Um Dia Qualquer. escrita por Hikari


Capítulo 30
PARTE II - Resistência (Do começo).




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PARTE II

"A Resistência"


Pov. Annie.



Há algumas semanas atrás, poderia dizer que tudo estava bem. Há alguns dias, no entanto, tudo começara a se complicar. Depois, nada mais que a realidade fragmentou-se, minha vida virou algo escuro e notório, e minha mente não podia-se dizer mais minha. Contudo, estou me precipitando. Meu tempo não está em seu tempo. Não exatamente.

Naquela última semana, fora uma das que nunca eu esqueceria. Ou, bem, isso chega a ser irônico, porque eu esqueci. Mas era para ser uma das memoráveis, irreversíveis e praticamente uma das semanas que aconteceram mais eventos do que em toda a minha vida já havia acontecido. E tudo se perdera. Tudo se perdera a partir daquele desastroso acontecimento, e tudo voltou a piorar naquela época de confraternização. Inclusive, minhas próprias memórias.


Mas, novamente, estou me precipitando. Retornando ao começo...

Ninguém sabia o que viria a acontecer, obvio que não. Nitidamente alguém faria alguma coisa – qualquer coisa – se soubesse. Talvez uma pessoa tivesse conhecimento, mas exatamente essa pessoa havia desaparecido, esvanecido para sempre. E por essa mesma razão, nós nunca fomos avisados. Eu nunca fui avisada, nem meu irmão, nem meus pais nunca conseguiram se prevenir para o que viera a se desencadear. E novamente, tenho de reiterar: os acontecimentos foram tão ferozes e vorazes que mal tivemos tempo de respirar, e tudo começou – precisamente – naquele dia. Naquele dia que intensificou o alarmante sinal do que viria a acontecer. Sinais que estavam sendo ignorados até então.

Pode ser que a história não seja alegre. Porque ela, realmente, não o é. Também, não será uma daquelas histórias que se contam normalmente em páginas valiosas, como a que mamãe e papai tiveram. Não, porque esta é diferente. Ela não tem um final feliz, ou, pelo menos, eu ainda não o encontrei. Não tenho um futuro distinto como antes, não sei dizer mais quem sou, e posso discernir tão claramente um borrão quanto um cego enxergaria. Não é uma história boa, não. Não, porque esta é o que chamamos de vida. Uma vida real, uma vida realista. Um complexo laço cravejado de nós, formados por nossas próprias escolhas, todas entrelaçadas inexoráveis. E histórias reais, na maioria das vezes, não são boas. Não são aquelas que tudo fica bem no final. Não são aquelas que terminam com um ‘felizes para sempre’. Bah! Isso é pura encenação. Uma mentira que dizem para as crianças terem esperanças. Uma esperança morta. A vida real é cruel, assim como a minha fora até então. Talvez os fatos sejam absurdos, inaceitáveis e incredulamente podem não acharem razoáveis. Mas não me importo. Não me importo porque essa é realidade, e vou contá-la, embora não queira. Mamãe disse há muito tempo atrás para mim registrá-las – digo, me refiro a minha história – entretanto não posso desmentir que proteste contra isso. Mas o que mais posso fazer? Ele apoia a ideia de minha mãe. E talvez nós não saiamos vivos depois dessa... Caso sobrevivermos, eu continuarei. Caso contrário, esperamos ardentemente que alguém encontre essas palavras. Enquanto ainda tenho um resto de sanidade quanto ao meu passado, antes que tudo se dissolve e se perca novamente, ele diz para eu anotá-las, assim não precisarei me amargurar. Eu não concordo com isso. Bom, minha narrativa, portanto, começa algum tempo atrás...


Amanhã. Era exatamente amanhã que tudo recomeçaria. A minha vontade de passar um tempo entre todas as pessoas desconhecidas, alegres e animadas, por um dia de folga para comprar bugigangas e rever velhos companheiros era tanta que poderia ser comparada a um centésimo de um grão de ervilha. Ou seja, ela era quase inexistente; se não já é.

Primeiro, comecei o dia com minha mãe arrancando os cobertores sobre o meu corpo. Passei de quase Annie viva para Annie congelada semimorta. Imediatamente fui retirada do meu sono a força para levantar-me e correr direto para debaixo das minhas roupas formadas em um monte do lado do quarto, finalmente ajeitando-me debaixo da temperatura extremamente quente de roupas não lavadas. Embora usasse mais do que três peças de roupa, aquele dia estava anormalmente coberto com toda a neve dos polos, e até mesmo alguma imaginária e descoberta a qual até aquele dia nunca houvera existido. Estava um dia perfeito para...

–Annie! Comemoração amanhã! Está lembrada? –minha mãe grita, agitando o cobertor em minha direção, fazendo o meu forte de retenção do meu calor transmitir a mim uma tremenda onda cheia de ventos frios e inebriantes. Ela quer me matar? Talvez fosse melhor morrer do que precisar sair daqui, então ela iria fazer um enorme favor. –Vamos lá, filha. Não vai ser tão ruim.

Ela vem caminhando em minha direção e eu rapidamente me levanto, desviando-me de seus braços. Ela parecia não se incomodar com a época gelada e dolorida, na verdade, parecia ser a própria energia em carne e osso, sem ao menos um tremor em seu corpo, enquanto eu tenho que me manter aquecida pulando no mesmo lugar. Eu precisava reconsiderar o apelido de mamãe novamente – Garota em Chamas. Agora fazia sentido para mim.

–Por favor, não me arraste com vocês nessa de novo. E por que raios você me acordou hoje se a praga é amanhã? –reclamo com os dentes batendo. Fecho minha boca com força para não ocorrer uma infeliz mordida na língua involuntária.

Nesse exato momento, para me ajudar tanto quanto um hipopótamo estaria se beneficiando ao pisar em ovos – ou com a mesma sutileza incrivelmente devastadora de um enorme e imprevisível balão de gás dentro de uma névoa impregnada com alguma fonte inflamável – meu irmão chega ao meu lado, com apenas um casaco grosso e impermeável, esfregando as mãos agitadas e com um sorriso atravessado no rosto inteiro.

–Estou pronto. –diz ele, prestativo. Minha mãe aumenta o tênue sorriso e arqueia a sobrancelha para mim, inclinando a cabeça ligeiramente para a direção de meu irmão, enviando-me uma mensagem óbvia.

–Não me olhe assim, mãe. O Fynn pode ir, mas eu não sou obrigada. –cruzo os braços com tanta determinação que momentaneamente esqueço-me do ar gélido presente. Não tremo mais e fico imóvel e rígida, minha pele endurecendo pelo frio; não liguei.

Enquanto o ar de tensão, cheio de estática, pairava ao nosso redor, Fynn movia a cabeça entre eu e minha mãe como se tentasse interpretar algo por trás do evidente. Então, por mais incrível que parecesse – ou não – ele sorriu. Um sorriso enorme, de orelha a orelha, mostrando os dentes brancos e brincalhões.

–Hm, hm. Você não quer ir, Annie? –cantarola meu irmão dando-me um cutucão de leve no braço, eu cambaleio para o lado e ele me puxa para um abraço apertado de irmãos, onde ele começa a bagunçar meu cabelo com as mãos enquanto me segura com o outro braço para eu não poder escapar. –Ah, vamos lá, Annie! Eu me arrumei, mana, eu me arrumei. –repetiu para as palavras fixarem-se em minha cabeça, como se não houvesse entendido. –E você sabe o que isso significa?

Tenho que admitir o meu otimismo ter se elevado depois dessa. Dei uma breve gargalhada e desvencilhei-me do seu aperto descomunal para logo em seguida desviar evasivamente de outra disparada de surtos vindos do meu irmão. Fynn arqueou a sobrancelha, impressionado, e deu um passo para trás, rodando sobre o seu próprio eixo e mantendo os braços a alguns centímetros de distância do corpo, questionando:

–O que você acha?

Examinei-o com cautela, colocando meu dedo indicador e polegar no queixo, enrugando a testa. Ele usava o tão raro terno branco acinzentado e a gravata alaranjada do papai; os cabelos estavam milagrosamente arrumados (mesmo sabendo que não ficariam por muito tempo, parecia finalmente que um pente passara por ali) e os sapatos chegavam a reluzir pelo brilho ofuscante dele emitido. Ele estava incrivelmente e assustadoramente... Parecendo completamente desconfortável. Ah, vamos lá! Por que ele usa aquelas coisas? Se as roupas não o agradam ou não o deixam movimentar-se livremente como um beija-flor não faz sentido usá-las. Não importa se aquele traje estava realmente lindo, isso era absolutamente irrelevante. E esse é o meu conceito definitivo; quantas vezes eu teria de lembrá-lo? A primeira vez que conversáramos sobre isso foi quando tínhamos oito e sete anos de idade. Estávamos no nosso forte de cobertores quando aconteceu, a cena foi mais ou menos: “’Você vai prometer que não se importará com o que as pessoas dizem sobre nós? De dedinho?’ Estendera minha mão para selar nosso pacto e ele encarou-me como que dizendo ‘Tem de ser por dedinho, irmã?’ e eu elevei meu dedo mindinho para afirmar fitando-o de forma séria e determinada. Tínhamos de ser fortes! Éramos Mellark! Amanhã não importa qual seja a reação deles iremos de dragões para aquela reunião da mamãe! E nunca mais iremos nos preocupar em precisar nos arrumarmos. Sorri para meu irmãozinho como uma forma de encorajá-lo e ele por fim cedeu. Fizemos nossa promessa e compartilhamos o sorriso de forma satisfeita, com alívio”. Estaria ele quebrando-a agora? Isso não era possível. Nunca quebráramos uma promessa, nem mesmo naquela vez quando ele me fizera prometer – de dedinho, é claro – que nunca contaria sobre o culpado ser ele quando pintou a cara do papai com suas tintas, aquelas na qual ele guardava para uma ocasião especial como desenhar algo precioso para a mamãe. E até hoje eu não disse; viu? Fui leal. Espero que ele não tenha se esquecido do nosso combinado. (Sobre a pintura no rosto do meu pai, se querem saber, Haymitch fora nosso “bode expiatório”, e nossos pais ao menos desconfiaram, então acho que está tudo bem).

Então com meu tom natural e sincero, disse honestamente, sem relutar:

–Prefiro você vestido de lobo.

Aconteceu em meados do inverno. Minha mãe fizera uma roupa de lobo para ele se vestir, um casaco quente e aconchegante, para poder esquentar-se e manter-se seguro com a temperatura estável. O único problema foi sua veneração por aquilo. Amou até ultrapassar as suas barreiras. Isso pode aparentemente não ser algo ruim, mas quando aquele adorável e sonoro amor infantil começa a exacerbar-se até tornar-se algo incontrolável, ele acabava formando-se um pungente excesso de sentimentalismo, como ocorreu na cabeça afetada de meu irmão. Ficara praticamente vegetando e criando mofo dentro daquele tecido abafado e precoce. Tirá-la para lavar? Ela não precisa ser lavada! Vai retirar o meu cheiro, minha alcateia não me encontrará se não conseguir detectar meu faro! (Acredite, irmão, até eu captaria seu odor de lá da Capital). E uma especialidade caracteriza meu irmãozinho. Quando ele quer algo e está determinado a mantê-lo por perto, você nunca irá conseguir vencer a sua luta transtornada e psicológica. Talvez você pare em uma câmara de decapitação para Loucos e Enfermos mas com certeza não conseguiria discutir com o pequenino Fynn. A partir daí, começou a complicar um pouco as coisas. Fynn ficou com aquela roupa de lobo que o cobria da cabeça até os pés por cinco meses. Inteiros. Não deixou sequer minha mãe lavar, e o rabo felpudo, assim como as orelhas e os pelos macios, iniciaram seu processo de imundice e logo se acumularam tantas sujeiras que mal era possível ver a camada original do tecido. Ele era mais como uma praga ambulante do que um lobo faceiro e selvagem. Se continuasse daquele jeito, logo o lobinho teria de berrar “SOU LEPROSO!” para que ninguém se aproximasse e contaminasse com a maldição que estava em processo de domínio em seu corpo. Haymitch já havia entrado em estado de completa execração quando meu irmãozinho passava por ele.

Fynn, ao escutar minha resposta, sorriu e abafou uma risada que saiu mais como uma bufada pelo nariz. Pude ver em seus olhos um brilho redundante acostar-se e recobrir o reflexo de sua visão. O seu sorriso era uma pura e contemplativa demonstração melodiosa de que no determinado segundo sua presença havia se voltado para sua Sala Demência onde tudo era um delírio doce e terno das lembranças vitoriosas. Não passou muito tempo ruminando em seus devaneios das almiscaradas memórias, claro. Seus olhos logo ficaram fixos e me encararam, soltando um sorriso torto entristecido e nostálgico.

–Acredite, eu também prefiro. –ele disse-me, finalmente, com certo desapontamento, abaixando os braços e lançando um olhar para nossa mãe, a própria apenas levantou os ombros como se não pudesse fazer nada. Um detalhe, porém, me incomodava.

–Por que você está com isso, afinal? Ainda não estamos no ‘bailezinho’.

Caso já tenham assistido uma mãe malévola e perfeitamente capaz de desdobrar sua pele ao contrário e mortificar e triturar seus ossos transformando-os em minúsculas partículas de pó delicados pousados suavemente sob seus pés enquanto transmite a você um sinistro sorriso equivocado, vocês poderiam reproduzir a impecável imagem do que acontecia nesse exato instante a minha frente. E na frente de meu irmão. Provavelmente ela estaria ponderando formas inebriantes de paralisar-nos ou transformar-nos em robôs automaticamente controlados. Não seria tão surpreendente se ela aparecesse provida com sua aljava de flechas e uma munição de bombas nucleares apontando-nos a ponta congelante e obrigando-nos a nos arrumar – mas, bem, essa não seria Katniss Everdeen. Não exatamente, não necessariamente nessa motivação.

–Ah, não, não... Por favor, não diga... –sussurrei baixinho encolhendo-me quase imperceptivelmente, uma trilha de correntes frias apressadas passou pelo meu flanco e atravessou meu estômago com a resposta ainda não dita, porém, já deduzida. Ela não faria...

–Sim! Comemoraremos seu aniversário de dezesseis aninhos nessa semana! E temos de cuidar de tudo, não é? –minha mãe gritou com um timbre fino e decrepitamente agudo, arremessando os braços para cima em completa e extasiada felicidade. Quase nunca a vejo assim. Quer dizer... assim. Nada típico de uma Everdeen, certo? Principalmente de minha mãe. Pelo que me lembre essa foi a reação de meu pai quando tive o primeiro vislumbre do sinal da minha transformação para uma “moça” quando era mais nova. Não era algo agradável quando tudo o que sua cabeça ainda não abstida de conhecimento pensa que está morrendo descompassadamente com uma hemorragia interna.

Bufo indiscretamente, um tom de desdém afundando meu ânimo mal formulado. Eu não queria comemorar meu dezesseis anos. Posso ser considerada uma anomalia, mas não vejo a graça de rir e se alegrar por ter mais um número acrescentado em sua contagem regressiva para a morte. O que posso falar? É claro, não são todos que seguem o mesmo rumo, a mesma linha de raciocínio. Veja só meu tio Haymitch: ele está velho, inútil, desprezível e completamente incapacitado de praticamente andar e ainda vive. Talvez estivesse combatendo contra alguma força antagônica e se recusasse a me livrar de suas provocações.

–Droga. –praguejo para mim mesma, baixinho e com um leve tremular de uma voz monocórdia, ao mesmo tempo meio enfadada. Uma coisa era ter uma pacífica manhã, tarde e noite degustando de sua nova etapa infeliz da vida que é ficar mais velha – outra, é ter sua mãe (em especial, a minha) para preparar uma surpresa para mim, como podia supor (corretamente, devo acrescentar) ela estar fazendo para mim.

Meu irmão deu um risinho e lancei-o um olhar cáustico e incisivo; ele parou no mesmo instante e engoliu em seco, fingindo se engasgar. Minha mãe conservava o sorriso em seu rosto à primeira vista inocente, mas se você cavasse lá no fundo descobriria que não tinha tanta ingenuidade quanto aparentava por fora. Sua destreza e audácia poderia me matar caso eu deixasse. E, obvio, não fosse sua filha para aguentar e suportar tudo isso.

–Vamos lá, filhota. Não vai ser tão ruim assim. –a voz sonolenta e idílica me embriagou e eu observei o campo de minha visão por trás dos ombros de mamãe. Meu pai bocejava com uma das mãos a frente de sua boca, escondendo os dentes brancos e a escuridão da garganta, a outra mão repousava nos ombros de minha mãe, que havia cruzado os braços e me fitava com uma feição divertida e sarcástica. Oh, é claro. Por que não ironizar sua filha em plena madrugada da semana mais aterrorizante de sua vida? Por que não?

Respirei fundo, tentando relaxar os meus batimentos cardíacos e normalizar minha respiração. Acho que o surto de adrenalina que percorreu meu corpo por um momento não me fizera tão bem, meu único apoio era Fynn, que assistia tudo em silêncio e em equanimidade. Não poderia estar mais indiferente. Bom, não em maneira apática, apenas inexpressivo. Quando me viu focando-o em meu ponto central de minha visão ele divergiu sua atenção para mim. Ele abriu a boca e logo depois fechou-a novamente.

Ele sabia o que eu pensava. Novamente, eu havia mudado minhas ideias. Poderia estancar em meu tempo e fingir que nada houvera acontecido. Porém, não podia simplesmente fingir e evitar que algo realmente estava acontecendo. Os pensamentos positivos que tentava ter não eram realmente uma melhora, não abrandavam a tempestade. Elas não me ascendiam, como precisava. Apenas me faziam lembrar, após toda a agitação momentânea, sobre o quanto tudo havia mudado, e como tudo tinha me afetado. Noites mal dormidas, meus sentidos alterando-se como uma balança instável, equilíbrio esquivando-se de sua obrigação de me manter de pé... Não havia dito isso para meus pais, eles me mandariam para o Hospital e teria de passar mais uma boa parte de minha vida por lá, e não era meu desejo – além do mais, não gostaria de preocupá-los, era desnecessário uma vez que meu irmão já dava conta de tomar conta de mim, basicamente. Ele conseguia me ajudar a obter estabilidade quando o chão desaparecia sob meus pés, ou quando o mundo girava ao meu redor como um brinquedo infantil. Às vezes, a noite, quando acordo com uma dor lancinante em minha cabeça após uma noite inábil de um bom descanso ele me auxilia a retornar a minha consciência, sem alvoroço ou uma torrente de perguntar aflitivas que sem sombra de dúvida meus pais fariam, e quando falo pais lê-se mãe, apesar de papai ficar ali, ao meu lado, escutando-me e dando-me consolo, sendo que não é necessariamente o que eu preciso naquele instante.

O que eu preciso é descobrir o porquê raios isso veio a aparecer. Tão subitamente, e leviano. Esgueirando-se em mim e grudando-se em meu ser como se fosse um ácido ou radioativo indefinido e impossível de se fugir. A pontada atrás de minha cabeça, bem em minha nuca frequentemente me incomoda, como se avisando-me de um perigo, e constantemente veio sentindo ser observada, como se acendessem um incêndio as minhas costas e tudo o que eu poderia sentir era o calor do seu fulmino, sem poder enxergar de onde este vem.

E por esta causa específica, havia conversado com Fynn em uma dessas noites – como sempre faço ao demandar conselhos de alguém. Meu Tio Haymi certa noite conseguira entrescutar uma das nossas conversas, e com isso ele virara um dos integrantes de nosso conselho particular. Até que sua cabeça calva envelhecida e poeirenta servia para alguma coisa.

Está bem, talvez Haymitch não fosse tão inútil e inapto como dissera anteriormente para aplicar adequadamente seus conhecimentos conosco.

Eu falara ao meu irmão sobre meus receios, recorrera a ele nos piores momentos. Naquela noite, estávamos conversando sobre meu desenvolvimento aos dezesseis anos. Seria dali a dois dias (junto com a segunda parte da confraternização), amanhã seria a Primeira parte da Confraternização a qual nem a minha mais bondosa e pacata parte poderia querer ir. Estava interessada em outros assuntos. Como por que sonhos do Distrito destruído apareciam em minha pálpebra fechada e letárgica? Por que via mortes concretas e sentimentos vívidos e surreais quando eu participava de discussões coletivas com pessoas desconhecidas no anonimato da escuridão? Ou de quando achegava-me a pessoas mortas e deflagradas no solo sob mim, minhas mãos escorregadias, mornas e pintadas do líquido refratado e conducente de carmesim contra minha pele. Sangue. Eu os matara. Eu os matara naquele sonho mais do que real para mim.

Minha garganta começou a fechar-se, e quase fui tragada a mais um de meus sonos acordados. Uma desolação assombrou-me e pude sentir a intensidade dos olhares descartados sobre mim. Meu irmão pigarreou, fingindo limpar a garganta e voltei-me a minha mãe que iniciara um processo de mudança em sua face; seus olhos estreitando-se ao estudar-me momentaneamente e o cenho franzindo-se desconfiadamente, com insegurança do que deveria fazer ou dizer.

–Certo! –exclamei de súbito, espantando todos os três no aposento (sem contar o filhote enroscado nos pés de minha cama, Sherlock, que descansava roncando ressonantemente) pela minha fala centrada de repente. Obriguei-me a dar-lhes o meu melhor sorriso, que saiu enviesado e sem muita convicção. Sem notar, levantei um de meus braços para cima de minha cabeça e arranhei a parte de trás de minha cabeça, escondida pelo emaranhado de cabelos rebeldes, onde latejava. –Não pode ser tão ruim, claro, é claro. Irá ser divertido.

Meu irmão soltou uma respiração contida, aliviado, e pude perceber o rosto de meu pai brilhando de expectativa. As feições de minha mãe amenizaram-se, apesar de não completamente fazer desaparecer a absoluta intenção nublada. Ela ainda suspeitava de mim, podia sentir isso. Não iria conseguir esvair sua desconfiança até formar um argumento sincero e coerente, plausível para ela considerar – o que não seria tão fácil assim. Porém, ainda estava pensando sobre essa questão. E não estava com disposição para inventar algum questionamento nesse momento. Tudo o que estava disposta a fazer era deitar na cama novamente e cair em coma, não me importava se acordasse dez ou vinte anos depois, apenas queria descansar, obter pelo menos um dia de descanso razoável, sem ter de pensar em todas as lúgubre imagens que se espelhavam e grudavam em minha mente distorcida. Estava à beira do pânico, e da insanidade.

Tudo isso em apenas três dias.

Depois de quinze minutos em completo silêncio, meu quarto pareceu explodir em ruídos sonoros que quase estouraram meus tímpanos e deixaram-me sem audição. Não tecnicamente, já como basicamente nós não realmente falamos algo. Sherlock acabou por despertar por completo, espreguiçando-se e bocejando ociosamente enquanto arqueava as costas caninas, empinando o traseiro para cima e erguendo a cabecinha para cima, os óculos escuros balançando enquanto ele sacudia a cabeça fugazmente. Logo, Haymi (o cachorro) saia debaixo da cama, mais deslizando por alguma força sobrenatural do que caminhando por si mesmo. Fiquei observando-os, sem intenção de me dirigir a meus pais novamente. Papai sorria para mim e mamãe ainda fixava seus cinzentos olhos hipnotizantes no ponto mestre de meu sujeito, querendo ler minha alma. Remexi-me, desconfortável e virei meu tronco em direção a meu irmão, claramente pedindo ajuda, desesperadamente.

Demorou mais cinco minutos para ele entender.

–Então! Pai, que tal nós resolvermos aquela questão do terno, huh? Eu acho que você deveria ir com a gravata azul, ela irá combinar com as flores que você dará para mamãe. –Fynn pulara no mesmo lugar e deu meia volta inteira, unindo as palmas em planejamento e aproximando-se de nosso pai impregnado com os glóbulos soníferos que emitia de seus sonhos provavelmente relaxantes. Ele agarrou o antebraço de papai e começou a puxá-lo até seu quarto enquanto ele reclamava:

–Ei, isso era para ser uma surpresa! –e então, tornando-se novamente mamãe sua protagonista da conversa, acrescentou: -Ele não quis dizer uma flor azul de verdade, Katniss, amor, não mesmo!

A porta do quarto de meu irmão fechou-se com um estrondo abafado, deixando-me encarar apenas a madeira rebuscada de sua superfície, adornados com avisos categóricos feitos por meu próprio irmãozinho quando era menor, porém que até agora não mudara por algum sentimento conservador.

Captei de esguelha mamãe revirando os olhos pelas palavras de meu pai, e corando ligeiramente enquanto um risinho aflorava de sua garganta superficialmente presa quando se dirigia a palavra a mim. Com Sherlock a meus pés, e Haymi enrodilhado a sua volta como se fosse um afável e protetor vovô, eu sentei-me na beirada da cama, esfregando meus olhos com os dedos que evidenciara estarem suados, um detalhe que logo fiz esvair-se ao abaixá-lo e prender minhas mãos debaixo de minha coxa, roçando minha pele contra o tecido a fim de tentar secá-las parcamente, embora soubesse que não devia ser apenas meus dedos em estado pressionado.

Minha mãe continuou a analisar meus movimentos, a cada instante, nunca desviando o foco. Senti-me um tanto irregular e desconcentrada, e não conseguia evitar o fato de praticamente estar sendo dissecada pelos olhos audaciosos de minha mãe. Virei minha cabeça para o lado e abaixei meu olhar vagarosamente para o chão, onde fiquei repercutindo pensamentos lamentáveis sobre uma falha do solo, sobre alguma rachadura quase improvável nas juntas das paredes ou em algum defeito na pintura da cama. Ao meu lado, senti um peso agregar-se e atrair-me para ela. Minha mãe sentara na cama, e encostou carinhosamente sua mão consoladora sobre meu joelho.

–Er... –ela tossiu, como se houvesse algo entalado em sua boca. –Você... você está bem filha?

Não olhei para ela. Não gostava de mentir para alguém tão próximo e íntimo de mim, mas não havia escolha a fazer. Não devia ser nada demais, esses meus sonhos incompletos e arrazoados. Nada demais. Tinha de pensar dessa maneira, de outra forma, como poderia relaxar? Era como ter uma bomba regressiva em sua cabeça, cada dia piorando mais, e mais. Anui ainda com os olhos pregados no chão, minha mão fechada em punho debaixo de meus membros inferiores, agarrando a ponta da cama com tanta força que pude sentir minha palma latejar e desentoar o fluxo de sangue inconstante. Minha mãe não se deixava convencer, nitidamente.

–Annie, filha. Você sabe que qualquer coisa que a estiver preocupando... você pode conversar comigo, certo? –ela perguntou-me, um toque ansioso e nervoso em sua voz. Compreendia seu sentimento, apesar de nunca tê-lo experimentado. Ela tem medo de ser mãe. Sempre teve o temor e receio de tornar-se algo tão responsável como tal e não dar conta. De não conseguir cuidar de nós conforme teria ou chegar a certo nível de maturidade para nos erguer e educar corretamente. Honestamente? Não sabia como e nem porquê ela preocupava-se tanto com isso. Estávamos bem. E eu me odiava e culpava por ainda ter de mantê-la por perto, mesmo não precisando. Queria que ela estivesse confiança perante nós, mas de hora como afirmo, ela apenas quer nossa segurança e bem-estar. Não quer-nos mal.

Assenti com minha cabeça pesada pelo sono novamente. Ela pendeu de lado, quase sem energia o bastante para me manter despertada. As marcas e cicatrizes que as consequências daquelas memórias corrompidas vagando pela minha cabeça inundada por minha ira contida e perversa. De onde ela viera? Tentei me acalmar, meu sangue esquentando-se, a temperatura subindo. Estava prestes a perguntar se o tempo ficara mais quente naturalmente ou se ela havia acendido a lareira quando vi Sherlock tremendo friamente no chão, Haymi tentando encobri-lo com seus pelos. Lembrei-me também de meu pai que estava com um cobertor amortecido e grosso sobre seus ombros. Dizer aquilo seria como declarar em alto e bom som de minha situação febril e ilógica.

Minha mãe suspirou. De relance, explorei sua expressão aceitável. Ela poderia estar serena e suavizada, no entanto não deixava de ocultar a estafa que claramente sentia. Minha culpa não podia ser maior, era como se pressionassem uma enorme tábua de ferro fumegante em meu peito, queimando-me de dentro para fora. Sabia que ela notara uma diferença em mim, mas não podia exatamente dizer que ela realmente sabia pelo que se passava – algo que mal eu sei.

Eu tinha um plano. Sim, isso eu poderia formular.

Conversara com meu irmão a respeito de quando tudo começou. É como se várias lembranças se colidissem e tornassem uma única, homogênea. A princípio, nossa primeira especulação seria de quando as aulas iniciaram-se, mas é claro que isso ficou translúcido que não tinha a mínima semelhança ou o traço desejado para esboçar o que se tornara. Meus sonhos começaram poucos dias atrás, e logo estávamos pensando naquele dia quando eu desmaiei, e quase perdi minha perna. Era uma boa dúvida, e sabia que Fynn não estava me provocando mais uma vez por minha incapacidade de me lembrar sobre o que havia acontecido naquele dia. E era por isso que planejava hoje a noite pesquisar e examinar onde fora meu ponto de inconsciência. Não que tivesse certeza de que iria encontrar algo, mas certamente eu não ficaria de mãos abanando – ou assim, esperava eu.

Meu irmão e eu conseguimos achar em um dos bolsos de papai uma pétala de flor branca. Não que estivesse tão exasperada a ponto de investigar cada peça de roupa que cada um usava naquele instante, e entrevistá-los em uma sala estreita e escura com a luz forte e lampejante de uma luminária posta a frente dos olhos do sujeito, porém, meu irmão recordara-se como papai se portara naquele dia, e como ele e mamãe argumentaram sobre um assunto particularmente instigante que não deixaram ele participar quando eu ainda estava no hospital. Os únicos resquícios que ele conseguiu ter da conversa foram sons abafados e desconexos que não faziam sentido nenhum. “Ele não pode ter voltado, Peeta, você sabe disso. Faz anos que nada acontece por Panem” mamãe dissera, quando meu irmão foi fornecer-me informações “Sim, sei disso. Mas não podemos ignorar ou evitar a verdade que se encontra bem a nossa frente. Nós encontramos aquilo” papai retrucara, tornando a voz áspera ao pronunciar a última palavra. Mamãe suspirara ruidosamente “Pode ser apenas coincidência” então meu irmão escutara passos apressados vindo em direção a porta, aproximando-se mais e mais, e por isso ele se apressou a esconder-se em seu quarto, não antes de escutar, no entanto, nosso pai alteando a voz para se fazer de ouvido “Não podemos deixar de esquecer o que aconteceu, Katniss! Eu sei que você não quer acreditar, e nem eu o almejo, mas temos de aceitar e considerar essa probabilidade. Antes que seja tarde demais”.

Depois daquele dia, a discussão não se prosseguiu. Foi como se meu irmão houvesse tido um enorme devaneio realístico, mas que tudo não se passara de sua cabeça. E quando fomos procurar nas coisas de papai quando este e minha mãe estavam fora achamos a pétala branca. Não em plena vastidão e ascensão de que um dia fora, resultado de desconversas e de ser sujeito a reviravoltas pelos dedos ardilosos de papai, dava para saber disso – apenas encarando a peça em aparência leniente, embora omitisse certo íntimo fútil e absurdo em que não conseguia absolver.

Sabe como isso era irritante? Era como se fosse controlada, e estritamente conservada em observação. Presa, enjaulada. Não eram simples sonhos...

Eram visões de um futuro próximo. Podia sentir isso.

Braços calorosos e confortadores me envolveram nos ombros e minha visão clareou com a paisagem do presente. Minha mãe sorria circunspecta, invariável, e as rugas rijas de preocupação se destituiu de seu rosto, virando a Katniss cautelosa e segura.

–Bom, eu confio em você, minha filha. Por isso, não vou atormentá-la, se é isto que deseja. –mamãe anunciou para mim, trazendo-me para mais perto dela e pousando um beijo compreensivo no topo de minha cabeça. Quase demonstrei meu alívio explosivo quanto em relação a sua decisão de liberdade expressiva, mas pude deter-me a tempo para apenas dar uma longa tragada de ar internamente, silenciosamente, mantendo rigidamente meus ombros levantados, contudo sem conseguir conter minha feição de se alterar, transformando-a em um vívido quadro contemplativo. Mamãe percebeu, logicamente. Seu sorriso tornou-se torto e dúbio, e fez-me sentir grata por ela não pressionar-me. Desviei o olhar tentando sufocar a imensa lavagem de oásis que eu sentia naquele instante.

–Filhota, -mamãe estende as mãos pelas minhas costas, dando uma batidinha de leve nelas antes de erguer-se e ficar diante de mim, curvada e segurando meu queixo com seu dedo indicador, puxando-o para cima, olhando-me com as sobrancelhas arqueadas e o sorriso brincalhão. -o que você acha de descobrirmos algo para você usar em seu aniversário?

Reviro os olhos e bufo pela milésima vez naquele dia, soprando e empurrando minha franja para longe de meu rosto. Uma carranca acomoda-se em meu rosto e franzo o cenho, mantendo a boca retorcida em uma careta descontente e zangada. Minha mãe dispara gargalhadas que sobem por sua garganta e posso notar o quão se diverte com meu desapreço quanto esses assuntos. Ela empertiga-se sacudindo a cabeça de modo condolente e ainda tem o sorriso cortês e um tanto jocoso no rosto quando reflete:

–Desculpe-me, querida. –percebo quando engole um riso soberano dentro de si quando seus ombros movem-se para cima e para baixo ao cruzar seus braços sobre o estômago. –É que... você lembra-me de mim quando era jovem e de sua idade.

Ouço muito sobre isso quando ando pelo Distrito. ‘Olha, é a filha da Everdeen’ ‘Nunca pensei que ela teria mesmo herdeiros’ ‘Oh, ela não se parece com a mãe?’ ‘E os olhos? Assemelham-se tanto com os do Mellark! Lembro-me de quando todas minhas primas iam à padaria apenas para vê-lo’. Geralmente eu escutava sentenças mais acentuadas ou até comentários diretos e complacentes, e outras de forma condescendente ou intransigente, esses são principalmente aqueles contra a Nova Panem.

Sorrio para minha mãe que está esperando por uma resposta minha, e vejo-a entusiasmar-se, os seus olhos abrindo-se e clareando como um céu tortuoso e nublado metamorfoseando para um limpo e sereno, quase transmutável para um cinzenta ganancioso, como os olhos de minha mãe estavam. Brilhantes e esperançosos.

–Hm, hm. –ela murmura e encosta-se a batente da porta, os braços cruzados e uma das mãos sob o queixo, mordendo os lábios inferiores como se refletisse, um dos olhos fechados. –Acho que verde serviria para você.

Levanto-me da cama de um salto, espantada, boquiaberta e olhando-a furiosa e nervosa, quase tropeço em meus próprios pés e levanto os braços para cima, sacudindo a cabeça e encarregando-lhe a palavra em tom indignado e suscetível:

–Mãe! Não!

Katniss Everdeen apenas solta mais um risinho incontrolável e me dá as costas, andando apressada pelo corredor, como se fosse uma garotinha correndo dos pais ao fazer uma traiçoeira inquisidora para eles. Posso escutar os passos ferozes e ligeiros de minha mãe quando ela desce as escadas rapidamente, e suspiro pesadamente, um gemido livrando-se de dentro de mim como um prisioneiro dentro de uma cela. Deixo-me cair derrotada na cama novamente, e deito meu tronco enrijecido, horizontalmente em relação a cabeceira cama. Talvez mamãe estivesse aproveitando sua infância agora, degustando-a ao usar minha pessoa, sua própria filha, como meio natural. Maravilhoso.

Escuto o som de uma porta sendo aberta e passos reclamados passando pela minha porta, descendo mais duramente os degraus até a parte abaixo de mim. Sei ser meu pai, seus passos eram inconfundíveis a minha audição. Agora sabia como mamãe sentia-se quando ele teimava em acompanhá-la em seu treino diário na floresta.

Permito minhas pálpebras abaixarem-se e tremularem para finalmente repousarem. O calor e peso de alguém recai ao meu lado esquerdo, e novamente um corpo se derrama ao meu lado, deitando-se vertiginosamente como eu, exausto e aliviado ao mesmo tempo, em certo ponto alegre efemeramente e melancólico característico em outros.

Então, assim que relaxei e meus músculos voltaram a se posicionarem confortavelmente, meu coração regulando suas batidas incessantes, tudo retornou. Gritos explodiram sobre mim como se estivessem as próprias vítimas ao meu lado, gargalhadas alucinatórias e escarnecedoras, um cheiro acre cínico sobrepujou meus sentidos e uma violenta e inibia sensação cortante acorreu pela minha corrente, e senti em meu tato uma forma afiada e gélida, hidratada por um líquido viscoso que reconhecia no mínimo toque. Meus membros não conseguiam parar, e a cada vez que me aproximava um passo a frente, mais um grito se fazia ouvir em minha mente. As árvores recortando-se, entre suas frestas me deixando visualizar a imagem do Distrito 12, incolor e mutável. Eu cortava, arremessava, penetrava, mortificava e decapitava muitos, todos que corajosamente aproximavam-se. Eu era uma fúria, uma besta e uma completa inconsciência lunática. Lutei contra aquela visão, sentindo dentro de meu peito uma força sobrenatural, como se estivesse separando-me de meu corpo, e subitamente estava em meu quarto novamente, olhando para o teto vazio e desolado, meu corpo exacerbado e consumido por uma dor interna e a mente refratada, mutilada. Minha respiração saia complicada, e o ar parecia raspar pela minha garganta, irregular. Uma gota morna e familiar escapou do canto de meus olhos e desceu pela minha têmpora, algo que rapidamente fiz desaparecer com meu dedão.

Virei o rosto para o lado, só para encarar fixamente os olhos cinzentos aflitos de meu irmão, seu cabelo loiro bagunçado e caindo sobre metade de sua testa, o lábio comprimido enquanto me observava.

–Oh, Fynn. O que farei? –pergunto lamuriosamente, minha voz sai um tanto trêmula e hesitante, aos tropeços e forçadamente. Não quero parecer frágil aos olhos de meu irmão menor, mas não sabia a quem recorrer. Queria que tudo aquilo se esvoaçasse para longe, bem longe, de mim. Quero que volte ao normal, que tudo pudesse ficar bem novamente. Como havia sido nos quinze, dezesseis – praticamente –, anos de minha vida.

E, até aquele momento, eu não sabia o quão redondamente iludida estava. Não voltaria a ser quem era; nunca mais.

Os olhos cinzentos tempestuosos de meu irmão voltam-se para o teto altivo e rebuscado a nossa frente. Seu rosto detrata-se em uma paisagem bucólica que fez meus pensamentos dissolverem-se e se espalharem. Sua mão deslizou pela superfície fresca da cama e apegou-se a minha, tentando consolar-me. Não havia percebido o quão fria minha palma estava até encontrar-se com a dele. Fynn respirou profundamente, ponderando sobre minha pergunta. Lá longe, abaixo de nós, escutei o som de riso de meus pais. Papai não notara o desaparecimento da pétala de flor, e mal eu sabia que fim a própria flor havia sido levada. Já esquecera-se dela? Estava ele preenchido pela mesma paz momentânea que mamãe tentara transmitir à ele?

Quando a flor encheu meu campo de visão, balancei a cabeça e me focalizei no nada. No vazio de um campo pastoril e verdejante, inundado e repleto de gramas que saltitavam seus insetos para o ar. A brisa leve. O som calmo do roçar de passos dentre elas... e então aqueles mesmos olhos voltavam. As nuvens brancas e puras tornaram-se glóbulos sem cor e maliciosos, fitando-me como se fossem uma violenta maresia pretendendo engolir-me por inteira. O céu surgiu com uma cor modorrenta, apática e de um profundo escarlate. Gotas começaram a descompassar para baixo, para minha pele, queimando-a e ultrajando-a. Gotas que percebi serem formas lacrimais de sangue. O ar tornou-se febril e abafado. As gramas tornaram-se aço, laços de aço que prendiam-me como amarras, pressionando pulsos, coxas, panturrilhas, quadril, testa e antebraços. A sensação da força do aperto ilusório era tão lívida que arregalei meus olhos desfocados e, antes que percebesse, uma mão firme transpôs o espaço que tinha entre nós e grudou em meu maxilar, abafando o berro estridente e desesperador que lancei para fora de mim. Sentei-me defensivamente, preparada para um ataque que não veio. Meu coração batia insolúvel e insurgente contra meu peito, nocauteando-me, envolvendo-me em uma dança frenética e exasperadora. Minha expiração batia na pele morna da mão de meu irmão que continuava a pressionar meu maxilar até que por fim o grito inconsistente transformasse em um sussurro inapto e desaparecesse como um fio de água pelo espaço.

–Fynn? Annie? –a voz de mamãe cortou o ar, vindo preocupado de baixo. –Tudo bem por aí?

Ainda tentava regular minha respiração, por isso entreolhei-me com Fynn, encarando-o de esguelha, meu irmão que já levantara-se apressado, retirara sua mão de meu rosto com delicadeza e ainda apertava minha palma com a livre, fornecendo-me apoio.

–Tudo maravilhoso! –ele respondeu, subindo a voz para ser ouvido. Mamãe não retrucou, e depois de dois minutos em completo silêncio ávido, nós concedemos um suspiro intenso. As imagens ainda gravadas em minha mente. Os murmúrios alarmantes chorando em meus ouvidos. Engoli um soluço para dentro de meu âmago.

–Annie. –meu irmão me chamou. Não olhei-o; não me virei para atender seu chamado. Apenas permaneci quieta, calada, tentando afastar qualquer pensamento, qualquer relação em minha mente. A queimação em minha nuca acentuou-se, clamando por atenção, praticamente insuportável. Meu irmão chamou meu nome mais uma vez, e outra. Uma grande respiração foi ouvida e logo ele estava a minha frente, agachando-se a minha visão, e segui seus movimentos, lentos e circunspectos. Ele fixou em meus olhos, sério e compadecido. –Irmã. Nós vamos descobrir o que aconteceu. Nós vamos, acredite em mim. Lembra aquela vez quando lhe garanti que conseguiria a você um punhal novo, que tanto queria, anos atrás?

–Aquela que você encontrou na cabana? –não consegui conter um sorriso torto e zombeteiro que apareceu no canto de meus lábios, ele retorceu o nariz e enrugou a testa.

–Não. Eu providenciei para você, mas não foi naquela cabana. –a expressão endureceu um pouco, ofendido e ele diminuiu o tom de voz. –Já disse a você, eu a fiz.

Tive de morder o lado de minha bochecha dentro de minha boca para deter a minha risada sem emoção, sua expressão entristecida fez-me pedir-lhe desculpas, e ele assentiu, finalmente mostrando-me um de seus sorrisos risonho que precisava para deixar o ar menos pesado e vulnerável. Mas era um sorriso forçado, um sorriso que escondia a melancolia que havia em sua face.

–Como aquela adaga que consegui a você, vou conseguir a resposta para os seus pesadelos e a razão de suas visões. Eu prometo. Acalme-se, irmã. Mantenha-se confiante. Nós dois vamos descobrir o que aconteceu. Eles não vão mais atormentá-la. Você vai ficar livre novamente, e poderá ser quem era. Sei que pode estar confusa agora, sei que tudo isso deve ser esmagador a você, mas tudo irá acertar-se. Você vai ficar bem. Não será nada demais, apenas uma fase. Uma fase horrenda e dolorosa, mas passageira. –ele fez uma pausa, e segurou meus ombros. Um ardor subiu para alojar-se atrás de meus olhos, e um nó formou-se em minha garganta. Doía. Doía ter aquelas imagens em minha cabeça, mais vívidas do que jamais pensei poder ter a chance de conhecer. Doía sentir o peculiar e constante repuxão que me infligia, que me desconectava do mundo. Doía ter aquele sentimento tão real em meus sonhos. Doía saber e presenciar que algo mudava dentro de mim, algo terrivelmente grande, algo pavoroso que não podia ignorar. Eu sabia, e isso doía. Doía mais do que ter um instinto de que não faltava muito para a contagem parar. Para a bomba explodir. E aquilo me aterrorizava, me assustava e mais do que tudo me fazia querer com que nada estivesse realmente acontecendo. –Está me ouvindo? Annie, nós podemos fazer isso. Você pode fazer isso! Você consegue superar. Você consegue aguentar. Por favor, irmã. Eu estou tentando...

Fynn abaixou a cabeça, e só então percebi o que estava acontecendo. Meu irmão estava chorando. As lágrimas derramavam-se de seu rosto como suspiros silenciosos, sua voz embargada ecoava em minha cabeça, as mãos antes fortes e seguras estavam tremendo, e a postura encurvada me fazia sentir culpada. Nunca pensei como ele estaria depois de ficar basicamente todos esses três dias obrigado a prender-se a mim, em meu sofrimentos e em minha dor interior e pungente quando tentava buscar com ele tranquilidade que por um longo tempo não teria. Estendi meus braços em sua direção e puxei-o em um abraço, ambos tentando reconfortar um ao outro. Sem nada poder dizer. Sem nada poder fazer. Estávamos desarmados. Isso tudo viera subitamente, sem dar tempo de nós recompor-nos. Minha cabeça começa a latejar, mas resisto a tentação de ceder aos impulsos nervosos e insistentes que combatiam para que eu lhes desse permissão de dar-lhes passagem em minha sanidade.

Em apenas três dias, eles fizeram-me perder a capacidade de ver o mundo como antes. Em três dias eles conseguiram levar-me a um estado de sufocamento. E aquele sentimento particularmente curioso que aflorava de cima de mim naquele dia que acordei no hospital, não muito tempo atrás, havia finalmente se pronunciado. Sabia o que era. E queria entender.

Nessa época, novamente, eu não sabia que as palavras que meu irmão dissera, aquelas que me agarrara tão fervorosamente, temerosa de soltar, e que me empurravam para frente, aquelas palavras que criara como um alerta em minha cabeça, aquelas frases e encorajamentos, aquelas promessas, todas elas... não passavam de mentiras. Nunca iriam acontecer. Bom, pelo menos não como eu esperava que aconteceria. Não como todos acreditavam que aconteceria.

E aquele ditado tão conhecido, que minha mãe transformara em uma nova perspectiva, não se passava de um desencanto, uma fantasia para satisfazer aqueles destemidos que tinham a coragem de se esgueirar para a trilha da audácia. Não era verdade. Eu, a filha do tordo, não acreditava mais na frase que mamãe falava todos os dias para mim desde quando era pequena.

A esperança pode ser a última a morrer. Mas, para mim, ela já estava morta.

Eu estava morrendo.


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Notas finais do capítulo

Primeiro: não, eu não morri.
Segundo: sim, essa já é a parte II, a parte II, no entanto, irá dissolver a maioria daquele clima 'leve' que antes tinha. A partir de agora poderá ficar um pouco delicado e confuso - afinal, vocês podem estar confusos agora - mas tudo irá se explicar conforme os capítulos vão chegando. Então não se preocupem, não se desesperem, e não é necessário xingamentos, que logo vocês irão entender. Alguns trechos irão vir, outros estarão com pistas no texto e outros ficarão para o entendimento de cada um. A fic também entrará em um rumo diferente, como bem notaram. Espero a compreensão de todos.
Terceiro: como notei, vejo que vocês não gostam de capítulos longos, pois vocês quase não aparecem nos comentários (embora eu seja grata a cada um daqueles que falam comigo). Portanto estou diminuindo-os para tornar a leitura mais fácil.
Quarto: a capa foi feita por mim, basicamente explica o porquê de não estar com tantos efeitos, etc. Logo ela estará na capa da fic.
Quinto: A partir de agora, apesar de eu odiar isso, a fanfic será movida a reviews, como muitas pessoas costumam fazer. Como devem ter visto nos avisos (ou não), não tem sentido eu postar se eu não tenho o retorno dos leitores para quem escrevo e que são os únicos que podem me dizer como melhorar. Caso contrário, eu poderia apenas escrever para mim mesma e nem postar, certo?
Beijos, até o próximo. Comentem e me digam o que acharam do novo começo!