Um Dia Qualquer. escrita por Hikari


Capítulo 26
Respostas, funeral e mais um integrante Mellark.


Notas iniciais do capítulo

Continuação... Desculpa, não deu para revisar uma parte deste. Arrumei alguns trechos, porém, se tiver algo faltando ou alguma palavra estranha e deslocada: me avisem, está bem? Espero que gostem, eu gostei particularmente do final. (:



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Continuação.

Pov. Alex.

Finalmente final das aulas. Fim de semana, bem vindo. Esperei que todos já estivessem fora da sala para começar a arrumar meu material e sair. Cam e Melanie haviam saído mais cedo, conforme a sua justificativa de ter algum “compromisso” e por isso, estavam apenas Annie e Will esperando-me. A sala estava vazia e silenciosa, com o único som dos meus objetos sendo movidos e desajeitadamente colocados de qualquer jeito dentro da minha mochila nada organizada.

Limpei a garganta e levantei-me. Annie e Will conversavam animadamente e mal pareceram me notar, porém quando comecei a caminhar para a porta, eles me seguiram quase que involuntariamente. Rolei os olhos, como falarei com Annie se aquele garoto não desgrudava dela?

Eles devem ter esquecido que ela não estava mais com a perna quebrada e não precisava mais de auxílio para andar, porque eles ainda andavam de mãos dadas aparentemente sem perceber. Ele não desgrudava dela de praticamente todas as formas literais.

Chegando a porta, eu parei e eles colidiram diretamente com as minhas costas, dei meia volta e olhei para os dois que pareceram ter saído de um transe, Annie entreolhou-se com Will e notou as suas mãos entrelaçadas, então ela soltou as mãos e ficou olhando para o chão, envergonhada. Will, ao contrário, sorria para ela tranquilamente.

Bom, pelo menos agora eu podia confirmar de eles estarem aqui comigo. Abri a boca e puxei todo o ar daquela sala, respirando fundo e soltando logo em seguida. Ainda não conseguira achar uma forma de começar a dizer para ela toda aquela notícia. Afinal, não era todo dia que você tinha que contar a sua amiga que desaparecimentos estavam ficando cada vez mais constantes e provavelmente poderíamos ser as próximas vítimas de um assassinato vazio. Talvez fosse melhor contar para os pais dela de uma vez; não eram eles que tinham conseguido implantar todo esse sistema e nos livrar de toda aquela tortura e mentalidade estúpida? Eles devem saber o que fazer.

Mas de alguma forma, eu sentia que não era hora de alertá-los ainda. De que não deveria incomodá-los. Sabia que isso não poderia ir muito longe. Embora o tempo não tenha conhecimento sobre o que era ‘esperar’ e ele andava rápido, depressa e sempre se esgotando lentamente ao mesmo tempo em que sua correria o fazia andar cada vez mais veloz. Mas não era o momento certo. E eu muito menos era a pessoa certa a contá-los.

-Annie? –pergunto quase sem voz, pigarreio e continuo mais alto: - Posso falar com você?

Annie meneou a cabeça positivamente e eu esperei, mas Will não se movimentou. Ela olhou para ele com certa impaciência e ele pareceu entender. Arregalou os olhos finalmente compreendendo as minhas palavras, por trás da frase direcionada a garota Mellark.

-Ah, sim. Eu vou indo na frente. –Will exclamou categoricamente e caminhou até a porta, fazendo um gesto para se despedir de mim. Acenei de volta e sai de frente a entrada, ele mandou um último olhar duvidoso para Annie e avançou para o corredor afora.

Annie sentou-se em uma das carteiras finais e me encarou, aguardando. Sua expressão demonstrava a sua curiosidade cautelosa. Será que ela já esperava por essa conversa? Era o que parecia.

-Hm... –sento na carteira de frente a dela. Como posso começar? “Pessoas estão morrendo, Annie, e eu queria saber se seus pais estão dispostos a investigar e impedir o caso antes de crescer e tornar-se uma anomalia horrenda de chacinas de pessoas inocentes como antigamente ocorria”. Não. Não era a melhor forma de iniciar uma conversa. –Ér...

-Está acontecendo alguma coisa, Alex?

Examino Annie que está com os olhos estreitados em minha direção. Ela aparenta querer me dissecar e provavelmente já notou algum ‘comportamento estranho’ em minha pessoa. Suspiro pesadamente antes de abaixar o olhar a fim de ela não perceber nada fora do rumo da conversa que estou tentando criar. Não importa sobre assuntos secundários, preciso dizer a ela o que está acontecendo.

-Não. –digo determinada com a voz mais firme que encontro. Então prossigo: - Olha, eu sei que pode ser difícil de acreditar nesses tempos, mas...

-Tem certeza? Você não parece bem nesses últimos dias.

Ótimo, é agora que não vou conseguir dizer a ela. Não estou com muita vontade de contar coisas desnecessárias a ela. Quer dizer, tudo isso não é importante, sobre o que ela está se interessando no momento. Não chega nem as sujeirinhas dos pés de um gigante se for comparar com os acontecimentos de mais assassinatos e desaparecimentos encobertos pelo véu do impossível.

-Eu estou bem, Annie. Eu preciso dizer algo muito importante para você, posso continuar? –ergo os olhos e visualizo o par intrigado dos seus. Eu não devia ter causado isso. Suspiro longamente, sem um pingo de ânimo ao confessar: – Está bem. Sim, eu tenho um problema.

-Eu sabia! –ela levanta da carteira e segura minhas mãos. –Se tiver algum problema, você sabe que pode contar para mim. Por que não veio antes?

Respiro profundamente. Problemas, problemas... Não. Vamos ver.

-Eu não pude. Olha, me escuta. Algo vem acontecendo, eu devia ter dito a você antes, mas não disse...

-Como assim? –me interrompeu, recuando alguns passos com a testa franzida. Era isso, deveria contar a ela agora? Será que era o momento certo? Poderia ser apenas algum engano, ou não?

-Annie, pessoas estão morr-

Um ruído me interrompe. Alguma coisa no corredor corre e cai com estrondo. Annie fica alerta e imediatamente dispara para a porta a fim de descobrir o que tinha acontecido. Os olhos se esbugalham com o que ela vê e imediatamente vira a cabeça para mim com um dos pés já fora da sala.

-Já volto, Alex, não saia daqui, quero continuar a conversa.

E então ela corre gritando o nome de Will com aflição. Fecho a cara e vou a curtos passos para a porta, enxergo vários cadernos espalhados a um pouco além de onde estou parada e um garoto ruivo encolhido em um canto, onde Annie estava agora ajoelhada ajudando-o. Alguém tinha ferido Will. Minha respiração fica pesada e meu coração acelera-se. Devia saber que tinha algo por trás disso tudo. Não podia ser mera coincidência. Estava tendo muitas coincidências para um dia só.

-Ora, ora, Alex... Você não sabe guardar segredos?

Passos. Passos no silêncio da sala. A voz seca e ríspida como um ralador aparece, ela era guturalmente gosmenta, como se saísse com dificuldade, e da mesma forma, presunçosa e inspirando certo ar de poderio inexistente. Atrás de mim, sei muito bem quem está aguardando.

Viro-me e encaro Tess; a sua fiel seguidora não está com ela, o que me faz recear. Por que decidira vir sozinha até mim? E por que dissera... Não. Acho que já sei as respostas.

-Alex, Alex... É feio contar às pessoas o que se escuta por aí... Fofocas, já ouviu falar disso? Não pode fazer coisas assim. –sua voz era como se estivesse repreendendo uma criança que acabou de colocar o dedo no fogo. Semicerrei os olhos para ela, Tess estava a somente alguns passos de distância de mim e podia perceber a sua confiança ao se dirigir a minha pessoa. Segurava algo nas mãos fechadas, mas não pude ver o que era.

-Como se você fosse entender alguma coisa. –disse entredentes. Abro um sorriso sarcástico antes de continuar: - Onde você estava nesses dias, Tess? Sumiu assim tão de repente...

Ela ri roucamente, olho de esguelha para ver se Annie escutou, mas ela parecia preocupada demais com Will para notar outra qualquer outra coisa. Volto-me para Tess que está sentando sobre uma das carteiras solitárias no canto da sala.

-Eu acho que você sabe muito bem onde eu estive. –suas palavras servem como uma confirmação que eu precisava. Mas ao mesmo tempo são como facas ameaçadoras apontando em meu coração. Tudo parece se ligar. Eu estava certa. Um estremecimento percorre meu corpo e minha garganta fica presa. Lembro-me do que eu escutei de algumas pessoas, dias atrás. “Tudo o que ele se lembra são de uma cor roxa tingindo uma serpente, sibilando a eles palavras de alerta, além de um permanente olho cruel e castanho vigilante.” Não sei quanto aos olhos, mas a descrição do roxo e da serpente já é o suficiente para reafirmar sua frase.

Não digo mais nada, porém, parece que Tess ainda tem muito a dizer.

-Você não quer ser a próxima, quer? –ela pergunta sádica. O tom chega a ser maníaco e eu recuo alguns passos, só para sentir algo metálico e frio pressionar minha garganta. Tento não engolir ou fazer algum movimento brusco. Não podia estar acontecendo isso de verdade. Simplesmente... não podia. –Sabe, não seria tão complicado de esconder um caso como o seu. Sem pais para defender... Sem muitas pessoas que a conhecem... Talvez nem precisássemos trazê-la de volta.

Escuto uma risada atrás de mim, mas não tenho coragem de me virar para ver quem é. Ainda sinto a pressão em minha pele e por isso não posso arriscar em fazer muita coisa. Tento ganhar tempo, olho com o canto do olho Annie mais uma vez e agora ela está olhando ao seu redor, desnorteada, mas parece sequer duvidar da nossa sala. Bom, às vezes é melhor assim.

-Por que você está fazendo isso, Tess?

A garota-serpente salta para o chão novamente.  Ela chega perto de mim e sorri para a pessoa atrás, com uma afeição que nunca pensei um dia poder ver. Quem era... ? Antes que completasse o raciocínio, seus olhos voltam-se para mim, as pupilas estreitas de um réptil me submetem a um medo irracional. Era a mesma coisa de eu ser um ratinho frágil e vulnerável mirando a própria cobra prestes a me abater. O que estava acontecendo? Não era para eu me sentir assim.

-Essa não é a pergunta certa, Alex. –ela diz um pouco desapontada. Quero poder me livrar da pessoa atrás de mim e golpeá-la tão forte para leva-la ao além e ao contrário do que pensava, não fico sem respostas. Não completamente. –Porém, já como perguntou; eu acho que está bem óbvia minha intenção, não está?

Não digo nada, continuo olhando-a friamente, tentando resistir a qualquer coisa que ela esteja tentando me colocar.

-Você escutou rumores que não eram para serem escutados. Tivemos um pequeno problema e infelizmente tivemos um deslize. E você sabe qual é... Nós temos certeza disso. Mas não se preocupe. Já nos livramos de nosso probleminha. –ela deu de ombros, despreocupada. –E eu vim até aqui porque sei que está tomando uma péssima decisão.

Ela não precisa dizer qual era. Dizer a Annie o que eu sei, dizer a ela o que está acontecendo. Era isso, não tinha dúvidas.

-Você não pode me impedir, víbora. Você não vai conseguir o que quer que esteja querendo.

Ela parece não ter gostado do que disse. Muito menos meu agressor atrás de mim. O cortante objeto me sufoca quase me fazendo engasgar e sinto um fio morno e escorregadio descer pelo meu peito. Abafo um arquejo e levanto o queixo, tentando esconder meu temor.

-Você não sabe no que está se metendo, Alex. –a fúria de Tess é quase palpável no ar. Ela ergue o braço e posso ver o que segura: um vidrinho. Um simples vidro transparente com um líquido quase translúcido, brilhando pela luz artificial da sala.

Ela abre a tampa e despeja uma gota no dedo, onde rapidamente aperta contra meu ferimento assim que a arma afasta-se de mim, e minha boca é coberta por uma mão larga e calejada. Posso sentir – alguns segundos depois – o líquido se infiltrar em minha corrente sanguínea; e é como veneno, como um fogo ardente que queima e inflama meu interior. Sinto vontade de gritar, fugir e me debater, mas não posso pelas mãos fortes e enormes do sujeito atrás de mim. A dor é tanta que me atordoa por um bom tempo, não escuto ou vejo nada pelo que se passa a minha volta e por esse instante é como se eu pudesse ver toda a minha energia esvaindo-se. Fico fraca e meus membros ficam pesados. Quero cair, dormir e nunca mais acordar, porém, a pressão opressora ainda arremata a área onde tudo começou, e quando ela se afasta, ainda sinto por um longo momento toda a dançante agonia que se passa aos poucos. Estou ofegante e meu coração bate forte e acelerado em minha caixa torácica. Minha visão lentamente volta escura a princípio, e recobro minha respiração ao normal. A primeira coisa que vejo é o sorriso malicioso de Tess e um nebuloso movimento dos braços ao guardar aquele vidrinho indefinido.

-Existe muitos mais de nós por aí, Alex. E isso foi só uma breve demonstração do que poderia acontecer a você, ou a alguém que ame muito, caso, sem querer, deixasse escapar o que já sabe. É claro que nada se compara a maravilhosa sensação dos gritos das pessoas que são forçadas a ter o conteúdo inteiro desse vidro dentro de si, mas é apenas uma sucinta demonstração como havia dito. Novos tempos estão para chegar, e eu não quero que ninguém interrompa. Muito menos você ou a “adorável” família Mellark. Nós sabemos de tudo e não pense que vai escapar. Aqui, é somente um que vence.

Escutava tudo confuso e distante. As mãos que me seguram soltam-me e desajeitada mantenho-me em pé, a dura custa, embora não seja por muito tempo e eu logo caia no chão com um estrépito abafado, meus joelhos dobrados desacomodados e as palmas apoiando meu tronco no chão, de lado. Posso novamente dizer algo, mas não tenho nada para falar. O chão me parece muito frio de repente, e o ar muito denso. Escuto o ruído do atrito de metal quando o sujeito escondido guarda o seu objeto em algum lugar que não consigo enxergar e ele vai até o lado de Tess que ainda me encara com o ódio fumegando de seus olhos e finalmente consigo vê-lo. Sua aparência me é familiar e tenho uma leve impressão de tê-lo visto anteriormente. Ele tem um porte grosseiro e largo, os cabelos negros como a noite sem estrelas e o olhar castanho tenebrosos. “...um permanente olho cruel e castanho vigilante.”. Outra coincidência?

O garoto sussurra algo no ouvido de Tess e ela assente. Ele sai por uma porta de trás em que nunca havia percebido ter antes e Tess o segue, mas não antes de me dar um último aviso:

-Você já tem o recado, Green. Não pense que vou poupá-la da próxima vez.

Eles saem e fico sozinha na sala. Sentindo a respiração acelerada sair apressadamente. Tento concentrar-me a me acalmar. Não. Aquilo havia realmente acontecido.

Algo muito grande estava para vir, e pelo jeito, eu tinha saído dessa por alguma razão. Eles não me eliminaram dessa vez, mas sei que tenho que tomar cuidado nas próximas vezes, isto é, se houver alguma, pois eu não estou nada ansiosa pelo próximo possível ‘encontro’. Ainda queria descobrir o que raios estava acontecendo, porém, não poderia meter Annie no meio. Não por enquanto. Seria horrível ter que ver o cadáver de pessoas conhecidas mais uma vez. E quanto a família dela... tinha um leve pressentimento de que poderia piorar ainda mais a situação deles.

Não. Eu tinha que reconsiderar minhas opções. Mudanças de planos. Enormes mudanças.

Lentamente posso me recobrar e me firmar aos meus pés novamente, a tontura me dominando. Abaixo a cabeça e vejo o meu ferimento no pescoço com um fio de um líquido avermelhado escorrendo pela minha pele. Não tenho tempo de examiná-lo melhor, pois vejo de esguelha Annie ajudando Will a pegar o último caderno do chão e a colocar o garoto de pé. Logo estariam aqui. Sinto a necessidade de esconder da melhor forma possível o meu ferimento não muito grave, e rapidamente eu limpo meu próprio sangue com o tecido da minha camiseta e fecho até o último botão de meu casaco, permitindo-me assim esconder o corte. Ainda não sei o que eles haviam colocado em mim para ter aquela sensação horrível de querer perder a própria vida do que ter que aguentar mais um minuto daquela dor inestimável, porém, tenho que pensar sobre isso mais tarde. E eu não posso desistir de maneira tão fácil deles.

Quando ergo novamente os olhos, vejo Annie esforçando-se para manter Will em pé sem machuca-lo muito. Ele grunhe e aperta a barriga com as mãos e embora diga que está tudo bem, posso notar que Annie acha extremamente o contrário. Quando pergunto o que aconteceu, Annie apenas responde que ele não viu nada antes de estar estatelado no chão ao receber um chute forte no estômago.

Esse ano não seria nem um pouco calmo.

-Alex, o que você queria me contar mais cedo? –Annie volta a pergunta quando saímos da escola, Will já anda normalmente, apesar das costumeiras reclamações pela pontada incomodante da dor ainda perceptível, eles, apesar disso, estão novamente com as mãos dadas.

Eu estava quieta desde quando saímos da sala. Annie dissera que iria ao hospital da sua avó, onde sua mãe estaria naquela tarde, com Will e por isso ela estava despedindo-se em frente à entrada do colégio. Eu não respondi nada por um momento, então sacudi a cabeça, dando um sorriso forçado.

-Nada, não é nada. –digo, levando uma mão ao meu pescoço sem perceber, disfarço brincando com o meu casaco e ainda sinto a leve ardência na pele, ignoro-a e prossigo antes que Annie pergunte mais coisas: - Tenho que ir, minha irmã está me esperando.  

Annie relutantemente assente e nós nos despedimos para finalmente eu seguir meu curso sem olhar para trás. Não quero encontrar o olhar de Annie que sei estar me acompanhando, tenho que agir naturalmente. Mas como? Como se não bastasse, além dos problemas iniciais ainda tenho a ameaça de Tess para retumbar em minha mente. Havia dito que teria um fim de semana inteiro para descansar? Posso esquecer isso. Agora não conseguiria mesmo dormir, me remoendo a essas dúvidas imprecisas.

Viro uma curva e continuo tentando achar o final dessa cansativa questão. Repasso mentalmente o que a Tess disse. Ela falara sobre um “probleminha”, e que já o tinha eliminado. O que era? Alguma traição? Alguma sabotagem?

Senti novamente as chamas dentro de mim e quase gritei com a sensação na lembrança. Mas pude contê-lo, sacudindo a cabeça violentamente. Não, não, não. Isso não poderia ser pior.

-Alex. –escuto uma voz entusiasmada ao meu lado, não paro de andar, continuo seguindo com a cabeça abaixada dizendo a mim mesma que ninguém tinha me chamado, que fora apenas uma impressão minha. Então uma mão me segurou pelo braço e parei no mesmo momento. Reconheço seu toque. –Ei, tudo bem?

Voltei-me e o vi. Exatamente quem pensava.

-Sean, oi.

Eu disse que não poderia ser pior? Acabou de piorar. Não que eu não gostasse de sua presença, quer dizer, eu o tinha acabado de conhecer. E por mais que não quisesse acabar com essa amizade mal começada, também não queria que ele estivesse aqui nesse momento. Tinha coisas demais para pensar, me preocupar ou me atormentar. Não precisaria de mais uma pessoa em apuros. Se Tess estivesse prestando atenção em mim agora, as pessoas que estivesse comigo também poderiam estar em maus lençóis. E eu não queria coloca-lo nisso. Ele parecia ser uma pessoa boa.

-Oi. –ele respondeu hesitante, o entusiasmo anterior desaparecendo de sua voz. Ele estreita os olhos enquanto me examina e desejo que ele pare com isso. Desejo fortemente porque uma sensação quente começou a fluir para meu rosto.

-Hm, o que você está fazendo aqui? Seu caminho também é esse? –tento desviar a sua atenção e ele me solta. Meu corpo relaxa sem ao menos ter percebido que ele estivera tenso. A expressão de Sean entristece.

-Não, eu estava esperando você. –a forma como ele fala era como se dissesse “isso não é obvio?” e me sinto mal por ter esquecido. Ele havia me pedido para estudar História com ele. Respiro profundamente três vezes para pensar no que deveria fazer. E então digo com um tom amenizado:

-Eu sinto muito, mas acho que não vai dar para nós estudarmos hoje.

Sean mexe a cabeça afirmativamente uma, duas, três, quatro vezes até parar e me olhar atentamente, depois sorri gentil e me esqueço de tudo o resto que me preocupa. Ele parece compreender minha resposta, o que eu pensava que ele faria era virar e sair andando para outro lado, ou se não começar a me xingar ou fazer alguma cara frustrada e zangada do tipo “você prometeu!” sendo que não havia dito nada. Ele era diferente, afinal de contas. 

-Está bem. Posso, pelo menos, acompanha-la até sua casa?  -ele pergunta após um tempo, amistoso. Fico surpresa, mas alegre ao mesmo tempo. Quero responder que sim, mas algum instinto protetor me faz dizer o contrário.

-Eu não acho uma boa ideia... –olho ao meu redor tentando procurar alguém, qualquer pessoa suspeita, mas não há um ser sequer passando por aquele lugar. Posso relaxar um pouco, mas não tanto. Ainda mantenho minha concentração ao meu redor, tomando cuidado para não pisar em falso e cair em um profundo abismo sem passagem de volta.

-Por favor? –a insistência dele me faz quase ceder, porém, tenho que me lembrar novamente o motivo pelo qual não daria certo ter ele por perto. Encontro uma leve movimentação perto da curva aonde virei, decido apressar as coisas e chegar a minha casa mais cedo. De qualquer maneira, Lyra deveria estar me esperando na porta da frente, não é muito sensato deixa-la impaciente.

-Não. –falo firmemente antes de dizer alguma bobagem, dou alguns passos a frente e coloco minha mão sobre seu ombro, numa forma efetiva para dizer-lhe calmamente de uma forma mais natural possível. – Combinamos outro dia, está bem?

Sorrio tranquilamente para animá-lo e o desvio, andando para minha casa tentando não olhá-lo novamente. Porém, é difícil quando a mesma pessoa começou a segui-la de uma maneira nada discreta. Talvez até espalhafatosa para chamar atenção.

Paro e puxo o ar para dentro de meus pulmões antes de virar-me novamente. Não gostaria de ter alguém nos meus calcanhares quando chegar até lá. Afinal, não queria que ele visse onde eu morava e muito menos tivesse que praticamente me perseguir só porque eu não queria que ele fosse de bom-grado ao meu lado.

-Escuta, houve algumas complicações hoje. Não poderei estudar com você esse fim de semana e eu sinto muitíssimo por isso. Sei que você deve estar desesperado para estudar história, não é? – perguntei sarcasticamente, não esperei pela sua resposta e prossegui: - Pode relaxar que vamos retomar a matéria na segunda, eu prometo. Agora, se me der licença, eu gostaria de ir para casa e descansar um pouco sem precisar ter a sensação de estar sendo seguida

Eu até esse momento estava encarando os meus pés. Não conseguiria olhá-lo nos olhos, sei muito bem disso. Mas assim que termino eu levanto minha cabeça e posso ver sua postura mudar. Ele cruza os braços e arranca uma expressão de desafio na face.

-Bom, eu não quero incomodá-la, mas eu insisto. –ele repete. Não é mais como um pedido e sim uma afirmação. Ele não iria embora. Embora fosse algo inevitável de impedir, ele não parecia agir de modo rude ou exageradamente orgulhoso, estava apenas um pouco modesto e educado. No entanto, qualquer maneira que fosse eu não me sentia muito agradável com isso. Ele estava brincando comigo, só podia ser.

Fechei os olhos, respirei fundo para me acalmar e finalmente arranjei uma decisão a tomar. Plantei meus pés no chão e imitei-o, cruzando os braços, levantei o queixo e semicerrei os olhos para ele.

-Então ficaremos aqui a tarde toda. –anunciei minha escolha, ele levantou uma sobrancelha, admirado e deu de ombros. Não pareceu mudar de ideia, muito menos se aborrecer; como eu de fato queria que houvesse acontecido.

Passaram-se dez minutos, e ele continuou lá. Imóvel. Por favor, alguém me diga quem raios consegue fazer aquilo? Eu já tinha mudado minha posição umas quinze vezes, enquanto ele continuava da mesma forma que havia parado ao implicar comigo. Talvez seja hora de correr e despistá-lo, mas olhando por outro lado eu não conseguiria passar muito à frente devido a estatura dele e as pernas longas que poderiam me ultrapassar em segundos.  

Mas. Que. Coisa. Raios.

Já podia escutar minha irmãzinha gritando comigo. Por ter chegado tarde em casa. Céus, céus, céus. O que eu faço? Ela odeia quando eu a deixo sozinha por tempos razoavelmente “demorados” (ou seja, se eu demorasse mais que cinco minutos após a aula). Uma vez ela fugiu de casa para me procurar, e não foi nada emocionante tentar encontra-la de volta sendo que ela considerou tudo aquilo como uma brincadeira de pique-esconde.

Meus pés já batiam impacientemente no chão, e eu estava quase explodindo no mesmo lugar. Eu estava completamente arruinada. Ele vencera. E acho que já devia saber disso da forma que me olhava vitorioso.

-Está bem. Só hoje, ok? Mas infelizmente – dou uma tossida falsa, interrompendo minha fala – vamos ter que estudar outro dia.

-Está certo. –ele abriu um radiante sorriso mostrando os dentes. Ele parecia empolgado e triunfante, como se houvesse vencido algo importante e não apenas a minha confirmação de me acompanhar. Ele nem me conhece. Como isso...?

Volto a andar normalmente e ele me alcança depois de um tempo ainda parado no mesmo lugar. Talvez ele tenha realmente ficado grudado ali e tivera que se soltar sobrenaturalmente; esquece. Ficamos em silêncio por um instante até que ele começa fala:

-O que aconteceria se existisse uma segunda dimensão onde Panem nunca havia sido inventada?

Quase estanquei no mesmo lugar. Girei a cabeça para encará-lo a fim de notar alguma nota sarcástica em seu tom de voz ou em sua expressão, mas ele parecia incrivelmente sério. Desviei meu olhar quando ele tentou se encontrar com o meu.

-Como assim?

-E se existisse uma segunda Panem que nós desconhecemos? Sabe, como aquele livro ‘Lugar Nenhum’²? Do Neil Gaiman², ou você não conhece? Eu encontrei nas coisas da minha tataravó. Em algum momento antigamente havia uma cidade chamada Londres, na Inglaterra (lembra-se da Inglaterra que nós estudamos?). E lá tinha a Londres de Cima e a Londres de Baixo. –ele encolheu os ombros e estreitou os olhos, repensando no que dissera. 

-Como duas realidades? –me interesso instantaneamente com o que ele diz, repentinamente virando a cabeça para encará-lo. Certamente devo estar agindo como uma criança ao ver um doce em suas mãos, mas não me importo.

-Não exatamente. –ele retorceu a boca, procurando a palavra certa. –É como se nunca existisse para nós, mas ela está lá. Hãm, é, talvez seja duas realidades, de certa forma. E tudo o que há por lá é inteiramente confuso, diferente e exultante, e também macabro. Sei lá, deveria ser empolgante uma Panem de uma maneira como aquela. Talvez. Ou pode ser aterrorizantemente pior. O que você acha?

Acenei com a cabeça lentamente, entendendo aos poucos.

-O que eu acho... –murmuro, repetindo suas palavras. Franzo a testa, pela primeira vez sem ter uma resposta. 

Sean começa a rir, fico desnorteada por um segundo até notar que o motivo de sua risada sou eu. Levanto a cabeça e arremeto minha bolsa para cima dele, fazendo-o cambalear, porém, ainda gargalhando.

-Ei, sabe o que eu acho? Que lá eu não precisaria explicar História para pessoas como você.

-É, talvez você realmente não precise. –ele afirmou, pigarreando. –Ao invés disso, você poderia estar sendo puxada por uma coisa que vive entre os vãos entre a plataforma e o trem. Tentáculos que o levam para a completa escuridão desconhecida... Qual você prefere?

O tom de voz uniforme e trêmulo, como se estivesse contando uma história de terror, e a mudança repentina para a normalidade me faz rir sem perceber. Contenho-a e digo complacente:

-Acho que prefiro os tentáculos.

Ele faz uma mesura exagerada e responde de modo cortês e humorístico:

-Além de bela é honesta, admiro sua sinceridade.

Reviro os olhos e sufoco outra risada teimosa prestes a escapar de minha garganta, aperto o passo e ele não parece se irritar com isso.

-Ao seu dispor, Sean. –prestativa, dou-lhe outra bolsada que o afasta um pouco de mim. Olho-o de esguelha para ver sua reação mas tenho que me preocupar em equilibrar-me novamente nos meus pés quando ele me empurra de leve. Não esperava por essa.

Sabe quando se passam quinze minutos de caminhada, mas o que parece a você é que apenas passaram-se quinze segundos? É exatamente o que acontece. Eu não me lembrava mais do que me preocupava mais cedo, e parei de investigar ao meu redor a procura de quem quer que seja.

Chegando a minha casa, como de previsto, posso ver a face de Lyra comprimida contra a janela da frente, o rosto amassado por elas estar pressionando-o contra o vidro, ansiosa. Assim que me vê, ela esbugalha os olhos e desaparece da minha visão, a cortina balançando enquanto enxergo as pernas dela se remexendo de ponta cabeça, tentando voltar no lado certo para andar. Ela caiu. Balanço a cabeça e sem poder explicar para Sean sobre minha irmã, a própria escancara a porta e corre para mim, abraçando-me com força, possessiva.

-Eu disse para não se atrasar! Por que você se atrasou? Você poderia ter me avisado! Eu fiquei preocupada! Esse já é o segundo dia seguido, e se amanhã você não voltar? –sua vozinha fina e ingênua grita, abafada pelo tecido de minha roupa, as palavras desesperadas quase indetectáveis.

-Lyra, Lyra, calma! Eu não vou desaparecer. –afago seus cabelos, tirando-os dos olhos que agora me fitam rigorosos. Sorrio serenamente e ela retribui; mais calma. Depois de ter esquecido o ocorrido anteriormente, a lembrança finalmente volta à tona, a afiada arma na minha garganta, o fio de sangue escorrendo sem rancor pela minha pele e aquele licor agonizante no qual me afligiram. Não devia fazer promessas precipitadas, porém, também, não poderia começar a desistir facilmente e já perder as esperanças de descobrir o que tudo aquilo significava.

-Você promete que vai voltar mais cedo na próxima vez? –ela pergunta, afastando-se relutantemente, hesito um pouco. Como poderei saber o que vai acontecer na próxima vez? Tentando não aparentar indecisão, eu respondo o mais rápido que posso:

-Vou tentar, pequenina.

Ela parece não gostar muito da resposta, e faz um bico enorme para mim. Porém, ela não tem tempo de retrucar, pois Sean finalmente se pronuncia.

-Desculpe, acho que foi minha culpa o atraso.

Volto-me para ele, que está agachado ao meu lado. A altura agora bate certinho com a da minha pequena irmã. Ela esconde-se atrás da minha perna, acanhada, e Sean sorri timidamente.

-Eu sou Sean, é um prazer conhece-la. –ele estende a mão e Lyra levanta a cabeça para me olhar em busca de segurança, aceno positivamente para ela dizendo-lhe estar tudo bem, então ela aproxima-se e segura a mão dele, que praticamente encobre e esconde a sua quando fazem o cumprimento.

-Lyra. –responde, inclinando a cabeça levemente para o lado. –Quem é você?

Sean para de sacudir a mão dos dois, mas mantêm a dela presa na sua quando diz:

-Um amigo. –ele lança um olhar para mim, fugaz e quase imperceptível. –E você, se me concede a pergunta, quem é?

Lyra ri com a formalidade impregnada na frase do “amigo”.

-Eu sou ‘a irmã’. –sorri orgulhosa e volta ao meu lado quando Sean livra sua mão da dele. Ele levanta-se vagarosamente ainda com os olhos fixos nos dela, o sorriso maravilhado no rosto. Minha irmã parece estar radiante, novamente espontânea e excêntrica. Mas agora, o olhar dela está brilhante, e quase nunca o vejo assim. –Por que você veio até aqui?

-Eu vim trazer sua irmã em segurança ao seu – ele olha para o lado, observando nossa casa e depois volta o olhar para minha irmã, com um tom sério. –castelo. Muitos perigos estão espalhados por aí, você não acha?

Lyra meneia a cabeça com veemência, empolgada. Fico impressionada pela reação dela, e pelo jeito dele. Mas continuo calada esperando para ver o que acontece. Rodeio o lugar vorazmente com meus olhos, mas nada parece estar diferente. Tenho que parar de ficar tão preocupada, eles não iriam ser tão malucos assim, seriam?

Não prestei atenção ao que eles estavam falando, e quando vejo, Sean está rindo e Lyra desgarra de minha mão, segurando a dele como um brinquedo perdido finalmente encontrado, fico surpresa. Será que perdi muita coisa?

-Eu vou te mostrar um dos meus desenhos! –e ela começa a empurrar Sean para a porta de casa, por um instante, fico atenta, porém rapidamente me tranquilizo e fico impressionantemente calma.

Sean, no entanto, finca os pés no chão e Lyra reclama, protestando.

-Sinto muito, Lyra, mas não acho que eu deveria. Sua irmã pode não gostar tanto dessa proposta. –ele fala com um tom desanimado, entristecido. E enfim eu descubro. Esse é o seu plano... Mas ele não parece estar armando alguma coisa, ou mesmo ‘usando’ minha irmã como forma de conseguir o que quer. Ele estava... normal. Como sempre.

Lyra gira a cabeça bruscamente, olhando-me melancólica.

-É claro que ela vai gostar! –seu tom sobe e desce mais ameno na pergunta incerta: – Não vai?  

Vejo que ambos estão concentrados em mim. Lyra está com os olhos marejados, suplicantes, e Sean está esperançoso, como um cão a espera da carne. Respiro fundo, estabilizando minha respiração, meus batimentos cardíacos e meus pensamentos. Pode ser que não fosse tão ruim assim tê-lo por perto. Lyra parecia mais entusiasmada por ter alguém diferente para passar o tempo, e eu posso me esquecer sobre o que me preocupa por tempos preciosos em que sei precisar. Percebendo a necessidade de minha resposta, eu solto:

-Vou. Eu vou sim.

A expressão daquele garoto parece transformar-se, e quase posso ver a felicidade abstrata em pessoa a minha frente. Minha irmã solta uma gargalhada animada e eu sigo os dois para dentro de casa. Quando estou ao seu lado, esperando minha irmã trazer os desenhos dela, ele pergunta:

-Então, você pode me explicar História esse fim de semana?

Ao longe, no quarto de minha irmã, ouvimos o grito vencedor de Lyra quando ela anuncia “Achei!” ao encontrar o desenho desejado. Ainda não acredito no que respondi, mas antes que possa pensar a respeito com mais cautela, escuto minha própria voz responder:

-Está bem, vou explicar a você.

Minha irmã chega com os bracinhos repletos de papéis, e entre o ombro e o ouvido, preso, um telefone quase caindo.

-Mana, é pra você. –diz, indicando o telefone desajeitadamente.

Pego o aparelho e me afasto dos dois, apreensiva. Nós nunca recebemos ligações, a não ser se esteja ligado ao trabalho de minha mãe, mas isso é tão raro que só acontece quando ela mesma está aqui. O que não é o caso. Sean deve ter notado algo pois olha para mim com dúvida refletida em seus olhos.

-Sim? –escuto um ruído, a ligação logo para de chiar e uma voz distante é escutada:

-Oh sim, olá. É Alex quem fala? –a grave e retumbante voz ressoa pelo aparelho, afasto-me um pouco mais dos dois e fico perto da porta da frente, momentaneamente olhando para os dois.

-Sim, quem é?

-Você é filha de Ingrid Green? –não recebo minha resposta. Por isso, pergunto mais uma vez.

-Sou. Quem é?

Cada vez mais que o tempo se passava, eu ficava mais receosa. Aquilo não parecia bem. Não parecia ser uma notícia boa. Nada boa. Eu nunca recebi uma ligação sequer do serviço de minha mãe tão subitamente quanto agora. Mas se fosse algo extremamente sério, eles viriam a minha porta. Não é? Ou assim eu esperava.

Alguém limpa a garganta do outro lado da linha.

-Certo, Alex. Eu lamento muito, mas aconteceu algo...

-Quem é?! –o corto insistente. A pessoa aparenta estar com a voz trêmula, temerosa. Por que não me diz logo quem fala? Uma longa pausa se estende na linha e penso que desligaram. –Alô?

-Aqui é Duncan Manson, eu trabalho com a sua mãe. Ou trabalhava, pelo menos... –pausa.

-Trabalhava? O que você quer dizer com isso?

Ele não me responde de imediato. Escuto burburinhos ao fundo, como uma discussão. Duncan fala alguma coisa incompreensível para mim a alguém, e quando responde para mim, eu desejava que ele ainda tivesse uma longa conversa com o sujeito no qual conversava anteriormente.

-Aconteceu um acidente aqui e...

-O que aconteceu? –eu respondo, apressando-o, um pouco mais ríspida do que pensava e não reconheço minha voz a primeira vez que ela sai.

-Sinto muito. Mas... –um suspiro faz um chiado chegar aos meus ouvidos. –A sua mãe... Ela... ela faleceu. Ninguém sabe como, mas a área onde ela trabalhava...

Não escuto muita coisa do que vem em seguida. Olho para o lado, pelo canto do olho, Lyra está rindo com Sean, minha irmã sem ter noção alguma do que eu acabei de ouvir. Sean encontra meu olhar e o sorriso esvai-se de seu rosto rapidamente. Lyra fala alguma coisa para ele, e ele volta a olhá-la, sorrindo, porém, com menos vigor.

Fico de costas para os dois e sinto uma gota salgada e ligeira escapar de meus olhos. Eu estava chorando? Eu mal via minha mãe. Eu mal a conhecia, de verdade. Então por que chorava? Então outra pergunta sobressaiu: Por que eles não vieram até aqui me contar? Por que me contaram por telefone?

Escuto meu nome ser chamado repetidamente e percebo que vem do telefone ainda em minhas mãos.

-Desculpe. Sim?

-Como eu dissera, todo o lugar está completamente irreconhecível, nada pôde ser salvado. Porém, havia uma única coisa, digamos, limpa em meio a toda a devastação. E ela estava sobre o corpo de sua mãe. Nós pensamos que... que talvez você saiba sobre o porquê fizeram isso. Talvez seja algo relacionado, eu... nós não sabemos. Mas... enviamos a você o que havia sobre o corpo de Ingrid. Será que... você tem alguma ideia do que poderia ter ocorrido?

Ele disse rápido e resumido. Notei a hesitação em mencionar o nome de minha mãe, e o anseio em saber sobre essa tal coisa.  Mandaram a mim? Não respondi, mas fui até a porta. Abri apenas uma fresta, mas não tinha ninguém por perto. Abri a boca para dizer-lhe que não haviam entregado nada quando olhei para baixo.

Ali, pousado no chão, destacava-se uma forma familiar. Uma delicada e elegante rosa branca. Parecia intocada, quase de plástico, completamente bem cuidada. Abaixei-me e peguei com a ponta dos dedos aquela flor. Girei-a em minha palma até para-la em certo ponto. Minhas mãos tremiam.

Dentro de uma das pétalas brancas e extravagantes, havia uma cor contrastando toda a monótona cor. Um tom avermelhado, reconhecível. A cor do sangue.

-Alex? –ouvi-o novamente. –Você encontrou?

-Sim. –respondi, saindo de meus devaneios. Levantei-me e fechei a porta, cerrei minha mão com a rosa na palma, pude sentir a delicada forma quebrantando-se em meu contato, não liguei. Fui até perto da sala onde Lyra estava agora dançando uma música com Sean, não tinha percebido que tocava um ritmo leve e harmonioso no fundo. Sorri tristemente para os dois. Eu precisava deles. Precisava mais do que pensava.

Estiquei minha mão e abri a janela perto da porta, olhando para fora enquanto esparramava as pétalas arrancadas e despedaçadas na frente, sei muito bem o que estava acontecendo. As palavras de Tess voltaram a minha cabeça. Ela havia eliminado a traidora. A traidora. Mais uma coincidência? Estava farta disso. Depois de limpar minha mão em minha calça e fechar a janela, olhando novamente para a minha irmã cantando junto com a música e para o garoto levantando-a do chão, dei minha resposta final:

-E antes que pergunte, não. Eu não tenho nenhuma ideia do que pôde ter ocorrido.

***

Pov. Annie.

Quando você tem uma perna quebrada e um garoto incrivelmente irritante para aturar, você fica meio desequilibrada e pensa consigo mesma: “o que eu fiz de errado para merecer isso?”. Mas conforme o tempo passa você acaba se acostumando e as coisas que você reclamava anteriormente passam a serem meras lembranças destrutivas que podem servir para aborrecê-la ainda mais. As pessoas dizem que tudo ‘melhora’ assim ao se acostumar. Porém não é exatamente isso que ocorre. É mais como um ‘aprendizado’ para superar e carregar esses fartos inevitáveis e impossíveis de repousar no solo e finalmente se afastar.

Pude tirar todos aqueles cuidados medicinais inegavelmente incomodantes da minha avó em minha perna dias antes do planejado inicialmente. Aquilo estava realmente funcionando, digo, aquele processo de reconsideração das técnicas de medicina que decidiram começar a se inteirar, empenhando-se em desenvolver formas novas e diferenciadas. Minha avó dissera que eu fora a primeira “cobaia” deles. Sem informarem a mim, apesar de minha avó ter dito completamente o contrário para o resto do pessoal. Bom, pelo menos eu não acabei me desintegrando a partir de minhas falanges do pé até o meu crânio. Não é? Veremos em breve.

O fim de semana chegou a ser quase miserável. Passaram-se como um piscar de olhos. Em um momento eu estava com Fynn e Will na casa de Agatha, onde ela praticamente estava tendo a criança do tempo decorrido. Estavam todos tensos e ansiosos, nervosamente apressando a sanidade mental para quando o bebê chegasse. Eu e Will ajudamos a pintar o quarto do novo membro da família, enquanto meu pai e Gale faziam os móveis e Fynn desenhava alguma coisa para depois decorar as paredes. Minha mãe conversava sobre algo indefinido com Agatha, nunca cheguei a perguntar o quê. Ficamos basicamente o dia inteiro naquele recinto e quando saí, eu estava coberta da cabeça aos pés de tinta amarela, laranja, azul e verde. Chloe, a qual chegou mais tarde, rapidamente levou uma bela escorregada em uma das tintas espalhadas pelo quarto semiacabado, meu irmão, como um claro cavalheiro que é – caham – a ajudou deixando-a cair em um quadrículo repleto de água no canto da sala, onde serviria para nos limparmos antes de sair para os outros cômodos da casa. E meio que... Criou um pequeno tsunami pessoal para os meus ‘tios’. Foi um dia recreativo. Particularmente, eu tenho certeza que nunca esquecerei.

E depois, chegou segunda e novamente a rotina de acordar cedo para a tortura matinal. De sempre.

Para variar um pouco toda aquela normalidade, Fynn estava pulando de felicidade, enquanto eu me rastejava pelo chão. Não no sentido literal da palavra.

Meu tênis deveria estar rasgado, raspado, sujo e gosmento de quanto acariciava o solo pedregoso em constantes passadas demoradas. Não me importava, de verdade. Poderia transformá-lo em frangalhos até não restar nada mais, nada menos, do que meros tecidos inúteis que continuaria inflexível.

Aquele dia não havia sido um dos melhores. Principalmente quando eu sentia que havia algo com meu cachorro.

Isso, meu cachorro. Ele estava agindo estranhamente estranho. (Sim, estranhamente estranho). Anda comendo mais raramente, dorme o dia inteiro (não deveria me preocupar muito com isso, mas é notável a diferença de como era e como está agora), está mais fraco e parece frágil ao coloca-lo em meus braços.

Flashback on.

Acariciei o topo da cabeça de Haymi, agradecida por ele estar ali. Enterrei meus dedos nas cascatas dos seus pelos e sorri. Há quanto tempo tinha aquele cachorro? Era incrível ele ter ficado na nossa família há tanto tempo.

Ele balançou o rabo algumas vezes, uma, duas, e então parou. Parecia exausto e sua respiração estava lenta. Fiquei preocupada com ele; Haymi sempre se empolgava quando nós dávamos atenção a ele. Levantava a cabeça, latia, batia o rabo com veemência ou apenas mexia a orelha quando escutava nossas vozes. 

Mas agora ele não fazia toda aquela “festa”. 

Franzi a testa e deslizei minha mão pelas suas costas e voltei a cabeça. Tirei a cortina densa e espessa de pelos de frente de seu rosto para conseguir enxerga-lo. Estava com os olhos fechados, gania baixinho e o focinho estava inquieto, como se tivesse um pesadelo. 

Passei o dedo pelo canto dos seus olhos e notei a trilha lacrimosa no meu toque. Afastei minha mão com medo de acorda-lo. Ele andara chorando.

-Ele está velhinho, huh? -escutei Fynn atrás de mim. Virei a cabeça e observei-o se agachar ao meu lado, estendendo a mão para pousar nas costas do nosso companheiro de meia idade. 

Assenti com a cabeça enquanto o examinava. Ele parecia abalado, melancólico e equivocado. Parecia ter algo o incomodando, e eu tinha certeza de ser sobre Haymi. 

-O que aconteceu, Fynn? 

Meu irmão suspirou pesaroso. Pareceu hesitar em responder, como se as palavras pesassem e doessem ao serem pronunciadas.

-Mamãe disse que ele pode não aguentar por muito mais tempo. - devido a minha expressão confusa, ele explicou: - Os sinais de velhice já apareceram, papai disse que os movimentos de Haymi não estão mais os mesmos, acho que você já deve ter percebido também, e as doenças que humanos obtêm-se quando a idade vem se aplica aos cachorros da mesma forma... Ele já sente algumas dores ao se esforçar e se o fato de ele se sentir sozinho não ajuda muito a ele melhorar. Se ele pudesse ter um companheiro... Bom, poderia ser outra coisa.

Não conseguia dizer nada. Não conseguia aceitar perder Haymi. Tínhamos esse cachorro desde pequenos, ele praticamente cresceu conosco! E ele poder ir embora dali pouco tempo... Não conseguia absorver aquela verdade.

Sabia, apesar disso, que era pior para o meu irmão. Afinal, o preferido entre nós de Haymi era de longe Fynn. Aquele louro não passava um dia sem conversar com o cachorro ou lhe dar algum agrado. Eram como uma dupla inseparável de homem a animal. Ele o havia ganhado quando menor e eles sim tinham evoluído juntos.

O que eu poderia fazer para mantê-lo conosco por mais tempo?

Flashback off.

-Annie? –Fynn me sacode e noto que já estou na frente do prédio onde deveria deixa-lo. –Tem certeza que posso ir...?

Livro meus ombros das suas mãos e bufo com desdém. Eu sou o quê, por acaso? Seu cachorrinho... Não... Haymi... Certo, não pense desse jeito. Fynn não está tão abalado assim, portanto, não devo transpassar mais preocupação para ele, sendo que o próprio está tentando contê-la para não causar desespero e pânico geral. Tenho que manter minha postura de irmã mais velha.

-Pode, pode. –assinto com a cabeça, decidida. Ele continua por quinze segundos me encarando, desconfiado, por fim decidindo confiar em minhas palavras. Ele se vai, e eu volto ao meu caminho.

É meio atordoante a realidade quando você tem tanta coisa na cabeça. Os pensamentos giram em sua consciência mórbida e mal faz você perceber no que se passa ao seu redor. Alex não apareceu antes da aula, o que achei suspeito; ela agira de modo convenientemente exótico na última vez que nos vimos. Ela parecia saber de algo, sua própria maneira denunciava isso. Tentei vê-la no fim de semana, mas ela aparentara estar preocupada com algum grupo de estudos. Ou será que devo dizer dupla de estudos? Não sei, mas o “grupo” não parecia ser muito grande. Não entrei em detalhes, não queria ser curiosa mais do necessário. E já fora muito.

Quando entramos na sala, Alex ainda não estava lá. Só após um segundo antes do professor entrar que a garota foi se esgueirar por trás dele e rolar até a sua carteira. Sinceramente não sei como ela ainda consegue viver sem detenções, era como se tivesse algum tipo de dom natural.

O que notei primeiro foi: uma gaiola. Uma pequena gaiola, uma caixa retangular, de tamanho razoável – cabia perfeitamente em minha mochila – com grades grossas e uma fina rede segura o bastante para que nem mesmo Ares pudesse arrancá-la dali, e muito menos uma mosca minúscula entrar naquela área fortemente protegida. Por acaso ela estava trazendo algum tipo de espécime modificado cientificamente e altamente prejudicial? Porque do jeito que estava, era bem o parecido.

A segunda coisa foi: Alex voltou ao normal.

Não era algo que era difícil se perceber. O cabelo despenteado de sempre, o jeito desleixado e o sorriso maroto e inconfundível, ima de confusões. Brilhando com toda aquela diplomacia desorganizada e devidamente cuidada novamente reluzindo como um sol ao seu ápice, daqui a pouco teria que usar óculos de sol para o sorriso dela não me cegar. Ela estava, definitivamente, renovada e mais alegre, como se nada houvesse acontecido – o que quer que tenha acontecido.

Cam e Melanie perceberam de imediato. Will demorou-se mais um pouco devido a tê-la conhecido por pouco tempo, bem menos tempo que todos nós. Ignorando as falas da professora, Cam voltou-se a ela, um sorriso deslumbrado no rosto.

-Alex, voltou de alguma realidade paralela, ou em uma específica onde se encontrou com seu daemon* (N/A: *A Bússola de Ouro – Fronteiras do Universo.)? Que animal que a representa, Alex? Deve ser algum bem interessante.

Melanie lança um olhar de repreensão para ele, que fica instantaneamente com as feições sérias e culpadas. O riso esvai-se e ele completa:

-Sinto muito. Não quis dizer essas palavras irracionais e incoerentes.

Vejo Melanie menear a cabeça positivamente em forma de aprovação. Suspiro e não me importo com o professor facilmente zangado. Alex continua com o sorriso no rosto, inabalável. A chama que se acendera no seu olhar parecia a mesma de antes, algo que sentia falta. Será que Alex estava voltando dos mortos-vivos?

Embora eu ainda veja por trás desse sorriso uma dor profunda e intensa. Fynn me ensinou a “arte das suposições”, e também me ajudou bastante a decifrar as pessoas de uma perspectiva diferente. E parece que eu finalmente estou colocando em uso o que aprendi. Escondida na superfície radiante da minha amiga, algo ainda a perturbava. Supunha que ela usava essa máscara para disfarçar a si mesma suas aflições. Eu supunha.

-Ei, o que você tem aí? –escuto Will murmurar para ela na segunda aula, quando no intervalo breve Alex bota uma luva na mão e retira uma grande e gorda barata morta da mochila, colocando-a com a menor delicadeza dentro daquela gaiola depressa, logo em seguida fechando a pequena porta com um estalo.

-Um escorpião. –diz naturalmente, como se dissesse de seu almoço do dia anterior. Ou de uma tartaruga recém-presenteada.

-Um escorpião?! –Melanie exclama subitamente intrigada. –O que você veio fazer com um escorpião na escola?

Estudo-a minunciosamente, estreitando meus olhos para enxergar melhor. Posso notar um leve movimento com seus olhos quando ela lança de esguelha um olhar para cima de Tess, a qual está calmamente limpando sujeiras inexistentes debaixo das unhas impecavelmente feitas.

-Nada. Corpcious quis passear. –responde encarando fixamente seu escorpião de estimação dentro da sua área isolada. Todos nós nos reclinamos na carteira para encarar o bicho, que estava surpreendentemente e empolgantemente parado, sem movimentar uma pata sequer. O professor, a essa altura, já está lá na frente, arrumando sua pasta em uma mesa larga e dizendo algo que eu sinceramente não estou interessada em saber.

-Ele tá vivo? –Melanie sussurra alto o suficiente para todos escutarmos – e provavelmente para que o resto da sala tenha ouvido –, escutamos um silêncio profundo e finalmente notamos o que estava diferente; o professor parara de falar. Ele agora fixava seu olhar em nós cinco, inquisidor e maléfico, provavelmente indagando formas horripilantes de nos punir por ter interrompido sua querida aula.

Ele pigarreia roucamente, piorando ainda mais sua deficiência nasal. Ele aproxima-se com passos duros e oprimentes enquanto nós lentamente recuamos conforme sua proximidade fica cada vez menor. Como um átomo repelido por outro átomo da mesma carga.

O professor para. Seu olhar frívolo e inexpressivo pousado em Alex, com a postura ereta, sem demonstrar intimidação. O professor era alto e esquelético, e me fazia lembrar um esqueleto problemático fantasmagórico que assombrava o colégio. A cabeça era lisa como uma superfície de um vidro e reluzente como uma bola de cristal, eu imaginava se ele polia a sua careca toda manhã para aparecer aqui na escola.

-Srta. Green? Quer mostrar algo para a sala?  

Podia quase escutar os pensamentos de Alex, algo como “por que não estou impressionada por ele chamar minha atenção e não a deles? Ah é, os professores me odeiam”.

Alex, no entanto, dá de ombros. O rosto do professor adquiriu uma coloração intensa da vermelhidão do sangue subindo pela sua face. Podia apostar que todo o sangue do corpo havia ido a cabeça, e que ele cairia morto naquele mesmo instante.

-Algo que não tolero, Srta. Green, são brincadeiras. Principalmente, Srta. Green, em minha sala de aula. –sua voz pausada e cansativa pronunciou com uma extrema lerdeza superativa.

Torcia com todas as forças que Alex não o respondesse e mostrasse logo o maldito bicho para ele. Mas bem... Querer que algo aconteça infelizmente não é algo que vai realmente acontecer. Ela tosse falsamente. Preparo-me para a explosão desnecessária.

-Bem, bondoso ve... professor. Já como insiste, por que você não conhece o Corpcious? –indaga humildemente. A voz doce e gentil poderia facilmente me deixar desconfiada, mas o coitado do professor novo não parece reconhecer o tom de seu timbre.

Responde não. Responde não.

-Corpcious?

-Sim, sim. –ela abre a pequena porta e enfia a cara lá dentro. Encolho-me na carteira nada entusiasmada para presenciar o final daquele dia. –Shhhh, garoto. Vem cá. –cantarola para o seu animal, o professor curva-se para tentar enxergar o escorpião, porém, é ume esforço inútil por causa da mão de Alex que envolve o bicho para escondê-lo do próprio “esqueleto”.

Minha amiga ergue a cabeça, com o olhar de pura inocência estampado no rosto. Era como se preservasse – de alguma forma débil – a sua imagem com ele, uma imagem já completamente destruída. Talvez fosse um ritual, ou uma maneira de demonstrar que ela não era tão ruim assim, o professor, porém estava ansioso e curioso demais para prestar atenção nela. Podia vislumbrar a sua mãozinha agarrando o ombro de Alex e expulsando-a da sala para ir direto à diretoria. Era o que ele mais fazia, desde o ano passado.

-Estique sua mão. –ela ordena autoritária. O professor hesita por um instante, encarando-a de sobrancelhas arqueadas e por fim faz o que ela mandou. Alex deposita calmamente e com cautela o seu escorpião, tomando os devidos procedimentos para que nosso professor não o visse até o momento esperado.

-O que raios... –ele começa e estanca. Alex tirara a mão a qual pairava sobre Corpcious, agora totalmente exposto. O professor olha e imediatamente se transporta para um mundo só dele e do escorpião a sua mão. O rosto fica sem cor, como se todo o oxigênio fugisse de seus pulmões ele arfa, resfolga e na tentativa de puxar ar para dentro acaba engasgando. Toda a sala mantem um silêncio absurdamente tenebroso, suspeito, e acabo descobrindo depois que eles estão na mesma situação que o próprio, hipnotizados por aquele bicho geralmente perigoso e taxado como o centro das mortes dos últimos tempos.

-A-a-a-a... –o professor gagueja; o queixo estava tremendo tanto que o seu maxilar poderia se desprender do seu crânio, e os olhos estavam tão saltados que era possível enxergar cada detalhe dele. Depois de um minuto petrificado ele faz a coisa que eu menos esperava: ele corre.

O professor corria pela sala, berrando com uma voz fina, esganiçada e exagerada completamente exasperado, ele tombava, batia, esbarrava e atirava as carteiras para longe em seu surto, todos os alunos saíram de seus lugares e afastavam-se com uma expressão surpresa e assustada. Todos nós pensávamos que aquele cara, que se retorcia e agitava os braços para cima e para baixo, como se para espantar algum tipo de espírito maléfico ou como se tivesse um ataque epilético, não tinha medo de nada. Que ele era imbatível e impassível, totalmente inquebrável. Porém, agora, ele mostrava-se definitivamente o contrário.

E subitamente, o professor para, fixa os olhos desfocados em nós e desaba no chão, totalmente desacordado. Ele desmaiou. Simplesmente.

Cam, Will, Melanie e eu estávamos embasbacados, sem conseguir pronunciar uma palavra. As outras pessoas na sala murmuravam incansavelmente, desnorteados, sem saber o que poder fazer – ou se por acaso deveriam fazer algo. Alex levanta-se apressada da carteira alarmada, prestativa ela corre até o professor. Mas ao invés do que eu pensaria que ela gritaria, todas as palavras ditas determinadas por ela com uma aflição evidente foi:

-Corpcious!

Ela agacha-se a frente do corpo inconsciente do professor e o vira brutalmente, insensível, para fora de seu caminho, deixando um baque surdo atingir nossos ouvidos causado pelo corpo pesado estrondosamente jogado ao lado.

-Alex. –balanço a cabeça indo até ela lentamente. Ela não se mexe muito, apenas curva-se para frente e segura algo em suas mãos. Paro de pé atrás dela e espero, aguardando-a se levantar ou dizer algo inconveniente como sempre faz. Mas ela fica ali, sem fazer nada. Alex leva a mão até o peito e quando me aproximo, ajoelhando-me do seu lado direito, vejo que ela segura Corpcious contra o corpo. Não consigo vê-lo muito bem, principalmente por ela estar escondendo-o contra si. Ela olha de forma ameaçadora e lamentável para o professor a frente. Não diz nada, somente:

-É culpa dele.

Fico observando-a incompreensivelmente, então começa a chegar todo um Distrito (não literalmente) na sala, preocupados e irrequietos pelo professor caído como um cadáver apodrecido. Coisa que realmente poderia ser confundida facilmente. Eles o levam para a enfermaria e Alex age normalmente, como se nada houvesse acontecido. Finge que não sabia de nada e que o professor apenas caiu sem motivo aparente, e para “variar” todos acreditaram. Bom, de fato não foi sua culpa. Ou foi?

Naquela mesma tarde, quando estou em casa sozinha enquanto meus pais estão no trabalho e meu irmão sai com Chloe eu escuto uma batida veemente na porta. Franzo a testa enquanto deixo o meu livro na minha cama, perto de onde me sentei empertigada, e saio cambaleante do quarto até a porta, abrindo-a parcamente a fim de ver quem era.

De repente, sou forçada a ir para o lado devido a espaçosa Alex, entrando na minha casa e fechando a porta. Ela segura uma caixa de papelão e usa uma roupa escura quase camuflada. Ela apoia-se na superfície da porta ao fechá-la e olha para mim, soltando o ar pela boca e fechando os olhos, abatida.

-É o seguinte. Corpcious morreu.

Arqueio a sobrancelha. Era o que eu duvidava. Talvez fosse por isso que culpara o professor, e quando ele acordou na última aula, ela dissera que iria coloca-lo na fogueira se aproximasse dela novamente. Bem... Agora, pelo menos, estava explicada a ameaça. E a demissão do professor.

-Mas já? –escuto-me perguntar e imediatamente desejo não ter aberto a boca.

-O quê? –Alex arregala os olhos, me encarando como se eu fosse um monstro e estivesse falando sobre os problemas naturais do planeta. –Você por acaso tem algum pedaço de coração?! Lyra gostava dele! E agora, o que eu faço? Ela não pode saber que ele partiu... Se não eu vou partir...

Lyra, sim. A irmãzinha menor dela. Sempre quando ela vinha me visitar eu fazia bolachas caseiras para ela, que comia praticamente a forma inteira sozinha. E eu sempre achei o motivo de sua felicidade ao vir até aqui pelas bolachas. Porém, um dia desses, eu a vi explorando a floresta perto de nossa casa. Lyra voltara com um balde cheio de insetos, sorrindo para nós orgulhosamente. Ela poderia se dar bem com a minha mãe na floresta, penso eu. Mas ela ainda é pequena para aprender certas coisas, embora já seja curiosa para basicamente todos os assuntos do Universo.

Inspiro profundamente, imaginando alguma coisa. Sinceramente, não tinha ideia. Vou até a cozinha e pergunto:

-Quer chá?

***

Depois de Alex ter queimado a língua três vezes e me contado seu plano “extraordinário”, eu a analiso por cima da xícara, coloco-a delicadamente em cima do pires e após brincar com a borda de vidro, eu ergo o olhar e repito:

-Então você quer enterrar seu escorpião no meu quintal e comprar outro animal de estimação para ela, ainda hoje?

Ainda não tinha compreendido seu raciocínio. Ela esperava que ao comprar um novo bicho de estimação, Lyra iria esquecer-se de Corpcious? Como raios ela pretendia isso? Lembro-me de quando meu irmão achara uma cobra na floresta e resolveu trazê-la para casa, as mãos pequenas da criança de cinco anos espremendo a garganta da cobra, e a sua risada implorando para nossos pais deixarem-no ficar com o seu ‘Eustáquio’. É claro que minha mãe recusara a sua oferta generosa de ter uma cobra venenosa em casa e meu pai tratou de livrar-se dela rapidamente. Demorou mais de um ano para Fynn esquecer Eustáquio, mesmo com todos os diversos animais que chegaram após ele. Agora imagino Lyra.

-Você quer fazer um enterro formal para o seu escorpião no meu quintal? –reflito sobre essa questão novamente. Alex permanece com a postura natural dela, ela beberica seu chá e relaxa o corpo na cadeira, finalmente gasta por dizer tudo que precisava.

Bem, não parece uma má ideia.

Peguei uma pá no fundo da casa e começamos a cavar um buraco no quintal. Haymi nos ajudara parcialmente, e o meu tio Haymitch ficara rindo de nós na parede externa da casa, e só saíra de lá quando ‘sem querer’ joguei toda a terra da minha pá na direção dele, caindo exatamente sobre sua cabeça deixando-o imundo.

Alex encaixou o seu escorpião no “túmulo” que fizemos a ele e recitou algumas palavras de despedida. Estava prestes a colocar a terra novamente para encobrir o corpo morto do Corpcious quando ela me impediu:

-Você não vai dizer nada?

Parei e olhei-a, incrédula. Eu... dizer algo? Eu deveria dizer algo? E o quê?

-Hãm...

-Espero que você diga sim. Afinal, Corpcious adoraria saber que alguém se importava com ele.

Respirei longamente e olhei para o céu já escurecendo. Se continuasse assim ela não conseguiria ir até a loja comprar seu próximo “bichinho de estimação” hoje. Não seria minha culpa, e já quero deixar claro aqui.

-Está bem. –finalmente digo, olhando para o Corpcious. Torço o nariz sem saber o que dizer. Dramaticamente, fecho os olhos e me concentro: – Corpcious... Green. Você foi um ótimo companheiro e todos se lembrarão de sua coragem e... bravura. Sua memória permanecerá para sempre em nossos corações.

Semicerro os olhos e de esguelha vejo Alex. Ela parece satisfeita e assim eu enterro novamente seu Corpcious para as profundezas da terra. Colocamos uma pedra em forma de triângulo (que ela achara no caminho para minha casa) em cima do local onde o deixamos para marcar sua posição, e então voltamos para dentro de minha casa. Minha mãe voltara e notei que se passara uma hora desde que tínhamos ido ao quintal, ela cozinhava algo com um cheiro agradável deixando minha boca salivar.

-Oh, Alex. Vai jantar aqui hoje? –minha mãe cumprimenta com um aceno de cabeça a minha amiga, a qual agora meneia a cabeça em negação.

-Não, obrigada, Sra. Mellark. –agradeceu, indo direto a porta.

-Já vai?

-Vou sim. Annie, você vem?

Olho para minha mãe que sorri para mim, carinhosamente. Dou um beijo em sua bochecha e eu saio. Porém, quando estou quase na porta, vejo que Alex está balançando a cabeça com repreensão. Vou até ela e vejo o que ela está encarando, e Will está lá. Não tinha me lembrado de termos combinado de nos encontrarmos hoje.

-Annie. –ele sorri ao me ver, então percebe que ambas estamos de saída, forma uma postura imediata de curiosidade e apreensão. – Aonde vocês vão?

-Alex vai comprar um novo bichinho de estimação. –respondo sincera antes de Alex me interromper, ela já estava com a boca aberta prestes a formular uma frase (muitas vezes não muito amistosa) quando fechou a cara e fez um bico, olhando para mim como se eu fosse culpada de algum crime. –Que foi? –acrescentei, observando-a.

Ela não responde. Apenas segura a manga da minha camiseta e me puxa para frente, não esperando por Will, logo acompanhando-nos tranquilo.

Uma coisa: ver Alex se acanhar e ficar constrangida – a ponto de esconder-se atrás de você – em um dia onde você pensa e imagina ela ter voltado completamente ao normal por causa de alguém no qual (para você) é desconhecido, é algo pior do que receber um meteoro na cabeça. A vítima fica zonza, confusa como se houvesse perdido a memória; o que talvez seja bem provável porque algo aconteceu; isso é inegável, algo no qual ela não se lembra de ter presenciado ou adquirido conhecimento do assunto. É como se tudo virasse do avesso e você percebesse, por um momento de total desespero, que você deixou um pano perto do fogão e sente sua casa queimando e, depois, você se dá conta de que na realidade você está dentro da casa também, e você só se lembra disso após todo o fogo já ter se alimentado da maior parte de sua perna, até não sobrar mais nada do que carne queimada para os corvos.

E foi exatamente assim que me senti, quando Alex suspendeu os passos apressados, os olhos se esbugalharam e ela me puxou para frente dela, tentando desaparecer por trás do meu corpo; ela pareceu ter notado não ter muito efeito porque rapidamente trocou seu lugar para trás do corpo de Will, agora ao meu lado. Éramos como uma muralha entre ela, e o que-quer-que-esteja-do-outro-lado. Senti-me estranhamente desconfiada.

-Hãm, Alex?

-Shiu. –fez ela, um barulho quase não audível, somente quando fui reclinar-me para trás a fim de vê-la que ela agiu e me empurrou para frente, obrigando-me a voltar a posição original. –E fica parada aí!

Entreolhei-me com Will, de ombros levantados com a mesma expressão. Estudei minha frente e tudo estava vazio, deserto. A loja estava a nossa frente, sem nenhum obstáculo, apenas ela ali. Erguendo-se com o ar caloroso e confortável, o sol já baixo pela tarde passando-se depressa. Ninguém caminhava por perto, e dentro da loja, eu era capaz de ver uma atendente solitária, segurando um papel nas mãos e lendo-o vorazmente, e vários animais, cada um diferente do outro, alguns emitindo ruídos precisamente impacientes e outros quietos, calados, deitados dormindo e sonhando.

-Hm, por que você... –comecei, mas não pude finalizar pelo susto recebido de uma quarta voz; girei meu corpo e fiquei cara a cara com um sujeito levemente familiar, embora não o saiba ao certo de onde o poderia conhecer. Estreitei os olhos para ele.

-Oi. –cumprimentou-nos cordialmente, Will assentiu com a cabeça, a cabeça virada ao lado como se processasse algo na mente, analisando-o bem, pude descobrir ele estar examinando uma possível lista de conhecidos (ou era o que eu imaginava). O estranho não se demorou muito em nós dois, ele olhou fixamente para Alex de uma maneira que conhecia extremamente bem, levantou um braço e passou os dedos agitados nos cabelos, disperso. –Alex... Não sabia que viria aqui.

Minha amiga encolhida sob a sombra de Will pulou com a voz e virou-se devagar. Até aquele momento, parecia não tê-lo percebido e assim que seus olhos pousaram no garoto, eles começaram a irradiar um reluzente brilho incontrolável por Alex, e a minha vista, involuntário. Ela deu um meio-sorriso hesitante, porém alegre, e levou uma das mechas soltas para trás da orelha.

-Sean, oi, er... –ela tossiu, cobrindo a boca com a mão. –Eu também, definitivamente, não fazia ideia que você estaria aqui.

E então Sean mostrou dentes brancos em um sorriso empolgado que poderia hipnotizar qualquer garota por perto, vi pelo canto do olho Will remexer-se desconfortável e aproximar-se de mim discretamente, com um jeito possessivo; eu tive vontade de rir, mas abafei a risada para mais tarde.

-Como está o Corpcious? –ele desviou o assunto, abaixando a mão. Depois em um tom preocupado dissolvendo o sorriso do rosto: – Não a vi depois da escola.

Alex olhou para nós de relance, temerosa, e eu levantei uma sobrancelha sem perceber. Desde quando eles se conheciam? Por acaso ela estava deixando de contar algo para mim? Era obvio que sim.

-Ele... morreu. –Sean transformou a sua parcial animação em uma espécie de surpresa e lamúria. Alex balançou a cabeça e prosseguiu, sem dar-lhe explicações para a segunda frase: - O que você tá fazendo aqui?

O garoto (Sean, era seu nome?) virou a cabeça, olhando para a loja de animais. Não parecia muito satisfeito ao responder.

-Eu trabalho aqui.

Notei a compreensão passar pelo rosto de Alex, então ela acenou com a cabeça e passou a ficar entre a perplexidade e o questionamento. Sean voltando-se para Alex deu de ombros e soube que, qualquer pergunta ou dúvida ou suposição minha no momento teria de esperar para quando estivermos depois em um lugar mais calmo, Alex evidentemente não estava com um ar muito sugestivo no qual indicava que daria alguma informação a mim, por isso agarrei a mão de Will e o levei para longe dos dois. Acabei por entrar na loja de animais, visualizando vários filhotes de cãozinhos levantar-se e aglomerar-se um sobre os outros para descobrir os novos visitantes.

Empurrei Will para um canto da loja, a mulher com o papel não se moveu, mas os animais sim. Olhei por cima dos meus ombros e vi Alex rindo de Sean, que começara a leva-la para dentro da loja. Sorri ao ver a cena. Nunca pensaria em ver Alex daquele jeito.

-Will? O que você acha... –fui lentamente dizendo, virando a cabeça conforme as palavras saiam da minha boca, mas parei antes de terminar a frase.

Will não estava mais ali. Senti minha mão sendo levemente puxada, carregando-me onde ele estava com a atenção voltada.

-O que você...?

E eu olhei para baixo. Havia um cercado repleto de filhotes, todos despertos e agitado olhando-nos curiosos como se dissessem “não me deixem aqui, encham-me de amor e carinho!”. Não pude resistir e antes que percebesse já havia me ajoelhado e passava minha mão na cabeça peluda de cada um dos pequenos animaizinhos.

Tinha um em especial no qual me chamara a atenção. Ele utilizava uma espécie de óculos de sol (algo realmente bizarro de se ver em cachorros) e trombava nos filhotes para obter espaço e atravessar a distância até mim. Ele tinha uma coloração puxada ao tom leve de laranja e cambaleava e era empurrado, jogado para os lados, assim como tantos outros. Porém ele continuou saltitando com a língua para fora até que minha mão esteja pousada em seu flanco, o seu rabo abanando freneticamente. Ri pelo desespero dos outros ao subirem nas costas dos demais ou passarem por baixo das barrigas subindo e descendo pela respiração constante daqueles serezinhos.

-Parece que ele gostou de você. –Will agachou-se ao meu lado e acariciou o focinho do cão elétrico, o filhote acelerou as batidas do rabo e lambeu a mão do ruivo, que deu um largo sorriso preguiçoso. Assenti a cabeça, alegremente.

-E de você também. –retruquei, acalmando um cãozinho impaciente ao lado. O laranjinha pareceu perturbar-se pela ausência da minha mão porque soltou um breve ganido que me fez imediatamente voltar a colocar minha mão sobre ele a fim de ver se ele estava bem; e ele estava perfeitamente bem.  Rapidamente ao me voltar para ele novamente o filhote suspendeu a lamentação instantaneamente.

A porta abriu-se e Alex e Sean entraram. Eu limpei a garganta e me escorrei para perto de Will, sussurrando para ele, ainda mantendo minha mão sobre a cabeça do cãozinho cuja situação agora era parecida a de ter um furacão em um pasto, ele estava inclinando-se para frente tentando ultrapassar a barreira de segurança.

-O que você acha que eles estão falando?

Will murmura um “hm” pensativo, batendo os dedos no topo da cabeça do filhote que começa a ficar mais agitado, como se Will passasse uma descarga elétrica que só aumentava a já existente nele. Enfim, o garoto pigarreia e em uma voz fina ele imita Alex, a própria justificando alguma coisa para o tal do seu companheiro, começamos um diálogo imaginário dos dois, e quando eles passam a frente de nós, eu tenho que morder minha língua e abaixar a cabeça para esconder meu surto psicótico de risos.

Ela, porém, aparentara não ter notado. Então poderia estar caída no chão, estrebuchando-me no piso derramando lágrimas de risada que ela mal perceberia. É, talvez fosse mais fácil daquela maneira. Não precisaria me preocupar tanto em me ocultar.

No final, ficamos ali por duas horas. Duas longas horas que apesar de tudo pareceram passar em um lampejo. Eu e Will ficamos com o pequenino laranjinha a tarde inteira, e ele acabara por quase derrubar a portinhola de segurança de tão aflito em sair que estava. Alex poderia ter escolhido o primeiro animal cuja língua mostrara a ela que já estaria comprado e levado a sua casa, mas ela demorou tempos com sua “indecisão”. E enfim – como eu sabia desde quando coloquei o pé ali dentro – ela comprou um camaleão. É, ela diz que é encantada pelos olhos dele. Vá entender.

E quando ela já estava na porta da loja, e a própria loja estava fechando, chegou a hora de se despedir do pequenino laranjinha, no que descobrimos uma hora atrás, de ele ser cego, e era esse o motivo por usar aqueles óculos escuros. Razão pela qual me agradou ainda mais.

Eu o havia pegado no colo, e desde quando nos vimos, ele não parou de abanar o rabo. Fiquei encarando suas feições adoráveis e suplicantes, dizendo “leve-me pra casa” e quase o fiz, realmente. Porém, me controlei. Não. O Haymi, temos que cuidar dele agora. Quem sabe o que ele pode pensar? “Eles estão me substituindo por alguém mais jovem, oh!”, não, era melhor não arriscar.

-Tchau, bolotinha. –disse com tristeza, enquanto passava uma última vez a mão em suas costas, cobrindo-me toda de saliva de cão, ele, porém, parecia não entender a minha partida, e quando coloquei-o no chão novamente, ele começou a pular e choramingar pedindo para pegá-lo de volta. – Desculpa, laranjinha.

Ao virar-me para sair, com uma enorme relutância, vi Will ainda parado no mesmo lugar.

-Você não vem? –perguntei-lhe, franzindo o cenho, seus olhos estavam grudados no laranjinha, com uma expressão reflexiva, assim que falei com ele, imediatamente levantou a cabeça, olhando-me como se me percebesse pela primeira vez.

-Ah, sim. Eu... Já vou. Pode me esperar lá fora. –respondeu, parecendo determinado e decidido com alguma coisa, irreconhecível por mim. Duvidosa, porém aceitando, eu saí da loja, seguindo o casalzinho (Céus, que Alex não veja isso) pelo caminho de casa. Parei quando eles se distanciaram um bom trecho da trilha.

Alex virou-se para mim ao perceber não estar mais acompanhada por minha presença. Ela franziu o cenho e segurou mais firme o utensílio para carregar e acomodar confortavelmente o seu novo bichinho de estimação – um camaleão fêmeo chamado Tormentas.

-Ei, por que parou? –ela fez um gesto com a cabeça indicando o caminho a frente; dizendo-me para seguir em frente. –Vamos?

Balancei a cabeça com um sorriso gentil, apontando para a loja com o dedão despreocupada.

-Will ainda está na loja. Vou espera-lo, mas podem ir. –expliquei sucintamente, enxotando-os com um movimento da mão. Alex deu de ombros e continuou firme em frente, enquanto o seu companheiro faceiro mandava a mim um sorriso de lado e cheio de suposições. Rolei os olhos e ele abafou uma risada, olhando para a porta da loja e voltando-se para o caminho, conversando com Alex.

Uma coisa boa?

Não precisaria mais me perturbar com Alex andando sozinha por aí. Apesar de tudo.

Encostei-me a parede da loja durante o meu período aguardando-o. Eu já havia observado Alex e Sean partirem, arrancando na trilha e desaparecendo em minha visão. O sol estava baixo e passara-se, pelo menos, quinze minutos desde quando havia saído por aquela porta. Estava prestes a voltar-me para dentro quando o dono saiu, carregando uma plaqueta que pregara na frente da loja anunciando letras grandes o bastante para alguém com problemas visuais conseguisse enxergar de longe mesmo sem objetos de ajuda. Dizia “FECHADO” de uma forma nitidamente satisfeita.

Endireitei-me quando ele passou por mim, com a intenção de pergunta-lo de haveria alguém ainda na loja. Quer dizer, ele não teria simplesmente sumido, teria? Se sim, eu iria enforca-lo publicamente no próximo dia. Por que raios ele me mandaria esperar se ele ao menos saiu da loja ou foi embora mais cedo quando eu estava conversando com Alex?

Finalmente, a criatura saiu. Com toda aquela postura ingênua e expressão indefinida na qual transpassava uma serenidade como se não houvesse acontecido nada. Como se eu não tivesse que ter esperado quase meia hora para que a sua boa vontade voltasse a aparecer.

Bufei me aproximando dele, com a cara fechada e a voz fria. O céu já escurecia e estava quase noite. Eu pretendia poder atirar-lhe para as Tracker Jackers, mas...

-Por que raios você demorou, abóbora? –perguntei-lhe enfurecida, cruzei os braços esperando sua explicação. Estava a sua frente sustentando seu olhar tranquilo. Anormalmente tranquilo.

-Desculpa, Annie. –ele sorriu inabalável, finalmente percebo algo em sua mão a qual não tinha me interessado a princípio. –Mas a culpa, na realidade, não foi minha...

-Ah, não? Então...

Um latido. Um latido familiar me interrompeu e fez meus olhos se abaixarem até visualizar a minha frente, apenas a uma pouca distância, a pelagem ruiva e os óculos de sol canino no focinho molhado, com a língua para fora e o rabo balançando inquieta como um tornado.

-Laranjinha? –perguntei incrédula, o latido fino e ávido do filhote retornou. Um sorriso espalhou-se pelo meu rosto. Deu uma risada contida e levantei o olhar para Will, sacudindo a cabeça. –O que você fez?

-O que você acha que eu fiz? –ele retrucou. Um sorriso sarcástico no canto dos lábios repuxando-se para um leve riso. Ele acariciou o topo da cabeça da bolotinha, que lambeu seus dedos com prazer. Depois, sem erguer a cabeça, me olhou. –Ele é seu agora. Você pode me perdoar pelo atraso desnecessário?

Olho para ele, depois para o cachorro, ele acomoda o laranjinha a sua frente de tal forma que seria a “atração principal” em sua imagem, justamente para meu nervosismo passasse como se um vento o houvesse levado embora. Mas antes de tudo, consigo recitar as palavras de forma severa:

-Se você acha que pode “bajular seu perdão” com o senhorzinho aí pode tirar o cavalinho da chuva.

Havia cruzado os braços e desviado o rosto, semicerrando os olhos. Porém, não consigo controlar minha felicidade o suficiente e abro-os quase segundos mais tarde, arrancando para frente e lançando meus braços ao redor de Will – meio assustado pela minha reação, no entanto logo revirando os olhos –, abracei-o apertado, junto com a bolinha laranja, tomando os devidos cuidados para não machuca-lo.

-Você sempre sabe se safar de uma boa enrascada, não é? E antes que me esqueça: O quê?! Você... Ele... O laranjinha!– exclamo perplexa, sentindo com certo divertimento os batimentos cardíacos do ruivinho, contra minha bochecha, se acelerar. –Will!

Escuto-o gargalhar ao tempo de sentir a lambida do meu novo cãozinho em meu braço. Pouso minha mão sobre ele, explorando o seu pelo com meus dedos enquanto o seu rabo balançava com uma extrema felicidade impossível. Pensei que nome poderia dá-lo. E por fim, sorri ao descobrir um.

Afasto-me e com o filhote empinando o nariz para sentir o cheiro do ar fora da loja, percebo um laço verde pendurado em seu pescoço. Sacudo a cabeça para Will, agora estudando meus movimentos, exultante, e anuncio com um enorme sorriso, inclinando-me e coçando as suas orelhinhas caídas de:

-Sherlock Holmes, bem vindo a família.

***

Sherlock adaptou-se bem a nossa casa. E Haymi pareceu adorar a nova companhia. Podia perceber um novo animo nele, tanto quanto parecia mais vivo agora. Estava em casa assistindo os dois a minha frente e ria com o filhote. Ele tinha uma empolgação tremenda, não parava de pular em todos os lugares. Meus pais não se queixaram com nosso novo membro, apesar de o próprio roer praticamente a casa inteira, faltando apenas alimentar-se da ‘comida’ que Effie esporadicamente preparava a nós (a única coisa que não digeria). Sherlock já tinha acabado com uma bota da minha mãe, com a sua coleira verde-claro, com o pé de uma cadeira e até tinha deformado a ponta do pincel precioso de papai. Apesar disso, ninguém conseguia ficar bravo com ele. 

Sherlock estava saltitando na frente de Haymi, tentando fazê-lo juntar-se a sua festa particular, ele mordeu levemente a orelha peluda do nosso cachorro idoso e começou a puxar, convidando-o com mais vigor para acompanha-lo em sua brincadeira.

Os pelos alaranjados do cachorro sempre me fazia pensar em Will, e a coleira verde que comprei para ele foi como uma homenagem. Meu filhote estava usando os óculos apropriados para cachorros, presos na altura certa e não se incomodava com eles. Peculiarmente ele havia se apegado a mim entre toda a família; seguia-se em todos os cômodos, obedecia (a maioria, pelo menos) dos meus comandos, choramingava quando queria alguma coisa, fazendo questão de vir até mim para implorar com sua carinha afável que eu não podia – era impossível – dizer não. 

Ah, e quando Will visitava a casa ele corria e fazia toda uma comemoração nos pés do garoto. Era como se sentisse sua falta, como se não o visse por tempos. Então posso dizer que ele o considerava seu dono, apesar de não conviver com ele diariamente. Sempre ficava perto de nós quando ambos estávamos juntos, e sempre relutava em escolher em quem de nós dois ficar assim que nós nos separávamos, optando por continuar no mesmo lugar e latir incessantemente para que nós dois voltássemos e fiquemos com ele, deixando a demonstrar sua incapacidade de se decidir. Chorava e gania todo dia que Will partia; aliás, era exatamente por isso que agora ele praticamente frequentava nossa casa todos os dias, quase chegando a morar conosco, o que eu não achava de todo ruim. E por causa disso, tínhamos ficado mais próximos, mais próximos do que um dia podia esperar que ficássemos.

Meu pai às vezes brincava que Sherlock Holmes, nosso cachorro exótico de pelos alaranjados com pintas brancas espalhadas pelo corpo, cego e precisando usar um óculos especial para ver, ainda com o nome de um antigo detetive -- achava que os pais eram nós dois, eu a mãe e o Will o pai. Não achava tão divertido assim, ao contrário do Will que havia ficado bem contente com aquela comparação. 

Sabe a comemoração dos Distritos? Estava cada vez mais perto, e a euforia não podia deixar de transparecer. Três dias, então ela chegaria. Primeiro, a diversão, e depois, a formal época festiva. Ansiosa? Não. Se pudesse, esconderia todo o meu ser do outro lado do planeta. Ou bem debaixo da terra.

Falando nisso, escutei que algo novo irá se abrir; e o novo cartaz indicava que este ano, a comemoração seria completamente diferente dos outros anos. Seria isso verdade?

Veremos daqui três dias.

Eu não estou nem um pouco ansiosa.

Pov. Autora.

A noite caíra rápido naquele dia, e parecia que um cobertor houvera recoberto o céu, escurecendo o tempo e esfriando o ar. Dois pares de pés chapinhavam na lama, perto da casa dos dois vitoriosos tão bem conhecidos. “O tempo está chegando” a garota de cabelos roxos sorriu. Um sorriso insano e alucinatório. O garoto ao lado olhou em seu relógio, apressado e descontente. Era para eles já tê-los pegado naquela hora; poderiam muito bem seguir o seu plano e os tirar de lá. O chefe de ambos poderia estar no comando assim que amanhecesse. Mas eles o escutavam? Não. Era sempre ela, ele era considerado o patético dos presentes.

-Ora, - soltou o ar satisfeito do pulmão a audaciosa garota, parando a poucos metros da única janela transmitindo uma luz ainda acesa do lado de dentro, escondendo seu interior pela cortina clara e deixando-os visualizar apenas sombras disformes de pessoas passando, animadas, parecendo comemorar algo. – Eles não sabem o que vai acontecer. Pobres ingênuos. Sempre continuam da mesma maneira como sempre foram: fracos e inocentemente puros.

A garota estalou a língua no céu da boca, seu companheiro franziu o nariz no assombroso véu escuro, não precisando mais temer demonstrar seu desgosto. Porém, não poderia contrariá-la. Era claro a ignorância deles perante aos seus planos. Tolos, tolos, tolos... Não devia se impressionar. Era do feitio deles baixarem a guarda por um longo período de tempo após tudo ter aparentemente acabado, no entanto, mesmo que o caso não houvera se aplicado ao casal, eles sabiam que mais cedo ou mais tarde eles por fim cederiam; e foi exatamente o que eles fizeram. Ele não sabia se poderia sentir desapontamento, ou solidariedade.  

-Por que viemos aqui? –a voz do garoto ressoou no oco da noite vazia e inóspita, contestando com um toque de remorso no seu timbre. –Temos que fazer nosso trabalho.  

A garota mostrou os dentes pontiagudos, de uma forma ameaçadora. Fez um gesto indiferente com a mão e voltou-se a casa feliz e pulsante sem a menor desconfiança de que logo estaria desabada, um entre milhares de destroços do tão destrutível Distrito. O que fariam ao descobrir que os dois mais ferozes e capazes “líderes” de uma revolução antiga finalmente fracassassem? Não esperava a hora de poder encarar aqueles os quais desafiaram seus poderes.

-Não se apresse, não se apresse. – a voz calma sibilou, ela retirou de seu bolso um anel desgastado e sujo. Havia pertencido, um dia, a um homem honesto e gentil, dono de uma estalagem próxima a casa dos Mellark ali por perto. Um amigo fiel ao casal. Agora, sem vida. Monotonamente, ela passou o anel pelos dedos, revirando-o com desprazer, o tédio consumindo-a. A sua vontade pelo líquido morno em seus dedos era insaciável, porém começara a ficar um tanto repetitivo as ordens recebidas de sua líder. Queria se divertir. Queria contemplar a futura devastação. Podia imaginar a sua vitória. Daquela partida, eles não se deixariam perder. O Xeque-Mate será deles, um último movimento que viria a ser definitivo nos próximos anos. –Não precisamos nos precipitar, meu amor. Eu quero desfrutar o momento.

O garoto remexeu-se, inquieto. Ajeitou o cabo de seu punhal, agora ensanguentado como se houvesse sido pintado por um pintor psicótico assassino. As gotas do sangue já estavam tornando-se manchas escuras, secas. Decidiu, então, limpá-las na grama por perto. O tempo estava iniciando sua mudança, logo poderiam perceber com nitidez suas modificações. Olhou para o corpo caído ao seu lado, o que estava carregando todo o trajeto. A forma pesada e morta do ser não o perturbava, e estava farto de esperar silencioso entre as sombras das árvores. A porta abrira-se e uma forma foi banhada pela iluminação de dentro do aposento. A silhueta um pouco apagada de Annie Mellark saía da casa, levando consigo um saco abastado de alimentos e objetos quebrados em apenas uma das mãos, como se não pesasse nada. Por que simplesmente não ir pegá-la? Ela estava ali, claramente a mercê de qualquer um. A filha do tordo estava praticamente a sua frente; sem qualquer proteção ou alvo de algum olhar indesejado. Com ele e sua companheira, ela não teria chances de escapar. Então por que simplesmente não ir? Pouparia muitos serviços à frente.

A garota de cabelos roxos percebeu a agitação do garoto e mandou-lhe um olhar repreensivo. Seus lábios vermelhos-sangue separaram-se para dizer as palavras frívolas e cortantes com o tom insensível de advertência:

-Não faça algo que irá se arrepender depois, Ryan. Temos que seguir as ordens.

-Isso não faz nenhum sentido! Ela está praticamente em nossas mãos, Tess, por que não podemos simplesmente agarrá-la e acabar de vez com tudo isso? –deixou o protesto escapar-lhe de dentro de si, Ryan fechou o rosto e deu um passo a frente, impaciente. Tess colocou-se na frente da parede humana, barrando-lhe a passagem, e apoiou sua palma firmemente no peito do companheiro. Olhando-o rigidamente, a garota inclina-se e pressiona duramente seus lábios contra os frios do garoto.

-Tudo ao seu tempo... –sussurra, ao separarem-se. Um sussurro baixo e atormentado.

 Então, com a face inexpressiva, ela virou-se, adentrando novamente na floresta, chamando-o com autoridade. Ryan permaneceu por um tempo no alto do terreno, às escondidas, observando a chance escapar pelos seus dedos. Viu a tão honrada Katniss sair pela mesma porta, andando em direção à filha e dando-lhe um tapinha nas costas, dizendo algo em seu ouvido que fez a menina sorrir. Dando as costas para a casa e para o calor da família, ele abaixou-se a segurou as pernas do homem sem o devido cuidado, arrastando-o pelo chão, criando uma trilha despreocupada enquanto seguia a garota cujos cabelos roxos davam a impressão de uma profunda e imensa torrente de dores, assim que a luz da lua resplandecia nos fios e tornava-os escarlates, como um rubi dentro de um alto e opressor incêndio.   

  

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 ² Lugar Nenhum, Neil Gaiman – É um livro para adultos, escrito pelo autor britânico de romances e quadrinhos inglês; a sinopse do livro: “Em 'Lugar Nenhum' Neil Gaiman conta a história de Richard Mayhew, um jovem escocês que vive uma vida normal em Londres. Tem um bom emprego e vai se casar com a mulher ideal. Uma noite, porém, ele encontra na rua uma misteriosa garota ferida e decide socorrê-la. Depois disso, parece ter se tornado invisível para todas as outras pessoas. As poucas que notam sua presença não conseguem lembrar exatamente quem ele é. Sem emprego, noiva ou apartamento, é como se Richard não existisse mais. Pelo menos não nessa Londres. Sim, porque existe uma outra - a Londres-de-Baixo. Constituída de uma espécie de labirinto subterrâneo, entre canais de esgoto e estações de metrô abandonadas, essa outra Londres é povoada por monstros, monges, assassinos, nobres, párias e decaídos - e é para lá que Richard vai.”


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Notas finais do capítulo

Quem mais gostou de como foi o final? o/ Finalmente vou poder matar alguém daqui a pouco! Comentários, gente?
Agora vêm os extras. Aproveitem bastante, me diverti escrevendo-os.



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