava-se em minha pele com gratidão. Suspirei, percebendo uma tranquila paz naquela noite curiosa. Sorri com os cantos de meu lábios, podendo ouvir a fim a calma solidão.

–Você me encontrou, irmão. –murmurei e ele voltou-se a sentar nos tornozelos, o rosto uma carranca.

–E quem não encontraria? Você praticamente suplica para qualquer um achegar-se aqui. Tive de fazer um bom trabalho para disfarçar a maioria dos galhos quebrados e de sua pintura constante na floresta. –pude perceber uma oscilação em sua voz. Mas ele logo continuou, não me dando tempo para ponderar. –Também tive de despistar um amiguinho seu. Aparentemente Will nos seguira. E como não seguiria, considerando que você mal se comunica com ele, não dá notícias e o ignora tão subitamente? Pelo menos assim pude ir à casa de Colin, e lá pude pegar os remédios e a lamparina para me guiar. Você sabe quanto tempo durou para chegar até aqui enquanto arrumava o que fez na floresta e ainda encontrá-la nesse estado? Sabe o quanto papai e mamãe devem estar preocupados? Sabe por que eu não pude levá-la até em casa? Bom, acho que não preciso mencionar. O que eles diriam se vê-la desse jeito? Não sou nenhum tipo de médico ou curandeiro, seja o que for, mas do mesmo jeito tenho de curá-la de alguma maneira, tive de estancar seus sangramentos e quase ver minha própria irmã morrer diante de meus olhos. E você continua me olhando com essa mansidão e sorrindo como se nada disso fosse relevante. Annie!

Ele falou tudo tão rapidamente que não tive tempo de interrompê-lo, ou captar tudo de uma só vez. Meu sorriso continuou estampado no meu rosto, e vagarosamente, enquanto absorvia suas palavras, eu me empenhei em levantar-me meio cambaleante, as feridas gritando comigo, tentando deter-me, mas finalmente me pus meio sentada, meio deitada, um resmungo comprimido no nó que se formara em minha garganta. Fynn lançava-me um olhar severo, mas não protestou ou tentou me conter no meio de meu empenho inútil.

–Fynn... eu só estou grata por você ter feito tantos sacrifícios por mim. E aliviada por você estar bem, satisfeita por nada disso estar acontecendo com você, e sim, em mim. Por isso estou sorrindo, por... por você não precisar suportar a confusão. –meu sorriso por fim vacilou e apagou-se de meu rosto. Não sabia exatamente de onde vinha aquela dor aguda, se sim dos ferimentos, ou apenas do que estava acontecendo. Ou, o que era mais provável, dos dois. Não queria fazer meu irmão sofrer por mim, nem guardar tanta coisa e aturar tantos conflitos por minha causa. Nem era meu intuito fazê-lo ver-me nesse estado, tampouco eu gostava de me encarar nesse instante. Meu irmão já havia coberto meu corpo com trapos, os quais já tornaram-se pesados e inflados com o sangue que não parava de fluir para fora de meu corpo, por mais que ele o tivesse apertado. Os cortes menores estavam mais aceitáveis e suportáveis, ele havia passado um unguento que, apesar de surtir bons efeitos, não exalava um odor muito agradável. Estava grata por tê-lo por perto e por fazer tudo por mim. Mas não queria que ele tivesse de passar por todo o atordoamento comigo. –Sinto muito. Eu entendo caso você ficar muito sobrecarregado. De fato acho que mesmo eu não conseguiria ter a pressão jogada em meus ombros e realmente não precisa fazer tudo isso apenas porque se sente obrigado ou porque sou sua irmã...

–Não foi isso o que eu disse! –atestou sobre mim, ele ainda fixava o olhar sobre o meu e teimava em desvanecer a expressão firme que outorgara. Fechei a boca e encarei-o, aguardando. –Não estou falando para você que minha irmã é uma adversidade. Pfffff. Você até pode ser, mas, quer dizer, isso não significa que vou abandoná-la. Só estou dizendo que...

Ele parou e pude notar o som trêmulo ainda gravado em minha mente. Ele logo abaixou a cabeça e enfiou o dedo no unguento que trazia em um pote, curvou-se e passou-o em minha testa, onde um corte tinha se aberto e meu suor causava ardência na área formada, grudando meu cabelo em minha pele.

–Deite-se, irmã. Por favor. Não use muito de sua energia, nós iremos precisar dela para voltar.

Obedeci-lhe um tanto queixosa, havia registrado a expressão que seu rosto traçara. Desespero, temor, angústia e um profundo sofrimento que eu conhecia bem. Fechei os olhos momentaneamente, ficando em silêncio enquanto apenas sentia o toque de seu dedo espalhando o unguento em minhas feridas, o frescor e alívio que isso causava após um segundo de aperto. Semicerrei um dos olhos para observá-lo silenciosamente permitir passar a mão pela bochecha e pelos olhos, limpando-os de qualquer vestígio de fraqueza, e fechei-os novamente. Respirei fundo, e sorri pela segunda vez, ligeiramente, quase invariável.

–Ei, Fynn. Lembra-se de quando tropeçou nos próprios pés ao correr para mim depois de tentar me imitar dançando na Campina? –não abri os olhos e movi-me apenas alguns centímetros para encontrar uma posição mais confortável. –Eu o peguei antes de cair ao chão. Mamãe ficou tão agitada em preocupação que havia deixado cair as notas de seu livro. Lembra-se disso? Eu tinha exercido um bom papel de irmã mais velha segurando-o, não é? Também acalmei-o quando começou a chorar. E fui a única a fazê-lo rir naquela tarde. Bom, não sei se vai conseguir lembrar disso. Você era pequeno na época.

Meu irmão não respondeu para mim, e não abri os olhos para assistir sua reação. No entanto ele parara de restringir a bandagem em meu antebraço, onde eu tentava repudiar a dor conversando com ele. Mesmo que ele não quisesse se pronunciar.

–E você é meu irmão mais velho agora. Obrigada por ter vindo e me apoiado. Você é um ótimo irmão, amigo, e companheiro, Fynn.

Mais uma pausa, e o único ruído que ouço é o de minha respiração. Por fim, abro um dos olhos, o olho esquerdo, e arqueio minha sobrancelha um tanto ansiosa. Fynn está virado de lado, olhando para o agrupado de remédios no chão, e uma sombra esconde suas feições de minha visão. Pigarreio levemente.

–Bom, diga alguma coisa. Sabe, isso é meio embaraçoso...

E abruptamente, atropelando-me com o evento fugaz, ele lança-se a minha frente e me abraça apertado. Algumas de minhas feridas reclamam e meus ombros brigam por atenção, mas abafo qualquer som que queira sair pela minha garganta, e continuo deitada ali, com os olhos abertos, surpreendida e, depois, com um intenso sentimento quente subindo pelo meu peito. De consolo. De saber que não estou sozinha naquele mar enegrecido. Sinto também as reconfortantes e mornas gotas de suas lágrimas molhando minhas costas, e sinto um arrepio pelo líquido febril em comparação a minha pele assustadoramente fria.

–Raios... não diga essas coisas, Annie. –escuto-o sussurrar em meu ouvido, e desprezando a dormência de meus braços, eu aconchego-os em volta de meu irmão, retribuindo os raros abraços que damos. –Você sabe que eu odeio quando alguém me faz ficar assim. Eu pareço até mesmo uma garotinha de algum livro clichê estúpido.

Eu rio docilmente por sua piada e dou uma batida amigável atrás de sua cabeça, e posso sentir seus ombros chacoalhando-se, tanto pela risada que aflora de seus lábios quanto por mais lágrimas que alojam-se em minha roupa.

–Sinto-me feliz por tê-la como irmã, Annie. –ele murmurou depois de um longo tempo. Sua voz era baixa e quase tive a impressão de que sua intenção verdadeira era não me fazer ouvir. Balanço minha cabeça, ajeitando-a em seu ombro, e abraço-o mais firmemente. Dessa vez, é a minha vez de ficar quieta. –Por favor, não me deixe.

E foi por sua frase que percebi que ele também sabia. Ele também sabia que se eu continuasse dessa maneira, se as nebulosas nuvens continuassem a deturpar minha mente como estavam, eu poderia não ter muito tempo. E eu não tinha. Eu sabia disso, ele sabia disso. E tentávamos lutar contra isso. Ou, pelo menos, ele tentava. Ele tentava por nós dois, mesmo que eu já desistira de contrabater.

E aquela lembrança confirmara isso. Eu não ia conseguir sobreviver por muito tempo.

Naquele tempo eu já sabia, mas não aceitava. Não aceitava completamente. Não continuaria a viver. Não essa Annie. Não, não Annie Everdeen Mellark. O que iria viver irá ser algo que ninguém sabia ainda que existe.

Inclusive, eu mesma.


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Notas finais do capítulo

Alguém aí notou que a lembrança da Annie é a do Epílogo do A Esperança? (:
Reviews? Será que ganharei pelo menos um 'feliz aniversário' hoje nos comentários? Sim, 15/06! Hoje foi o dia que nasci. Trágico evento, ficar mais velha... mas será que alguém quer me mandar um presente e aparecer nos comentários?