Um Dia Qualquer. escrita por Hikari


Capítulo 23
Reviravolta no primeiro dia de aula e a suspeita.


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoas, voltei! Queria dar meus sinceros agradecimentos a Alice Mellark que recomendou a fic. AHHH, OBRIGADA! OBRIGADA, OBRIGADA, OBRIGADA! Eu amei. Muito obrigada mesmo! Estou tão feliz que esteja gostando! Não sei como posso me expressar aqui. *---* E obrigada a todos que estão acompanhando também!
Está quase chegando a parte dois da fanfic! KYAAA~ Agora vai ter acontecimentos rápidos e seguidos. Uma preparação para o que chegará mais tarde!
Vou fazer contagem regressiva, ok? Para deixar mais emocionante. Eu estou programando para ser cinco segundos (capítulos), mas como não tenho certeza absoluta, se não der para ir tudo o que eu estou programando em cinco capítulos eu aviso e enrolo de algum jeito... Ah, whatever. Lá vai:
COMEÇO DA PARTE DOIS EM 5...



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Pov. Annie.

Volta às aulas.

Uhuu, que animação. Estou super feliz com isso, eba.

Ponto. Ironia. Algo que me define nesses tempos.

Entrava na “selva” como uma caçadora a partir de agora. Assim quando eu obriguei a minha mãe a me colocar nas aulas de arco e flecha da escola e tinha vencido o macaco ambulante da minha escola no concurso de pontaria (que só podia entrar quem estava fazendo a aula, um dos motivos de eu ter entrado já que era completamente inútil para mim pois já sabia todos os métodos que o professor passava) em um festival que houve no ano retrasado, ninguém mais se atrevia a entrar na minha frente. O que era algo bem inteligente da parte deles.

Bem, pelo menos era isso que eu tinha em mente. Um bando de animais, como sempre. Na selvageria, de sempre.

O que mudou no decorrer dos anos?

Não mudou coisa nenhuma. Ficou a mesma espelunca de sempre. A não ser que agora, por algum motivo sobrenatural, tinha apenas metade de pessoas de antigamente. Não porque abandonaram o estudo, mas porque haviam se mudado de nosso distrito.

Talvez isso fosse algo bom, afinal de contas, agora havia um número bem menor de pessoas jogando papeizinhos nos novatos. Era algo bom, não é?

Mas espera aí... Eu não fazia mais parte dessa escola.

Pensaram que iria ficar, não é? Enganei o bobo na casca do ovo!

Desculpa, tinha que fazer essa coisa ridícula.

Isso mesmo, tinha quinze anos agora (iria fazer dezesseis no mês que vem, só para deixar claro), e fazia parte do ensino médio, não o fundamental.

O que eu estava fazendo por lá, vocês se questionam?

Ah, simples. Estava levando o meu irmão menor, Fynn, para a aula. Ou será que deveria chama-lo agora de Sr. Bicho Preguiça? Ou Sr. Lesmonóide? (Sim, eu sou muito criativa).

Minha mãe insistira para levá-lo. O que eu achava desnecessário, considerando que ele sabia muito bem o caminho e que podia se virar sozinho muito melhor do que muitos outros garotos da sua idade.

Mas lá vai ele: ‘Ah, Annie, vai, por favor, me leva pra escola, vai! Eu não quero ir sozinho, vem comigo!’. (É, eu estou imitando a sua voz apesar de ser meio constrangedor).

É nesses momentos que você tem que contar até trezentos, respirar fundo e dizer: ‘está bem, querido irmão, levarei você até sua amada escola’.

Opa, quem disse que eu falei isso?

Bom, na realidade, para ser sincera, foi o seguinte: o que aconteceu foi exatamente o que descrevi. Mas revertendo os papéis.

Eu insisti para ir levar meu irmão na escola, ele agira indiferente (porém, eu pude notar que tivera um novo ânimo ao me acompanhar, só não quisera confessar), e minha mãe só alertara para não atrasar para minha aula.

Era meu segundo ano no ensino médio, e digamos assim... eu era um pouco – muito - ansiosa. Ansiosa no sentido de ficar roendo as unhas até seus dedos ficarem em carne viva, depois virar um zumbi e acabar mastigando seus próprios dedos e assim virar um lobo e começar a brincar com o osso dos seus dedos.

Não, eu não estou exagerando.

Bom, talvez um pouco.

Mas o que importa não é isso, eu só pensava que se levasse meu irmão para a escola me tranquilizaria. O que estava dando bem certo.

Ambos estávamos tirando satisfações disso. A história de ninguém se aproximar de mim era verdade, eu havia ganhado o concurso de tiro ao alvo no meu último ano e todos ficaram com algum tipo de pavor de eu atirar na cabeça deles alguma pedra ou algo assim, caso me perturbassem. O que não era totalmente mentira, já como certamente faria isso na primeira oportunidade. E o meu irmão gostava de que eu fosse com ele porque assim ninguém tentava importuná-lo uma vez que eu estava com ele. Sou uma irmã exemplar, podem dizer.

E o Fynn me fazia esquecer por um momento a minha aflição, ele vivia em Nárnia e por isso me levava junto fazendo com que meus pensamentos se dispersassem em outro universo. O que eu achava muito proveitoso.

Chegamos ao portão, Fynn ainda resmungava sobre algo que envolvia creme brulee e um pégasos ambulantes, parei antes que pudesse entrar já como os dois guardas que ficavam nas extremidades da entrada me perscrutava com o olhar e a sobrancelha arqueada, suspeitosos, enquanto passava pela frente.

Que horror, era como se eu fosse tentar fazer uma nova revolta na escola e a destruísse. Já havia tentado isso, mas depois de refletir por um momento percebi que não valia realmente a pena. Então eles não deviam ficar tão ressentidos assim comigo e acabar analisando cada movimento que fazia. A ideia mal saíra da minha cabeça.

Mas na verdade, sabia o que eles realmente estavam pensando. Sempre era assim. Eles tinham receio de que nós fôssemos matar aula, e já como o meu uniforme não era o daqui, eles logo souberam que não deviam me conceder a passagem. Fazer o quê ? Vejo que não tenho escolha para fugir da aula mesmo.

–Fynn. –segurei seus ombros e olhei em seus olhos. Ele tinha parado de falar sobre pandas e magias proibidas e começara a observar um pássaro no céu. Acho que só seu corpo estava aqui, porque provavelmente estava dormindo acordado pelo que aparentava em seu estado.

Bufei nada surpreendida. Esperei até ele acordar, o que não demorou muito.

–Ãhn? Ah, oi Annie. –ele sorriu com os olhos praticamente se fechando sozinhos, estava com uma cara de quem fora anestesiado por dez maneiras diferentes.

–Oi... Fynn. –sacudi a cabeça e retribui o sorriso de modo carinhoso. Era primeiro dia de aula, então não podia o culpar, provavelmente ficaria a primeira semana inteira desse jeito. Fiz uma anotação mental de trazer um saco de gelos na mochila amanhã. –Bom, maninho. Tente não dormir na aula... como está fazendo agora, está bem?

–Huh? –perguntou olhando para os lados, só depois focalizando em mim. –Ah, está bem. Relaxa, Annie. Vou ficar atento.

Rolei os olhos, sem acreditar em um pingo de suas palavras. Até parece. Ele aparentava ouvir ao mesmo tempo em que pressionava a tecla “deletar” em sua mente. Ele tinha feito quatorze anos no começo do mês passado e agora estava se ‘vangloriando’ porque já estava mais velho e estava no último ano do ensino fundamental, logo, no próximo ano, ele estaria indo para a mesma escola que eu. Eu o veria novamente, assim poderia me manter de olho nele. Mas... Como agora poderia assegurar-me de que estava bem? A única coisa que me restava era ter que acreditar que os seus amigos dariam conta de cuidar dele. E claro, acreditar nele para se cuidar sozinho.

–Ok... Tenha um ótimo dia de aula, Fynn. Não se meta em problemas. –dei um aperto em sua mão antes de solta-la para seguir meu caminho.

–Hm, uhum. Prometo. Vou me empenhar. –meu irmão assentiu, escutei seu nome ser gritado de dentro do colégio e o vi virar a cabeça bruscamente. –Ah, é o Jason. Nos vemos depois, mana!

Dito isso, foi como uma deixa para partir para dentro, me dando um beijo na bochecha para enfim ir em direção ao amigo.

Conhecia a irmã de Jason, ela era um pouco mais velha que eu, mas era bem gentil. Quando precisava de sua ajuda para tomar conta do meu irmão mais novo quando o deixava na casa dela para “brincar” com o seu (Fynn odeia quando eu uso essa palavra, mas ele queria que eu dissesse o quê? Que havia ido lá para plantar morangos?) ela aceitava e, pelo que eu vira, fazia um bom trabalho.

Segui meu irmão com o olhar até o ver cumprimentando os seus dois inseparáveis amigos. Fuzilei os guardas que ainda me encaravam com a clara mensagem de “caia fora” e rumei ao meu colégio, que, aliás, era bem perto.

Cheguei ao tão bom clamado prédio. Ele era bem animado, cheio de adolescentes conversando e alguns poucos infelizes badernando antes da aula. Era por pouco que eu não atirava a mesma pedra em um que quase me acertou com o disco pulsante dele. Só me contive por ele ter se desculpado; uma coisa rara por aqui já como a maioria dos adolescentes apenas xingavam e saiam andando, ou até mesmo fazendo gestos obscenos que enfim... não eram muito agradáveis. Até porque a culpa era deles, mas isso não vem ao caso.

Respirei fundo e peguei um panfleto que estavam distribuindo no portão do colégio, nem olhei direito o que era, só enfiei no meio das folhas do meu caderno. Depois faria algum origami na aula com aquilo, tinha aprendido a fazer um patinho pequenino com meu pai nesses tempos, e eu estava a fim de testar as minhas habilidades.

Não sei o porquê de continuarem entregando aquelas benditas propagandas se ninguém no universo se interessava. O máximo que faziam era formar bolinhas para tacar em pessoas ou aviõezinhos para jogar na sala de aula. Aliás, eram apenas sobre programas novos de televisão. Ou sobre algum centro comercial novo. Até entregaram sobre um alerta contra pragas. Honestamente eu não me interessava por nenhuma dessas alternativas do que, supostamente, estaria escrito ali.

Estava olhando ao redor para tentar procurar meus poucos amigos, mas não encontrava em lugar algum. Suspirei pesadamente. Eles devem estar atrasados, como sempre. Não seria a primeira vez... Principalmente no primeiro dia de aula. Só esperava que a Alex não faltasse, considerando de que ela tinha ligado para mim às quatro horas da manhã e ainda não tinha nem fechado os olhos. Pensava como ela iria acordar.

O que ela estava fazendo acordada às quatro horas da manhã? Bom, provavelmente estaria zerando mais algum dos seus jogos. Ela tinha se viciado naquilo nesses últimos anos e não desgrudava um só momento dos seus preciosos games.

Mesmo assim, fui até o canto do campo da escola onde estaria a salvo de ser alvo de qualquer empecilho e continuei procurando por cima das cabeças, tentando me levar mais na ponta dos pés para conseguir enxergar mais a frente.

Foi quando o vi. A anormalidade do lugar. Um pontinho laranja no meio das cabeçonas.

Ah, não. Por favor, que não seja quem eu pensava.

Fiquei tão atordoada com a visão que tropecei nos dedos dos meus pés e quase caí. Quase. Pude me segurar na grade no último segundo e me estabilizar em pé.

Sabe, acho que não tive uma boa noite de sono. Só poderia ser alucinação. Quer dizer, Alex havia ficado uma hora conversando comigo de madrugada, depois de ter me acordado. Iria conversar mais se eu não houvesse caído no sono com o telefone no ouvido. Então devia ser culpa disso. Não teria visto o que eu pensava que tinha visto.

É... Exatamente. Eu pensei ter visto... Ah, não importa.

Estava pensando muito nele. Tinha que parar com isso. Desde o seu aniversário nós tínhamos combinado um tempo para conversarmos e nos encontrarmos, ele me dizia que o treino estava indo bem e que tinha melhorado bastante. Tinha me visitado uma vez nas férias e foi um tanto... estranho. Havia sido divertido, é claro, mas estranho. Ele parecia esconder alguma coisa de mim; sempre que perguntava o que era ele ria de uma piada interna, sozinho, e me distraia com outra coisa.

Depois ele foi para o Distrito 4, ainda estava de férias e ficaria por lá um tempo. Eu não entendia exatamente o porquê já como dali uma semana teria que fazer outra viagem. Mas, quem se importa? Eu não.

Tanto faz, o caso agora era: por que eu havia visto aquela peculiar cor no meio de... nós?

Decidi me aproximar para descobrir o que estava acontecendo. Sabia com absoluta certeza de que não devia ser ele. Afinal, o que ele iria fazer ali?

Porém, como estava sortuda hoje, eu me enganei. Estava a vários passos de distância quando todas as dúvidas (e preces) para que não seja ele se desintegraram como que por ácido na minha mente.

Bem, vejamos. Não era tão difícil reconhece-lo, afinal, quando só se tem ele de ruivo por ali é até que fácil demais saber quem é.

Will. Ou como eu o apelidara nessas férias: a abóbora ambulante. (de novo a minha criatividade surpreende vocês, certo? Mas não podem deixar de dizer como eu sou amigável com ele).

Rapidamente virei as costas e tentei me esconder, retrai-me sobre um grupo de amigos que haviam lá por perto e fingi estar observando uma flor. Ideia espetacular, não é? Pois é, as pessoas pensaram que eu estava bisbilhotando alguma coisa – ou me acharam estranha mesmo – e saíram de perto de mim. Deixando-me completamente sem proteção.

Levantei frustrada. Olhei para os lados, não vi ninguém que conhecia. O que foi um alívio. Arrumei a alça da minha mochila no ombro para ficar mais confortável e decidi virar-me para Will.

Ele parecia não ter me notado, não sei se era por causa das “distrações” do povo do colégio com suas ações macacais ou se era só porque ele era avoado mesmo.

Talvez eu conseguisse assusta-lo dessa vez.

Ah, péssima ideia, Annie... péssima ideia.

Esgueirei-me pela parede que havia ao lado, perto do portão, para ir furtivamente atrás dele e poder finalmente me vingar.

Mas parece que não foi como eu planejara.

Quando eu estava a meio passo de pular para dar um susto nele, ele fez o que eu menos esperava.

–Annie! –ele se virou de repente e eu saltei para trás, tropeçando nos meus próprios pés e caindo na grama molhada.

–Will! Será que você pode ser um pouco menos atento as coisas? –perguntei enraivecida por ter sido pega.

–Desculpa, Annie, não queria a assustar. –ele ofereceu sua mão com um sorriso maroto no rosto. Sabia que ele segurava a risada.

É claro que ele não queria. E eu sou um pônei feliz saltitante que vomita arco-íris.

Aceitei sua ajuda e logo estava de pé me limpando, não havia me sujado muito na realidade, eram sujeiras minúsculas que podiam ser facilmente esquecidas, porém fiz aquilo para deixar a situação mais exagerada; como se ele tivesse me jogado em uma poça lamacenta ou algo do gênero. O que eu sabia muito bem que ele nunca faria.

–Você é o ser mais chato de todos. –murmurei para ele, olhando para o outro lado.

–Eu sei. –ele se vangloriou e inclinou-se para frente e para trás com a mão nos bolsos, mandei-lhe um olhar que a maioria das pessoas se encolheria, mas ele não. Ele apenas sorriu quando viu que havia me deixando mais nervosa ainda.

Ér... aquilo me fez bem. Arrumei minhas costas e senti como se ficasse mais leve, do mesmo jeito que ficaria se alguém houvesse tirado o saco de farinha do meu pai da minha cabeça. Eu meio que... espera aí, tosse repentina.

Eu meio que percebi o quanto queria ver aquele sorriso de novo.

Ok, falei. Satisfeitos? Bom mesmo, porque eu não vou repetir.

Depois de um tempo, o nervosismo se dissipa e eu abro um enorme e largo sorriso.

–Senti falta de você, bobão. –rio enquanto pulo no seu pescoço, abraçando-o com força. Estou na ponta dos pés, e isso não é muito agradável. Começo a rir mais ainda quando Will me ajuda nesse problema, passando os braços ao redor da minha cintura e me levantando em seus braços.

É impressão minha ou ele ficou mais forte? Logo sufoco meu grito assustado, me aproximando mais do ruivinho e apertando meus braços ao redor dele com mais vigor, me assegurando de que não iria cair. O que mais eu faria? Além disso, o que raios ele pretendia fazer? Que raiva. Alguém pode, por favor, me trazer alguma coisa para bater nele? Pode ser qualquer coisa, desde um tijolo até uma ilha, vocês que decidem, se bem que sempre quis estilhaçar uma cadeira da cabeça de alguém, essa podia ser uma boa oportunidade.

–Will! –reclamo no seu ouvido com certa impaciência, reduzi minha risada para um sorriso, ainda estava alegre por termos nos reencontrado, porém queria descer e ficar segura no chão onde podia me prevenir de qualquer um de seus “ataques”. Se bem que esse já é um deles, deixando-me incapacitada para fazer qualquer coisa.

Escuto-o gargalhar como se estivesse divertindo-se da minha reação. Continuava me abraçando pela cintura enquanto eu reclamava, ele me arrumou nos braços e tive certeza que não me soltaria tão cedo.

Suspiro, derrotada. Com uma última tentativa, balanço minhas pernas – que estavam livres; soltas no ar – pretendendo chuta-lo a fim de me derrubar sem aguentar me manter no seu colo. Porém ele pareceu perceber ao abaixar a cabeça, notar meus pés se agitando e soltar uma das mãos que me segurava, deixando uma mão apenas me sustentando, para arrumar minhas pernas ao redor do seu tronco.

Naquele momento eu realmente pensei que ele havia entrado em algum clube ninja para conseguir fazer isso sem ao menos fraquejar os braços. Ou era isso, ou eu tinha virado uma pessoa anoréxica sem ao menos perceber, do jeito como ele me segurava da mesma maneira como seguraria uma pena.

E também naquele instante, com o pânico que começou a se instalar em mim pensando que ele iria me derrubar, eu não resisti ao enrodilhar minhas pernas nele.

Havia entrado em sua armadilha em cheio. Bem como um rato faria ao ver um queijo do outro lado da grade. E asseguro, meu amigo, aquilo não era muito legal.

–Olha, isso é muito inconveniente da sua parte. –falei para ele, afrouxando o aperto no seu pescoço ao ver que estava segura. Afastei-me dele até conseguir enxergar seu rosto que estava com uma expressão bem realizada. –Ei! Não fique com essa cara!

Soquei seu ombro e ele soltou uma risada. Como se estar naquele estado deprimente fosse engraçado! Mas que ódio...

–E o que você vai fazer para me impedir? –ele perguntou, desafiando-me de um jeito irritantemente Will. Que novidade. (sim, isso também foi uma ironia. Ah, eu devia ganhar um prêmio...).

–Ah, quer mesmo saber? –fechei minhas mãos em punhos e tirei um braço do seu pescoço para analisar minha mão como se estivesse examinando a ponta de uma espada.

O ruivo imediatamente desfez a expressão feliz do rosto, trocando-a por uma preocupada e apavorada. Ele abriu a boca e depois a fechou de novo, certamente tentando encontrar palavras perante as minhas ameaças.

–É... Realmente? Não precisa dizer não. –tentou agir normalmente, mas pude perceber o tom receoso dele. Sorri satisfeita.

–Me coloca no chão, então, aboborazinha. –ordenei levantando as sobrancelhas com uma expressão séria.

–Aboborazinha!? –repetiu, sacudindo a cabeça.

–Isso mesmo. Agora. –pressionei a junta dos dedos até elas estralarem, Will estreitou os olhos para mim.

–Você não faria isso comigo. –murmurou tentando achar uma brecha no meu plano.

–Ah, não vou? Quer esperar e ver?

Ele engoliu em seco e pensou. Não o apressaria para refletir. Bom, olhando bem, sim, eu o apressaria! Não podia esperar a manhã inteira no seu colo daquele jeito, já podia ver alguns olhares de soslaio vindos de algumas pessoas por perto. E eu não estava com a mínima vontade de ser confundia por... Bom, se eles pensarem que eu e ele... Argh, eu acho que deu para entender. Eu estaria morta. Eu faria o favor de me matar.

–Will! –estava prestes a soca-lo quando ele se decidiu.

–Está bem.

Lentamente ele me pôs no chão. Quando toquei o solo eu queria cair na grama e abraçar a terra com todo o alívio do mundo. Porém, sabia que isso iria pegar mal na escola. Resolvi não fazê-lo.

Escutei o suspiro vindo da pessoa a minha frente. Virei-me para ele e notei seus olhos fixados em mim.

–Estou livre da minha punição? –deu um sorriso de canto que me fez ficar presa no mesmo lugar. Limpei a garganta, me obrigando a dizer algo.

–Por ora. –digo dando de ombros e relaxando minha mão colocando-a ao meu lado. Não sabia o que fazer com ela, como um peixe fora d’água.

Só que... o que Will fazia ali? ‘Aparatou’ por acaso assim de repente? Ele queria me avisar de algo? Ele não poderia ligar, não?

Será que sentiu muitas saudades?

Entendeu? Isso foi uma piada.

Não? Ok. Parei.

Não tinha como saber se eu não perguntasse, certo?

–Will, por que você tá aqui?

Sua expressão murchou como uma flor ao não ser regada. Entendi que ele poderia ter interpretado de outra forma, então expliquei:

–Eu digo: não que eu não tenha gostado! É só que vocês não avisaram nada, eu mal sabia que você iria vir e...

–Eu entendi. –Will me interrompeu suavemente, inspirei fundo esperando sua resposta, que não veio.

–E então? –fiz um gesto para ele continuar, porém parece que passou despercebido pelo ruivo.

Ele estava olhando para algo ao seu lado esquerdo, não entendi muito bem e quando fui seguir meu olhar para a direção em que estava virado ele voltou-se para mim e me impediu de visualizar o que quer que seja colocando-se na minha frente.

–E então o que, Annie?

Cruzei os braços começando a entender. Ele não queria me contar. Assim como quando me visitou, não revelou nem um traço de seu silêncio quando eu perguntava algo em relação ao que ele pretendera fazer no Distrito 13 ou como seria depois das férias. Apertei meus olhos, estudando todos os detalhes de sua feição.

–De novo com os seus segredos, Will?

Ele pareceu não entender. Correu o olhar pelo campo da escola e então para mim. Franziu a testa e antes que pudesse perguntar alguma coisa continuei:

–Ok. Vou deixar você pensar em paz. Você e seu “misterioso segredo”. Não se preocupe, não vou atrapalhar mais. –levantei os braços, derrotada. Só me faltava.

–Annie... –Will tentou me segurar para não sair, mas eu desviei de sua mão e comecei a recuar.

Enquanto eu recuava com a grama sendo amassada pela sola do meu sapato acabei quase caindo pela segunda vez. Um grito alarmado ficou preso na minha garganta e meus braços foram firmemente pegos, meu pé cedeu na terra e tentei obter equilíbrio com a ajuda dos braços que me prenderam em outro abraço. Mas sabia que esse não tinha nenhuma pegadinha. Os seus músculos estavam tensos e a voz saiu desesperadamente preocupada quando ele perguntou:

–Você tá bem? Se machucou? Desculpe, eu te segurei forte demais? –ele dispara as perguntas não me dando tempo de respondê-las.

Sim, eu fiquei atônita no momento. Não conseguia pensar direito e tentava me acalmar para controlar minha respiração, fazê-la voltar ao normal. E por isso, fiquei ali sentindo seu perfume, sem responder. Por um instante eu esqueci que estava brava com ele e murmurei baixinho com um toque de sarcasmo e um sorriso aparecendo:

–Calma, “pai”. Eu estou bem... - -me interrompo bem na hora. Estava perto de dizer algo realmente imprudente quando me lembrei de que não deveria nem estar falando com ele.

Assim que lembro, me afasto dele e imediatamente sinto uma dor aguda e alucinante vinda do meu pé direito, a qual tomou conta de mim quando tento colocar meu peso nele. Se não fosse pelo ruivo estar lá e me segurar pela décima quinta vez eu já estaria caída no chão com mais um provável machucado.

–Está bem, huh? –ele resmunga carrancudo. Sua voz estava desesperada além de sua notável seriedade súbita. Porém eu sabia que tudo que ele estava era apreensivo, preocupado com o que acontecera. Estava evidente, não havia como esconder.

Mantenho-me firme e me levanto com cautela, sem sua ajuda. Não o olho nos olhos; evito colocar muito peso no lado direito e seguro a alça da mochila recarregando minhas forças.

–Eu estou. –garanto convincente. –Não precisa ficar assim, eu devo apenas ter torcido ele.

–Apenas torcido?! –ele repete com um humor pesado pairando na pergunta/afirmação que fez. Ignoro o que ele disse sempre relembrando do segredo que ele não queria me contar e de como tudo isso me deixava furiosa, ele não devia esconder coisas assim de mim. Bufei, começando a mancar para o amontoado de estudantes.

Quando estou perto de toda a agitação novamente, eu me viro e posso encontrar Will ainda me olhando, seguindo todos os meus passos como se para certificar-se de que eu não cairia novamente.

–Obrigada. –falo para ele, não estamos tão longe assim e sei que ele ouviu porque o vi levantar as sobrancelhas e me encarar com mais intensidade. Corei um pouco – só um pouco, está bem? – e segui, tentando encontrar alguém dos meus amigos. Acho que enrolara o bastante por ali para que ao menos um tenha chegado.

O meu pé incomodava, eu reprimia um gemido toda vez que tinha que apoia-lo no chão. Mas que ótimo, tinha que acontecer essas coisas comigo. E ainda nem havia começado o meu dia. Incluindo o fato de ser apenas o primeiro dia de aula. Não estava tão ansiosa para a semana que se passaria.

–ANNIE! –escuto o berro familiar me chamar, viro minha cabeça a tempo de ver Melanie sair das sombras do prédio. Ela estava falando com um garoto alto que carregava um fichário embaixo dos braços e algo nas mãos. Os cabelos escuros estavam bagunçados e amassados como se ele houvesse acabado de sair da cama e nem mexido neles, o que era bem provável.

Quem ele era?

Cameron Jones. Ele era o mais novo integrante de nosso "grupo". Se é que podemos chamar de grupo.

Bom, deixei-me arrumar. O mais novo membro de nossa família. É, assim é melhor.

Ele havia chegado ano passado, tinha vindo do distrito 2 e por mais surpreendente que pareça ele não lembrava muito as pessoas de lá; conseguia misturar-se bem com o povo daqui do 12. Talvez seja porque seu pai nascera aqui, ou talvez seja mera coincidência. Os olhos eram cinzentos, levemente esverdeados, e os cabelos eram escuros com o comprimento dando impressão de que não o cortava havia meses – o que obviamente não seria algo tão chocante.

Ele era fanático por O guia dos mochileiros das galáxias. Ele me fizera lê-los quando o conheci (havia feito todas nós lermos) e assim descobrira o porquê de ele sempre carregar consigo uma toalha na mochila. Eu sei, soa bem estranho, mas os motivos não são tanto assim. Bom, pode ser que sim, mas... Isso não vem ao caso.

Ah, em questão do livro, eu gostei. Ele tinha achado nas quinquilharias do avô quando ele era menor.

Eu acho que ele é tão viciado no livro, que o próprio foi influenciado de um jeito bem esquisito por ele. Algumas vezes, ele se assemelha ao Marvin, um robô depressivo que aparece ocasionalmente. Só que um pouco melhor. Quero dizer, bem melhor. Mas lembra da mesma maneira.

Ele pode ter se misturado as pessoas daqui, porém não se dera muito bem arranjando amigos. Fora alvo de piadas por aí por não se dar muito bem em falar. Era tímido, a princípio; porém depois que você o conhecia ele virara basicamente outra pessoa, posso constatar isso para todos. Alex que teve a iniciativa de chama-lo, depois de um tempo descobrimos que ele não era tão ruim quanto as pessoas o faziam parecer ser. Na verdade, ele combinava perfeitamente com a gente.

Isso define muito bem como ele é, certo? Isso mesmo, nada normal.

Braços me envolvem enquanto Melanie me dá um abraço de urso, achatando minha bochecha contra a dela.

–Ei, Melanie, também senti saudades. –falo com o fôlego preso.

Não, não era porque ela estava me apertando pelo abraço sufocador – eu acho que já enchi minha cota de abraços por hoje – era porque do jeito em que me situava eu tinha que sustentar todo o meu peso no pé direito. Aquele que tinha torcido.

Já tinha lágrimas nos olhos quando ela me soltou e arquejou ao ver eu a ponto de chorar.

–Annie, não é você que está com muitas saudades, não? Assim... eu não sabia que estava... chorando mais. –depois de uma pausa olhando para o nada do céu acrescentou: - Me sinto lisonjeada.

Soltei um suspiro a me ver livre e fiquei pulando de uma perna só ao me curvar e examinar meu pé direito, apertando-o contra minha barriga.

–Eu não tô chorando. –consegui dizer com os dentes trincados de agonia.

–Ah, então seus olhos estão suando? Entendo. Mas que coisa interessante. Peculiar, admito. –ela brincou. Isso não era hora de brincar comigo. Não mesmo.

Esperei um pouco até que eu pudesse endireitar as costas e, hesitantemente, depositar meu pé no chão, fazendo uma careta quando ele tocou o solo e um puxão me lembrou da maldita dor.

–Meu pé está machucado, doce mel. –dei um sorriso falso e ela fez uma cara de compreensiva, depois pude nota-la constrangida.

–Ah... nesse caso, me desculpa.

Fiz um gesto indiferente com a mão, ainda com a boca retorcida do sentimento nada prazeroso.

Cam estava ao lado de Melanie, segurando um mangá na mão. Inclinei a cabeça para o lado para conseguir enxergar. Como se chamava? “W-O-L-F’-S-R-A-I-N”, uh. Wolf’s Rain¹. Esse era novo. Antes de tê-lo visto pela última vez ele lia Fullmetal Alchemist².

Pigarrei forçadamente. Ele parecia não ter percebido que eu estava ali na sua frente. Foi apenas quando eu limpei a garganta pela terceira vez e engasguei com minha saliva que ele ergueu os olhos e me viu.

–Eai, Annie! –ele cumprimentou mandando um sorriso de boas-vindas, inquieto para voltar-se a sua leitura.

–Oi, Cam. –acenei de volta. Ele não podia parar um minuto? Um dia ele trazia mangás, em outro um livro de setecentas páginas e depois, quando não segurava nada, ficava tão hiperativo que não parava de falar um segundo.

Cameron sorriu e voltou-se para a leitura. Melanie balançou a cabeça estalando a língua, mas ele não ligou. Então se virando para mim, ela agarrou meu braço e me puxou para frente.

–Ahh, não! –impliquei, ficando para trás com a mão dela me puxando. Mordi meu lábio inferior tentando impedir o gemido de protesto aparecer.

Finalmente quando ela pareceu compreender, Melanie desceu a mão até que pudesse segurar a minha, inclinou a cabeça para o lado com as bochechas ruborizadas, envergonhada, e me mandou um pedido de desculpas silenciosas, que eu aceitei. Poderia fazer outra coisa? Não era opção do mesmo jeito.

Melanie beliscou o Cam que estava com o nariz enterrado no mangá, ele franziu a testa e mandou um olhar zangado para ela, obviamente pouco a vontade por ter sido interrompido. Ela o obrigou a largar o “precioso” dele e prestar atenção no que ocorria a sua volta. Depois de notar meu pé machucado, ambos me ajudaram a ir até a sombra do prédio e a um banco no qual estava vazio. Sentei-me na hora com um alívio imediato.

–Como você arranjou isso? –Cam perguntou curioso, guardando dentro do fichário o mangá. –Você caiu?

Tinha cruzado as pernas e estava examinando meu pé, mexendo-o de um lado para o outro e fazendo caretas pela dor causada. Resolvi parar com aquilo e deixa-lo em paz, tudo o que poderia fazer era piorar. E ainda mais, não queria nem ver quando a Alex chegar. Provavelmente não iria andar pelo resto da minha vida.

–É, Cam... Eu escorreguei. –falei o mais sucinta possível. Não queria mencionar o meu encontro com o ruivo, não queria falar dele.

–E como você escorregou? –Melanie sentou-se ao meu lado, aparentemente sem se dar conta de quando eu levantei a cabeça e fiz uma cara de “não te interessa”. A garota estava interessada na entrada, esperando alguém chegar. Alex?

–Uma poça de água. –respondi, apertando os olhos para enxergar mais a frente. Alguma coisa estava acontecendo perto do portão. Pessoas eram empurradas para o lado sem cerimônia. Estava prestes a conseguir visualizar quem era a criatura quando fui atraída por Cam que replicou:

–Mas nem choveu...

Ter me distraído foi o maior engano que já cometi em toda a minha vida. Meio segundo mais tarde estava no chão, com um peso sendo imposto na minha barriga e o meu pé dobrado de um ângulo sinistro.

Uma pergunta. Por acaso você já teve que enfrentar um tigre cara a cara? Um tigre esfomeado? Faminto pela sua carne? E ao mesmo tempo em que a pata de um elefante pressiona a sua barriga e você está com um osso bem capaz de ter fraturado?

Era essa a minha situação.

Soltei um berro angustiado. Alex sobressaltou-se e saiu de cima de mim por ter sido puxada por Melanie. Eu rolei até ficar de barriga no chão com um enorme alívio ao ter movido minha perna e a tirado daquela posição. Alex depois de se recobrar, voltou a me encarar com a expressão selvagem.

–O que foi? –ofeguei. Comecei a ficar com medo daquela criatura. Agora tinha absoluta certeza de que era ela quem chegara “teatralmente” na escola, e não estava com a mínima vontade de saber o porquê de seu tumulto.

–Você desligou na minha cara! No meio de algo importante! –ela exclamou, soltando-se de Melanie que me olhava com a testa franzida.

–O quê?! Você ligou de madrugada! Eu estava dormindo, você me acordou. Estava com sono, queria o quê?

–Você não me ajudou. –ela choramingou. –Estava prestes a bater meu recorde!

–Recorde? –do que raios aquela garota falava? Por acaso estava fazendo alguma piada?

–É! Sabe o quanto é difícil jogar aquele jogo?

Ah, agora tudo está explicado. Por que ela não contara antes?

Sentei-me com a ajuda das minhas mãos e a encarei com um sorriso no rosto. Muitas pessoas eram viciadas em flores de lótus, whisky – indireta, Haymitch –, pintura, fazer bonecos de saco de batatas, fazer bonecos em batatas, Alex não. Ela era viciada nos jogos. Começara no final do ano passado e agora praticamente passava o dia inteiro criando raízes no sofá com um controle na mão. Ou com os olhos vidrados na tela do computador. Suspirei chacoalhando a cabeça.

–Alex... Alex... você sabe que não foi minha culpa.

–Claro que foi! Se você houvesse continuado ali eu não teria dormido no meio da batalha. –mostrou a língua para mim e pude ver seus olhos se fechando. Ela bocejou e esfregou a testa como se estivesse com dor de cabeça. Meu coração parou por um minuto quando ela desmaiou e Melanie – que estava ao seu lado – conseguiu pega-la a tempo de não se esborrachar no chão. Alex deu um pulo arregalando os olhos.

–Eu realmente acho que é hora de você parar um pouco de ficar a noite inteira no jogo... Alex. –Cam falou relutantemente, aproximando-se e sentando no banco olhando-a com medo de ela desfalecer novamente.

A teimosia em pessoa apenas bufou e levantou-se para demonstrar que estava bem. O problema era eu, que agora estava com o pé latejando. Minha mãe vai me matar. Ela surta a cada arranhão que ganho, o que ela diria de um pé inteiro quebrado? Oh, Santa Ártemis, me salve.

Mas Alex estava lá. Apenas um puxão dela nos meus braços e eu já estava de pé. Ou bem... quase isso. Tinha que me apoiar nos ombros de Melanie para andar (foi ela que suplicara que eu fizesse isso, Alex ajudara me ordenando – e asseguro a vocês, ninguém quer desobedece-la quando está de mau humor no meio da manhã), o que era meio desconfortável. As pessoas me olhavam como se eu fosse um extraterrestre com uma melancia na cabeça. Queria gritar para elas “Ué, como se nunca tivessem visto alguém de muletas... a única diferença é que eu não tenho muletas.”, mas nem precisei. Alex cuidou do assunto.

–CUIDEM DAS SUAS VIDINHAS IMPRESTÁVEIS, SEUS MONTES DE INÚTEIS. –grita enquanto estávamos no corredor. Uma garota do terceiro ano ri com os amigos, olhando para nós e apontando para mim. Ela se vira para a garota que a olha com surpresa, do mesmo modo como estaria a se ver pega no flagra. Alex dispara para ela sem ao menos respirar direito: – O que foi? Perdeu alguma coisa? Nunca viu alguém assim, é? Isso é uma novidade para seu mundo cor-de-rosa, é?

Vi Cam enrubescer com vergonha do que a nossa amiga fazia. Ele chegou a virar um tomate ambulante e decidiu abaixar a cabeça e fingir que não a conhecia. Era o que eu faria também, caso não estivesse nesse estado deplorável.

–Acho que consigo andar sozinha, Mel, pode deixar. –insisti acho que pela décima vez naquela manhã. Não estava tão ruim assim, eu acho.

–Claro que não consegue! Teríamos que ir com sua avó, isso sim. Ela iria curar esse seu pé com aquelas “plantas mágicas” dela.

Rolei os olhos, ela e minha mãe não conversam muito, mas ela é uma boa pessoa. Eu a visito algumas vezes e de tempos em tempos ela passa em casa. Minha avó começou a me ensinar sobre os ‘dons da cura’ e etc. Eu acho interessante, e sei algumas coisas básicas; claro, não o bastante para me ajudar. Tanto faz.

–É, mas ela não está aqui. –resmunguei para ela. Melanie deu de ombros.

O sinal bateu, assustando nós quatro. Alex começou a praguejar em voz baixa, esfregando os olhos cansados, Cam havia dado um pulo que fez o fichário escapar da sua mão e agora ele curvava-se para pega-lo do chão, Melanie quase me derrubou ao escutar o som estridente avisando que a aula iria começar.

Alex apoiou-se nos armários do corredor. Bateu a cabeça contra o metal provocando um barulho ruidoso. Ela não ligava para os olhares que atraiu, apenas ficou lá batendo a cabeça repetidas vezes nas portas dos armários dizendo “não durma, não durma, não durma...”.

Só agora que pude examina-la melhor – antes estava aterrorizada demais para perceber qualquer outra coisa – notei o quanto aparentava ser mais uma morta-viva apodrecendo e putrificando do que sua forma normal. Eu fiz bem em dormir no telefone e não deixa-la ficar mais acordada.

Ela tinha olheiras fundas e distintas, os olhos estavam vermelhos e a sua aparência estava horrível, daquele jeito de quando seu sono se acumula por uma semana. Dependendo dela, Alex poderia ter ficado até um mês sem dormir mais do que duas ou três horas. Ela estava toda fraca e preguiçosa. Na primeira chance de fechar os olhos ela já desabaria em coma.

–Me diz, Alex. O que você mais jogou nessas férias? –perguntei curiosa. Não, nem precisava me contar. Já sabia. –Não, espera, não fala. Amnésia: The Dark Descent? Minecraft?

Alex estremeceu ao me escutar mencionar o jogo Amnésia. Eu me lembro de quando ela ligou para mim chorando para ir a casa dela. E adivinha que horas? Quatro horas da manhã, o sol faltava pouco para nascer. Ela estava jogando isso quando me chamou.

Porém acho que o Minecraft acalmou-a porque ela relaxou e seus olhos abriram-se mais.

–Sim, foi basicamente isso. –ela confirmou, respirando fundo com os olhos fechados. Soltei uma risada baixa e ela semicerrou um dos olhos. –Por acaso tem algum problema?

–Não, não! Nenhum. Garanto. –assegurei-a com receio de receber um sermão dela. É, você leu certo. Um sermão dela. Coisa de que deveria ser ao contrário, mas bem...

–Acho que temos que ir- –começou Cam pegando os horários no fichário para ver onde ficava nossa sala quando fomos interrompidos pela última pessoa que desejaria ver na minha vida.

–Ora, ora... Se não é a famosa Annie Mellark. –uma voz fria e ríspida se pronunciou atrás de mim, não conseguia ver o dono, mas não precisava me virar para descobrir de quem era.

–Tess. –respondi, travei o maxilar e pude notar Cam, Alex e Melanie tensos, com os membros enrijecidos. Soltei-me de Melanie e me firmei de pé, ignorando a dor irritante no pé tentando transmitir para o meu cérebro que aquilo não se passava de um machucado bobo.

Virei-me devagar para encara-la. Encarar aqueles olhos céticos e negros como carvão nos direcionarem um olhar frio e subversivo. Estava com um sorriso debochador no rosto o que me fazia ficar mais incomodada ainda.

Quem ela era? Acho que nunca expliquei para vocês, certo?

Bom, ela era filha de um casal da antiga Capital. Um dos poucos que restaram que ainda estão revoltados contra a nova forma de governo que se instalou. E sobre minha mãe ter acabado com os Jogos e todo o seu poderio. Desde quando eles se mudaram para nosso distrito ocorria uma rivalidade nítida entre eles e meus pais, o que consequentemente transferiu para os filhos, no caso, eu e ela. Dava para perceber de longe que Tess era fruto dos antigos costumes do povo que vivia na mordomia de ter todos os recursos nas mãos. Apesar de agora precisarem ralar para conseguir o que tinham, Tess ainda teimava em manter-se da antiga forma. Os cabelos em perfeitos cachos caíam sobre os ombros, o que naturalmente eram para ser densas cascatas de cabelos castanhos claro, eram fios pintados de um roxo chamativo, a cor suavizando-se nas pontas. Seus cílios tinham pedrinhas brilhosas que eu imaginava todo momento cair nos olhos escuros dela e fazê-la ficar cega enquanto ela berrava angustiada e eu ficava a observando triunfante (eu sei, um pouco sinistro, mas eu não conseguia resistir em não parar de pensar nisso). Os lábios eram permanentemente pintados de vermelho, como sangue fresco.

Tinha dias em que ela exagerava nessa sua “homenagem”. Porém até que hoje ela não estava tão absurda assim. A diferença no rosto é que agora ela tinha uma fina linha luminosa passando pelas suas sobrancelhas, contorcendo-se com pequenos olhos esmeralda. Uma cobra. Uma cobra nas sobrancelhas, que adorável. Imaginava de onde ela tinha tirado aquilo.

Sério mesmo que ela achava aquilo bonito?

–Como vão os seus pais, Annie querida? –ela perguntou em um tom suave e provocador, deu três passos para frente até estar perto o suficiente para sussurrar e eu ouvir com clareza: – Seu pai continua com os ataques epiléticos de sempre? E a mamãe? Fica sonhando acordada e gritando “Não o mate, por favor, deixe-o viver! Papai!”?

Sua risada de escárnio rouca ecoa pela minha cabeça, seguida da risada fino de sua companheira imbatível, Masie. Não entendia o porquê de ela estar com Tess, mas sempre as vi juntas. Nunca se separavam. Masie era como se fosse o “fantoche” de Tess, ela não a considerava de verdade sendo sua amiga, estava bem claro para mim, apesar de que para a garota não. Mas tanto faz.

Tento me acalmar, relaxar, mas sei que não é necessário. Aquilo iria ser em vão, já estava impossível de controlar minha vontade de partir para seu pescocinho cheio de pó para torcê-lo até que ela não conseguisse respirar mais. Estava enfurecida com as suas ameaças, sabia o que ela queria e tinha que manter minha mente sana para me concentrar em não demonstrar minha fúria.

Quando ela conseguiu recuperar o fôlego, ela me encarou com o tom da voz de zombaria, cheio de sarcasmo:

–Ou eles estão procurando contribuir novamente para o “bem” da população fazendo mais um dos seus feitos “heroicos”? –ela fez o aspas no ar com os dedos finos os quais eu poderia quebrar em apenas um aperto. Mas me contive. Meus pais não gostariam que eu fizesse isso. E também não queria pegar detenção no primeiro dia de aula.

Melanie pousou a mão sobre o meu braço para demonstrar que estava comigo e para não me deixar levar por Tess. Todos nós sabíamos de como ela era intuitiva, conseguia levar a pessoa a loucura com suas gracinhas, depois era só ela dar o xeque-mate e agir como vítima. Ela era simplesmente um daqueles tipos que latem, mas não mordem.

–Não começa, Tess... –Alex iniciou sua ameaça com os dentes trincados. Cam pôs os braços na frente dela para que ela parasse, ela ergue o olhar cheio de aflição por não poder continuar. Cam faz um movimento que passa imperceptível por Tess dizendo que não valia a pena. Alex apenas suspira pesadamente e manda um olhar vingativo para a outra que a está encarando com expectativa.

Tess pareceu ficar interessada. Ela levantou as sobrancelhas e abriu a boca em um sorriso psicopata, assustando-me quando vi os dentes.

Por acaso já contara que o pai dela era especialista em alterações na aparência? Todo aquele treco de mudar a textura da pele, trocar a coloração da íris dos olhos (assim como deixar a pupila parecer fenda de répteis), fazer a pele virar pelo/pena de animal e afins? É, ele é. E a rouxinol venenosa aqui a minha frente tinha feito os dentes virarem presas pontiagudas. Todos eles. Poderiam ser tão afiados quando uma adaga. O que era algo que, tenho que admitir, me aterrorizou. Principalmente por ser... ela. Assim que vi eu arregalei os olhos, nunca pensei que ela iria se precipitar nesse ponto.

–Ou o quê? –ela pergunta querendo respostas. Já como ela não a obtém observo sua expressão ficar indignada. Ela odiava quando era ignorada, tive que abafar uma risada e gargalhar no meu interior. Mas assim que percebeu a carranca que fazia, logo contornou e deu o sorriso debochado de sempre. –Ah, o gatinho perdeu a língua, é?

Então pareceu notar nossas expressões assustadas. Ou pelo menos a minha, porque alargou o sorriso para que eu pudesse “contemplar” os seus “lindos” dentes mais ainda. Como se aquilo não fosse o bastante. Imaginei o que aconteceria se ela mordesse a língua. Devia ser pior do que normalmente seria.

–Oh, vocês viram o que meu pai me deu de presente de aniversário? –ela passou a língua entre as presas como se fossem troféus. –Maravilhosas, não é?

–Para uma víbora como você são perfeitas, Tess. –retrucou Melanie imitando-a com o mesmo tom de voz, o que me fez soltar uma risada que sufoquei com a palma da mão. Ela parecia não ter se abalado com aquela surpresa. –Por que não fez o serviço completo? Poderia estar rastejando aí pelo chão como é de sua natureza.

Masie fez um ‘O’ com a boca como se não acreditasse no que ouvira.

–Mas isso é um ultraje! –ela exclamou, Tess mandou-a ficar quieta com um sinal da mão, colocando a palma virada contra ela.

–Ora, ora... Melanie... –ela cicia chegando mais perto, dou um passo à frente para indicar para ela não se aproximar, Tess me analisa de baixo para cima e vira o rosto novamente para minha amiga a minha esquerda com um olhar de desgosto. –A mais vulnerável... Mas vejo que não sabe fazer mais do que se esconder atrás de suas amiguinhas, não é? Só sabe falar, é tudo o que você tem.

–Palavras são fortes, víbora. –Melanie retruca, ela não parece brava, mas eu estava irada. Se esconder atrás de nós? Melanie pode rasgar a cabeça dela em um tapa se duvidar!

Ela apertou meu braço para mostrar que não precisava se preocupar com ela, Tess arqueou a sobrancelha com um ar ignorante e volta-se para todos nós. Sinceramente, ela não se cansava não?

–Não sei como vocês se aguentam. Seu povo é repugnante. –ela fala para mim, franzindo o nariz e curvando os lábios parecendo estar em carne viva para baixo.

–O mesmo se aplica a você.

Ela pareceu momentaneamente indignada com a comparação. Ela levantou um dedo em protesto e começou:

–A diferença entre nós...

–Ah, e isso é grande. Milhares de anos luz só para descrever nossa diferença, "querida". –cruzei os braços na frente do peito.

–E olha lá. -Alex concorda.

–A diferença entre eu e o seu povinho - ela continua ignorando nossas interrupções -, é que nós iremos vencer e vocês vão perder. Terão que voltar a se arrastar a nossos pés onde é o lugar de vocês. -ela fingiu fazer uma cara de dó o que só ficou mais sinistro ainda, em seguida ela nos olhou com desprezo e fixou os olhos em Melanie, fitando-a com nojo, o que ela retribuía da mesma maneira. Mas ela se dirigiu a mim quando disse:

–Logo não sobrará muito do seu pessoal vivendo, Annie Lembre-se disso.

–O que você quer dizer com isso? -Cam ao meu lado estremeceu, havia preocupação na sua voz. Apesar de poder notar uma ameaça maior do que as palavras superficiais que ela havia dito, para mim não se passavam de ameaças vazias.

Seu olhar assassino desviou-se para Cam. De esguelha pude vê-lo enfrenta-la sem medo, como normalmente ela impunha nas pessoas que ela atacava.

–Iremos mandar nosso recado. Não são apenas vocês que podem jogar. Vamos igualar nosso placar, afinal, nunca acaba nossa brincadeira, não é? Em breve estaremos de volta e vocês não vão conseguir nos deter. -sibilou ela com a voz gutural. Nunca tinha percebido esse tom que ela estava usando, era maldoso... Mas era de um jeito diferente.

Decidi tomar as rédeas da situação. Aquilo estava ficando um pouco anormal demais para o meu gosto, mas isso não vinha ao caso. Ela não podia se impor assim comigo nem com os meus amigos. Ninguém nos amedrontaria.

–Você e mais quem Tess? Sua amiga Masie aí?

Ela olhou para mim e senti um arrepio gelado percorrer pelo meu corpo causado por um vento frívolo. Mas não vinha dos corredores.

–Veremos.

Então antes que pudéssemos revidar, Tess continuou seu caminho com atirando-se com os ombros na frente de Alex, empurrando-a para o lado fazendo-a ficar furiosa. Masie a seguiu, nos enviando um último bufo de aviso.

Tess. Ah, vejo que a sorte não está em nosso favor... Tínhamos nos mudado com a esperança de não encontra-la, mas tivemos uma bela surpresa ano passado quando ela apareceu espantosamente com uma falsa animação na mesma sala que nós. E esse ano novamente. Maldita. Queria poder transferi-la para a época dos Jogos e coloca-la na arena só para vê-la morrer lentamente por um dos carreiristas – ou pelo menos era o nome de que eu lembrava que a minha mãe dissera que se chamavam. Afinal, não era ela que repetia sem parar que queria voltar para a época dos Jogos? Eu ficaria muito alegre por poder elimina-la de nosso tempo e trazer a felicidade para toda a humanidade.

–Aquela... aquela... –rosnou Cam, tornando-se o inverso do que geralmente ele era – pacífico. Alex e Melanie não demoraram e correram ao seu lado, postando-se atrás dele e cada uma segurar um dos seus braços com firmeza. Ele se contorcia violentamente a fim de conseguir ficar livre das duas para extravasar sua fúria na própria pessoa que o causou; seu rosto estava vermelho de raiva e sabia que Tess não teria a menor chance caso ele fosse solto.

Bem que gostaria de ver a cena, mas infelizmente sabia que não podia. Era isso o que ela queria: meter meu amigo em problemas.

–Me soltem! –ele rosnou contraditório. Estava atenta aos seus movimentos para conseguir segura-lo se ele conseguisse escapar dos braços das duas, o que eu tinha certeza que Alex não deixaria. Ele continuou com um sibilo ameaçador: - Eu quero socar aquela cara ridiculamente feiosa e quebrar aquele sua tão “adorável” plástica de nariz.

–Acredite, Cam, todos nós queremos. –Alex assegurou para ele dando um tapinha em seu ombro tentando tranquiliza-lo ao mesmo tempo em que apertava seu braço para deixa-lo preso e mantê-lo sob controle.

–Sim... E como. –suspirei concordando com a minha amiga. Estava a frente delas e agora mantinha meus olhos nas costas da víbora que se afastava gradualmente. Ela empurrou um dos estudantes do primeiro ano que colidiu com os armários estrondosamente, caindo logo em seguida. Balancei a cabeça, repreensivamente. Aquela garota não tinha concerto, achava-se a dona do mundo sendo que não passava nem perto disso. Era mais como uma praga.

Minha atenção voltou-se quando Cameron deu um forte puxão nos ombros para ver se conseguia desgarrar-se das meninas. Não deu muito certo. Alex parecia não se incomodar muito com as tentativas evasivas dele, nem parecia estar muito cansada ao detê-lo de correr para longe, não aparentava estar se esforçando muito também. Era como se utilizasse apenas um terço de sua força total. Tinha a expressão destemida de que não o soltaria tão facilmente. Isso era típico dela, parecia que tomar conta de grandalhões como ele era algo do cotidiano.

Bem, ao contrário de Melanie que arfava e parecia prestes a abrandar a pressão que fazia sobre o braço esquerdo de Cam. Iria sugerir para deixar por minha conta, mas ele parecia acalmar-se aos poucos e soltei a minha respiração quando ele finalmente cedeu. Alex soltou-o fazendo uma careta e massageando os próprios ombros enquanto Melanie arquejou e deu um longo gemido de alívio ao cair no chão abraçando os braços – ao que parece – doloridos.

–Vocês não deviam ter me impedido, meninas. –ele tornou-se zangado conosco. Olhou para cada uma de nós três. –Podíamos ficar livres dela esse ano!

–E o que você faria? Jogaria ela em um túnel de escavação e depois explodiria ele? –Alex provocou, voltou-se para mim com as palmas viradas em minha direção em uma forma de desculpas. –Foi mal, não queria fazer essa relação.

Gesticulei indiferente para ela não se preocupar. Meu avô tinha sido morto por uma explosão enquanto trabalhava nas minas de carvão, mas isso não me afetava tanto. Minha mãe falava muito dele, porém não gostava muito que tocássemos no assunto. Sei que pode parecer estranho, mas era mais algo de: se ela queria falar, ela falava; se não queria, não adiantava nem ficar de joelhos e implorar. Ela não abriria a boca. Outra coisa: embora soubesse de muitas coisas dele, não o conhecia direito. Pode parecer meio frívolo, porém mesmo que sentisse sua falta, não me importava tanto quando as referências se ligavam ao caso de sua morte, como agora. Mas sabia que Alex teria que tomar cuidado se falasse algo assim perto da minha mãe, mas não perto de mim.

Cam respirou fundo, virou-se para Melanie e desculpou-se, ajudando-a a se levantar. Ela parecia melhor quando ele voltou a falar.

–Não, Alex, mas deixaria ela saber o que enfrentaria caso se metesse com a gente de novo.

Melanie bufou, ajeitando a mochila nas costas.

–No máximo que você conseguia iria ser expulso. Você sabe muito bem que não iríamos conseguir. Não que eu queira dizer que você não a espantaria, mas... Acho que deu para entender.

Nós quatro inspiramos e soltamos o ar no mesmo tempo, causando um cômico coro de suspiros pesarosos.

–Ei, devíamos combinar de fazer algo assim de novo. –Alex riu, referindo-se ao coincidente acontecimento dissolvendo toda a tensão da ocasião passada.

Meneei a cabeça, com um sorriso aparecendo nos meus lábios. Alex sabia ver as melhores coisas em toda situação ruim que acontecesse, trazendo-nos a alegria sempre que ficássemos tristes. Pude notar todos se virando para a garota que dava de ombros ingenuamente.

–Vamos lá, baixinhas. Temos uma aula a seguir. –Cam quebrou o silêncio. Passou a mão no cabelo de nós três despenteando-os com um riso brincalhão aparecendo no rosto e nos empurrou para o corredor. Odiávamos essa mania de Cam, ele podia se passar por um estudante universitário, mas para nós ele seria sempre um aluno do jardim de infância.

–Eu já disse que você é insuportavelmente irritante, garoto? –Melanie reclamou arrumando os cabelos bagunçados e novamente tomando a minha guarda para que eu possa andar melhor. Meu pé parecia estar necrosando. (exageros, a parte).

–Acho que essa é a quinta vez hoje. –ele torceu a boca, pensativo, com os olhos virados para cima.

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Ah, eu tenho uma baita sorte. Eu não acredito.

Sim, essa é mais uma ironia.

Olha só, estávamos na sala. Tínhamos pegado os lugares de sempre. Aqueles que pegamos todo dia. Meio da sala, canto, perto da janela. Melanie na minha frente, Cameron ao meu lado e Alex ao lado de Melanie. Cameron estava curvado na carteira lendo e Alex parecia rabiscar algo em um papel. Já tinha uma ideia do que aquilo seria, e não estava tão animada assim.

Melanie comprimia os lábios olhando para todos os lados. Varria a sala com o olhar, analisando cada pessoa da sala antes de voltar-se para mim que a observava entediada.

–Parece que por enquanto não tem ninguém novo. Apesar de eu achar que àquela menina de cabelos loiros não seja daqui. –ela apontou com o queixo uma garota miúda na frente da sala, tinha um grupinho a sua volta que não parava de rir. A menina parecia um pouco incomodada com toda atenção, porém acompanhava a alegria das outras.

–É, acho que nunca a tinha visto antes. –concordei vagamente.

Lembrei-me do Will e do que aconteceu hoje de manhã. Nossa, tudo o que eu queria era voltar para a cama e dormir. Tinha acontecido muita coisa para um dia só. Olhando pelo lado bom, não havia sido tão monótono quanto à maioria dos dias, não tinha passado nem perto.

Torcia para que o ruivo não ficasse na mesma sala que eu. Na verdade, estava meio que discutindo comigo mesma se queria ou se não queria que ele ficasse na mesma sala que eu. É, meio conflitante, o que chegava a ser irônico.

Olha lá! A ironia de novo.

Meu dia ia ser cheio. Suspirei, cansada. Melanie continuava a falar, mas não realmente entedia suas palavras. Era a famosa tática de estar prestando atenção em alguém quando o que você está fazendo mesmo é pensando em outra coisa completamente diferente. Como nas aulas mais chatas da escola. Eu acho que Alex fazia isso o tempo todo.

Imaginava se o dia do meu irmão estava sendo melhor que o meu. Provavelmente.

E também o que meus pais estariam fazendo. Deviam estar em alguma festa em casa, o que era injusto. Eles devem comemorar quando se viam sozinhos por um tempo. Eu e Fynn ocupávamos quase todo o tempo deles, o que me fazia se sentir culpada.

Minha mente rodou até chegar à discussão de Tess. O que ela queria dizer com tudo aquilo? Não queria demonstrar, mas estava preocupada. Ela e os pais andavam sumidos ultimamente. Está bem, pode ser as férias, mas se fosse só isso eles não estariam agindo tão estranhos. Pareciam esconder algo importante, todo mundo percebia que havia alguma coisa.

O que era exatamente o que Will estava fazendo comigo. Escondendo coisas. Viu que beleza que era?

–Annie, você tá me escutando? –Melanie chamou minha atenção batendo o meu caderno sobre a mesa com força, fazendo alguns alunos por perto se virarem para nós.

–Éer, sim. Eu estou. –sacudi minha cabeça e apoiei minha cabeça nas mãos, fingindo ter escutado tudo e estar pensando a respeito.

–Aham. –ela murmurou. –E o que eu acabei de dizer?

Oh, droga. A pergunta que encurrala a todos. Eu odiava aquilo, detestava. Minha cabeça viajou para a Nárnia e depois voltou com esperança de ter extraído alguma palavra chave do que ela dissera; nada. Parece que estava bem dispersa.

Fui salva por Alex que espreguiçou as pernas no corredor, bloqueando a passagem de todos que tentassem ir por ali, e fixou os olhos em nós três. Depois exclusivamente para nós duas já como Cam basicamente não existia ali quando se tratava de ele estar com letras a sua frente.

–Gente, olha o que eu fiz. –ela anunciou orgulhosa, virando o papel que estava rabiscando para nós conseguirmos ver o que ela havia escrito.

–“Sou uma garotinha feliz e linda. Olhem para os meus cachos divos.” –leu Melanie com as sobrancelhas unidas, boquiaberta. Vi o desenho muito parecido com o nosso professor de geografia, no qual tinha cabelos cacheados e bochechas gordas que Alex sempre ficava apertando. Tinha o apelidado de ‘bochecha’, ou como ela falava: ‘checha’. –Você fez mesmo isso, Alex?

A garota ao menos adquiriu alguma expressão nova. Apenas deu de ombros, indiferente.

–Claro, por que não?

Respirei fundo. Ia acontecer tudo de novo...

Passamos algum tempo conversando. Alex implicava com Melanie sobre o papel, e eu ficava sonhando acordada, como sempre fazia. Decidi que seria melhor ler alguma coisa e pedi emprestado algum dos livros que Cam trazia para a escola. Cameron sempre levava dois livros diferentes por aí, não importava se ainda estivesse no começo do livro principal.

Os professores sempre se atrasavam na primeira aula, então consegui ler umas boas quinze páginas antes que mais um aluno chegue.

Santo Poseidon, isso que era atraso. Até Alex não chegava tão atrasada assim (mesmo que tenha um dia que ela simplesmente chegou meia hora depois da aula e deu uma cambalhota no chão para que ninguém a veja pela janela e foi para a biblioteca que ficava ao lado, mas isso era uma exceção).

O que mais me surpreendeu foi ver quem era. O ruivo, a abóbora ambulante, estava ali.

Quando Will entrou na sala em toda sua presença de espírito e normalidade, escutei vários suspiros das meninas ao meu lado. Inclusive de Tess.

O que elas viam nele? Ele era apenas um garoto normal, não era? Então pra que tanta atenção?

E espera um pouco... Tess!? Oh, não... Esse garoto estava com sérios problemas e vejo que sou eu quem vai ter que tira-lo dessa. Ah, por favor, da Tess?! Iria arrancar os membros daquela menina fora e depois tacar na fogueira fazendo um ritual bem especial só para ela. Ela não podia suspirar daquele jeito com Will! (não falem nada, ok? Já tive muita humilhação por hoje e eu ainda não acredito que pensei nisso).

Se aquela... víbora aproximar-se com seu sibilo venenoso para cima dele, não vou conter Cameron da próxima vez que ele quiser ir dar um gancho de direita nela. Na verdade vou acompanha-lo e segurar o saco de pancadas para ele bater.

Comecei a ficar irritada. O que não era natural vindo de minha parte. E que pensamentos são esses? Desde quando fui tão protetora com aquele ruivo perturbante?

Melanie, a minha frente, ajeitou seu cabelo para trás da orelha e, apesar de ela ser uma de minhas melhores amigas, eu tive uma tremenda vontade de partir para cima dela com uma voadora. Ela estava enrubescida? ELA ESTAVA ENRUBESCIDA?

Minha atenção se desviou quando Will passou perto de mim e sentou atrás da minha carteira - onde havia uma vaga já como o antigo dono foi transferido de escola ano passado, acabando por ter que se mudar de distrito. Mas isso é outra história, enfim. - roubando mais suspiros das meninas que sentavam ao redor. Mas que sorte. Simplesmente o melhor dia da minha vida.

E sim, isso foi mais uma ironia. Estava divertida hoje, não? Notam meu tom de sarcasmo.

Senti um dedo cutucar minhas costas, não me virei, porém escutei a voz bem conhecida do ruivo sussurrar no meu ouvido como se nada houvesse acontecido:

–Eai, Annie? Que sorte eu vir para a mesma sala que a sua, não é? Desculpa por mais cedo... seu pé está melhor?

Ignorei suas perguntas por ora. E só pensei comigo mesma: é, sorte. Tudo estava as mil maravilhas. Que legal. Agora tinha que aturar todas as cabecinhas femininas viradas para ele. E não podia disfarçar que estava com raiva disso. Só faltava ele retribuir o sorriso daquelas pervertidas, o que iria piorar ainda mais minha situação. Mas por enquanto, que ele não fazia isso, eu me limitava a ter a raiva concentrada no garoto atrás da minha pessoa que era o centro dos cochichos das meninas de agora em diante. E da atenção delas. E como havia dito, provavelmente teria que ficar a aula inteira vendo os olhares cheios de mensagens escondidas sendo direcionadas para o ruivo. Argh. Aquele instinto protetor me dominou de novo. Por que será que eu estava com vontade de me apoderar de todas as armas de Panem para atirar em cada uma dessas cabeças ocas que se lançavam indiretamente para cima de Will? Que raiva. Estou fazendo de novo.

Fiquei com vontade de levar o cotovelo para seu rosto, mas me contive. Sei muito bem que poderia dar uma desculpa de “foi sem querer”, mas preferi não arrumar confusão no primeiro dia de aula. O que iria ser bem complicado.

–Não consigo acreditar ainda na minha tamanha sorte que tive nesse dia maravilhoso. E sim, está melhor, obrigada. –dei ênfase em “sorte” e “maravilhoso” com um tom de deboche, não disse nada sobre o perdoar. Não que estava bravo com ele, ou nada parecido. Só precisava de explicações coerentes vindas dele de como ele foi parar no meu distrito. Eu ainda estava achando que ele tinha pulado do trem quando chegou à trilha do 12. Por que outra razão havia aparecido? Minha mãe não tinha dito nada que Gale ou Agatha apareceriam por hoje. Muito menos que eles colocariam ele na mesma escola que eu por aqui. Por enquanto a única resposta que tinha era o nada. O lindo e maravilhoso nada. Isso não é comovente?

Para onde ele estava olhando, afinal de contas? Ou deveria perguntar: onde a mente dele estava?

Eu acho que deveria ter ficado com Fynn na escola dele, por hoje. Poderia pular o muro e tcharans, estaria com ele e não nesse sufoco.

Will estava prestes a abrir a boca para dizer mais alguma coisa quando o professor entrou na sala. O professor de história. O Sr. Chang. Ele era um senhor de meia idade, calvo e de barbas brancas que se estendiam quase até tocar o chão. Vivia andando recurvado mesmo que todos os seus colegas de trabalho o repreendesse para andar mais ereto (sendo que ele conseguia com perfeição mesmo sendo velho daquele jeito, porque eu já o vi andando direito quando a diretora havia visitado a escola e passado perto dele... Também o vi arrombando o depósito de comida da escola e roubando uma caixa de rosquinhas, mas isso não vem ao caso).

O professor trajava hoje uma roupa que parecia ser de um mago. Sério, era uma longa capa azul pálido com um capuz atrás no qual mantinha abaixado tampando seu rosto enrugado. Usava os usuais óculos com lente grosas que deixava na ponta do nariz pontudo (na realidade, deixava tão na ponta que pensava que iria cair quando tinha os ataques de tosse que às vezes vinham à tona. Não sabia se ele se esquecia de arruma-los ou se só tinha preguiça de levanta-los.), normalmente ele inclinava a cabeça para trás a fim de conseguir enxergar alguma coisa.

A pergunta que rodava a minha cabeça era: por que cargas d’água ele estaria vestido daquele jeito? Estava dando boas vindas para os alunos novos? Porque não era bem algo que eu faria se fosse ele. Talvez tivesse visto no livro “100 maneiras de um professor saudar educadamente [ou deploravelmente] os alunos”.

–Bom dia, classe. –sua voz rouca e baixa disse no alto falante que carregava pendurado na orelha esquerda. Começou a usar esse troço no meio do ano passado, para nosso azar. O aparelho chiava constantemente e meio que fazia todos nós perdermos a concentração na aula, ou seja, a tática que ele usara para ajudar os alunos a entenderem-no melhor só estava atrapalhando. Acho que preferia decifrar o que ele falava por leitura labial. Seria bem mais fácil.

–Bom dia, professor. –alguns poucos alunos responderam. Não éramos os alunos mais “entusiasmados” da escola, por assim dizer, a maioria ficava quieto no seu canto. Antigamente eles nos pressionariam a falar o bendito ‘Bom dia’ que nos forçavam a falar como se fosse mudar completamente a vida deles se nós disséssemos as simplórias palavras, porém agora eles eram mais daquela área de “não me importo com o que vocês fizerem, estou aqui só para ganhar o meu dinheiro”, se é que me entendem. Pelo menos a maioria dos professores, ainda tinham alguns que se importavam.

Esse professor, em particular, não era desses. Ele era legal... só um pouco velho demais para se esforçar tanto como antes. Ele tentava fazer as aulas ficarem divertidas apesar de quase ninguém acha-las. E bem, estava acabando de descobrir que esse era um desses meios de “entretenimento” na aula para não deixa-la entediante.

Digo, a capa de mago e tudo mais.

Alex gostava desse professor, então não falávamos muito dele. Ela surtava quando dizemos algo que o ofendia de alguma forma, então acabamos não soltando nem um pio a respeito do Sr. Chang.

Cam ainda estava lendo o mangá quando a aula começou. Ele o escondia por entre a apostila e o professor mal parecia perceber. Alex tinha se inclinado na cadeira para conseguir – como se fizesse alguma diferença – chegar mais perto, interessada. Melanie havia bocejado com sono e eu continuava com minha cabeça em outro lugar.

Como conseguiria extrair a resposta daquele mistério de Will?

“---------------“--------------------”------------------------------”---------------------------”-------------“

Sinal. Ah, que lindo sinal.

Ele tocou bem no momento; o rugido do meu estômago estava prestes a acontecer quando foi abafado pelo berrador da escola. Suspirei e acariciei minha barriga como se fosse um felino para ser domado.

Tínhamos tido aula de História nas duas primeiras aulas, o que acordou Alex momentaneamente. Ainda não tinha entendido o porquê da capa de mago do professor, talvez seja só o novo uniforme dele; quem sabe. Ele só havia falado de forma concisa sobre o que iríamos estudar nesse ano: os Dias Sombrios, os Jogos (no qual vi os olhos de Tess brilhar ao serem proferidos), a rebelião (dos quais meus pais participaram, o que me deixava meio desconfortável) e toda a baboseira que nós já sabíamos decor. Só que agora eles diziam com mais detalhes e parecia que Alex adorava os detalhes. Não era de se espantar, afinal de contas. Estava aliviada por não precisar estudar mais as coisas do ano passado. Aquilo era a coisa mais entediante de toda a galáxia – havíamos estudado a época antes de Panem.

Mas de qualquer jeito, Alex tinha cochilado na terceira aula. Que era sobre, ah, não importa na verdade. Alex dormia em todas as aulas exceto História.

O burburinho começou quando o professor saiu da sala. Tínhamos meia hora de intervalo, o que era nada proveitoso já como não dava para fazer quase nada. Porém era melhor do que vinte minutos, o que o coitado do meu irmão tinha que conviver. E que antes era eu. Alex tinha deixado a cabeça desmoronar, debruçando-se sobre a carteira no mesmo instante, caindo em um sono profundo. Melanie estava vasculhando a mochila à procura de algo e Cam havia começado um livro novo. Nunca havia visto aquela capa antes.

–Annie? –Will me chamou, por trás. Ah é, tinha esquecido que ele estava aqui. Maldição, por que ele tinha que ter me lembrado? –Annie, olha eu sei que está chateada comigo...

–Chateada? Will, por que você está escondendo coisas de mim? É só me dizer o que é. –agora tinha virado completamente para ficar de frente a ele.

Ele hesitou por um momento e eu inclinei a cabeça para frente em expectativa.

–Eu... eu não posso. –suspirou pesarosamente. Grunhi de frustração por ter ouvido aquilo. Como assim não pode?

Coloquei minhas mãos na sua carteira, não gostava de ficar brava com ele. Eu me sentia culpada. O que era uma tortura já como eu não tinha feito nada. Custava ele me dizer? Deslizei minha mão até que encontrasse a dele e tentei falar mansamente:

–Sabe, Will... eu não vou dizer para ninguém. Eu prometo.

–Não é por causa disso, é que simplesmente eu não posso dizer... ainda. –ele sacudiu a cabeça. Aproveitando a circunstância ele agarrou minha mão e a entrelaçou entre seus dedos. –Desculpa.

–Ainda!? –exclamei confusa. –O que você quer dizer com o ‘ainda’?

Will não teve a chance de responder porque um bando – sim, bando – de garotas foram se acumular a sua volta. Ele, para falar a verdade, ignorava todas elas, só que as outras não se importavam e tentavam cada vez mais chama-lo para ‘conversar’. Uma queimação forte e bizarra subiu pelo meu corpo quando elas começaram a dar em cima dele. Uma apoiou a mão na mesa e empurrou as nossas mãos que estavam dadas para longe, fazendo-me soltar-se dele. Eu parecia uma garrafa de refrigerante prestes a explodir, e elas eram os mentos que caíram lá dentro. Uma raiva crescente apoderou-se de mim e no momento seguinte havia uma garota segurando a cabeça, acariciando os cabelos como se alguém os houvesse puxado, outra estava entrando em pânico com a mão na orelha e várias outras corriam para fora da sala olhando-me com um pavor enorme.

Eu acho que eu gritei... e tenho uma leve impressão de que fui a acusada de quem fizera aquilo com as garotas.

Ah, elas mereciam de qualquer jeito. Estava sentada na minha carteira e não havia me levantado nenhum momento para realizar aquelas proezas. Hm, eu só fizera aquilo porque eu tinha algo a tratar com o Will. Nada mais, nada menos.

–Obrigado. –Will falou para mim, me olhando perplexo. –Eu acho.

–Você ainda tem que me explicar muitas coisas, ruivinho. –lembrei-o, Will parece ter tido a breve esperança de que eu esquecesse, porém não iria ser tão fácil assim.

–Mas não é nada demais. –ele protestou. Da maneira que ele falava dava para notar o tom impaciente de fugir daquele assunto.

–É sim. Por que você tá aqui? Por que não me dissera antes que iria vir? Sua irmã também veio? E por que você usou “ainda”? –despejei para cima dele. Olha; eu só queria saber essas respostas. E entender o que ele havia escondido de mim nas férias por tanto tempo. Talvez não fosse nada extraordinário mesmo, no entanto eu tinha que saber.

–Eu até te contaria, mas não sou eu quem tem que te dar essas respostas. –explicou com suavidade, tentava me acalmar e eu não podia negar que eu já estava farta daquilo. Odiava quando escondiam coisas de mim, mas odiava ainda mais quando precisava ter que parar de falar com alguém quando algo assim acontecia. Eu sei, sou muito fraca. Alex sempre conseguia me vencer nesse quesito, enquanto eu era alvo de todas as ameaças possíveis dela até que eu diga o que quer que ela queira. Era justamente por isso que não conseguia esconder coisas daquela garota. E por essa razão ninguém me contava quando fazem alguma surpresa para ela, ou quando se refugiavam dela no dia em que estava com os nervos à flor da pele, até seus pais nunca mais me diziam quando iriam fazer algo de especial para a filha no qual a mesma não poderia descobrir antes do tempo. Talvez eu devesse chamá-la para arrancar do ruivo o que ele escondia.

Dei um longo suspiro e pelo canto do olho pude notar que Melanie me encarava com as sobrancelhas franzidas. Conseguia interpretar muito bem suas expressões faciais para saber que ela estava tentando descobrir como que eu o conhecia. Ela devia ser uma das muitas “vítimas” de Will. Que transtorno.

Cam também havia se desviado do livro e me olhava de uma forma engraçada. Agora aquele era impossível desvendar as suas feições. Podia muito bem estar inventando ocasiões de como eu tinha feito as garotas correrem para longe de Will como poderia pensar se tinha lasanha no almoço.

Alex estava dormindo ainda. Pois é, ela tinha sono pesado. Só não seria eu quem a acordaria quando a aula recomeçasse. Nem queria ficar perto de quem fosse.

Acabei com um desânimo para explicar a todos sobre o Will e não tive tanta animação para perguntar a ele a última pergunta:

–E quem é?

Ele não respondeu tão rápido quanto as outras perguntas. Observava a janela e o tempo lá fora. Quase podia ler sua mente ao pensar “como queria estar lá e não aqui”. Meu filho, se você não tivesse começado, nada disso aconteceria.

–Agatha. –disse por fim, depois acrescentando: - E Gale.

–Então eles estão aqui! –ri com minha dedução que não era tão difícil de entender, mas quando se tratava de mim, era algo bem grandioso. Ou não. Bom, tanto faz, o importante é que eu acertei (mesmo se é algo bem óbvio, se não como ele teria chegado?) – Espera aí... Eles estão aqui. –falei com outro tom de voz. Mais puxado para o rancor do que a felicidade. –Por acaso meus pais sabiam disso?

Ele piscou, parecendo desnorteado.

–Não.

Sacudi a cabeça, eu gosto que os três tenham vindo, só esperava que eles houvessem avisado antes. Eles sempre avisam, e tinham nos pego desprevenidos. Pelo menos a mim. Olhei para o relógio e ainda tínhamos vinte minutos. E lá se vai meu intervalo... Fui me virar para buscar alguma comida na minha mochila e dei de cara com Alex, que estava com os olhos saltando das órbitas e me olhava como se eu fosse um pedaço de carne.

–Você... vai... morrer... –falou pausadamente e logo em seguida se inclinou e mordeu meu braço com força. Eu tive que me conter para não gritar de susto, agarrei a cabeça dela e a afastei de mim, Cam estava de um pulo em pé com uma garrafa de água na mão, pôs a garrafa em cima de sua cabeça e virou o lado, derramando a gelada água na garota, acordando-a de vez.

Ainda estava desconcertada pelo que ela fizera, olhava para o meu braço que tinha a marca ainda rosada de seus dentes contra a minha pele. Meneei a cabeça, incrédula. Intercalei minha visão entre meu braço babado e Alex com a mão no rosto secando a água do rosto molhado; ou pelo menos tentando expulsar algumas gotas que cobriam os olhos e o nariz. Parecia estar completamente desperta porque rodeava o local como se pensasse onde estaria e como havia parado ali.

Limpei meu braço na camiseta e enviei um olhar de censura para Alex, que levantou os ombros como se não tivesse feito nada. Já estava acostumada a passar por isso.

–O que aconteceu? –Will era o único assombrado naquele lugar. Ele estava com o rosto tão assustado que tive vontade de rir. Levantando-se, o ruivinho foi até mim e segurou meu braço, relutante, olhando para a marca da mordida que minha amiga fizera em mim. Depois ergueu a cabeça para me encarar. –Você... como...

–Já me acostumei. Alex faz isso de vez em quando. –certifiquei, tentando o relaxar. Acho que não deu muito certo. Ele continuou segurando meu braço com uma preocupação exagerada. –Alex não tem nenhuma doença, pode ficar tranquilo. –ri, pensando se era mesmo verdade. Bem, estava viva até agora. E Alex quase vivia comigo nos períodos escolares; estar sã e salva nesse tempo todo já era uma grande vitória considerando tudo pelo que ela nos obrigava a passar.

Enquanto todos estavam se olhando mutualmente, pensei a respeito do que Will havia me revelado. É, seria bem melhor tirar as respostas de quem era a responsável por isso, e tinha um leve pressentimento de que Agatha que bolara essa ideia. Recordei de como ela nos observava naquele dia de partida no trem, na época do aniversário de Will. Sabia que tinha alguma coisa por trás disso.

Limpei a garganta e tentei me levantar, com o maldito machucado no pé. Torci a boca imaginando que poderia ser pior do que uma simples torcida... na verdade estava com um forte instinto de que não era um mero machucado, porém teria que esperar até todas as aulas acabarem para descobrir. Mais um estímulo para aguentar até o fim, mal tinha começado a escola e já queria que estivesse no final. Will que segurava meu braço acabou me ajudando após eu ter uma experiência quase morte de cambalear para o lado sem equilíbrio (detalhe: a ponta da minha carteira estava na direção de minha queda, apontada para minha cabeça).

Melanie havia se aproximado e olhava para Will com curiosidade. Resisti ao impulso de fazer algo realmente estúpido e fui apresenta-lo aos outros.

–Gente, esse é o Will. Ele é irmão da esposa do meu tio Gale. Nos conhecemos desde os dez anos. –fiz uma tosse forçada e acrescentei: - Infelizmente.

Will riu e me abraçou pela cintura aproveitando a minha incapacidade de fugir.

–Infelizmente? Ouvi dizer que foi a melhor coisa que já aconteceu na sua vida. –ele comentou e eu dei uma cotovelada na sua barriga, olhei para seu rosto como se perguntasse “do que você tá falando?!”. -Estamos bem de novo? –ele sussurrou para mim, esperançoso. Seus olhos verdes absurdamente intensos implorando para que a resposta seja sim.

–Por enquanto. –falo, cedendo. Voltei a encarar meus amigos, Melanie parecia hipnotizada quando o olhava, Alex tinha levantado a sobrancelha e eu não estava com muita vontade de saber o que ela pensava, Cam sorria de modo a mostrar os dentes, mordeu uma barrinha de cereais antes de se pronunciar.

–Então vocês dois estão juntos, huh? –perguntou mastigando o alimento, fazendo um gesto com a barrinha mordida para nós dois. Vi Melanie arregalar os olhos. Senti minhas bochechas queimarem. Por que raios ele havia pensado aquilo? Nós nunca... quer dizer, por que todo mundo...?! Desisto. Ah, eu desisto. Eu não... Argh.

–Claro que não! –praticamente berro, algumas garotas – aquelas corajosas, pelo menos, por ter ficado onde eu estava por tanto tempo – que ainda estavam na sala me olhando, desconfiadas, soltaram um suspiro de alívio ao escutarem a nossa conversa. Revirei os olhos, ainda enrubescida, olhei para Will que tinha ficado calado o tempo todo e percebi que estava pior do que eu.

Decidi mudar de assunto.

–Enfim. Will, essa é a Melanie. Eu, ela e Alex nos conhecemos há algum tempo, apesar de só termos a encontrado depois de uma discussão que ela teve com Alex sobre o lanche de atum dela. – apontei para a garota a nossa esquerda que ficou sem jeito quando ele estendeu a mão livre para cumprimenta-la junto com um sorriso esboçado no seu semblante hospitaleiro, tentando disfarçar o que acontecera mais cedo. Melanie foi sustentar-se na mesa depois de ter apertado sua mão e por um triz não a derrubou, por que havia ficado tão desajeitada? –Bom, esse é Cam. Ele chegou ano passado, e é o mais velho aqui... e o mais alto também, como deve perceber. –dei uma tossida para deixar claro que não estava satisfeita com isso. Will cumprimentou-o do mesmo jeito que havia feito com Melanie, Cam parecia animado por finalmente não ser o único garoto entre nós e passei para apresentar Alex, que estava com os olhos estreitados enquanto nos observava meticulosamente. –Hm, essa é a Alex, é a mais nova de todos. É um ano mais nova porque entrou mais cedo na escola, vai fazer quinze anos no fim desse ano. Nós somos velhas amigas, conheço-a desde a infância e... acho que você já tem uma ideia de como ela é...

Will assentiu, pegando meu braço novamente e roçando os dedos sobre a dentada que ela havia dado, parecendo entender o que eu dissera.

Quando ele foi a cumprimentar, ela segurou sua mão estendida com cautela, como se pudesse – de alguma maneira – queimar a sua palma. Depois, antes de soltar sua mão, ela advertiu:

–Se eu ver que Annie está triste por sua causa ou se for fazer alguma gracinha, lembre-se que eu vou estar de olho em você. E não escapará tão cedo assim de sua punição.

Estremeci quando ela terminou. O que ela queria dizer? Apenas deixei aquilo passar. Ela sempre fazia ameaças para as pessoas que ficavam perto de mim, então aquela não seria a primeira, muito menos a última ou a mais importante. Olhei para o relógio novamente e faltavam cinco minutos para que a tortura recomeçasse. Distribuímo-nos entre nossas carteiras e acabei nem comendo nada por ter ficado ocupada na conversa que estávamos tendo.

O sinal tocou e os alunos que tinham saído voltaram à sala, todos reclamando em voz alta. Todas as garotas passaram por Will na hora de se sentarem, propositalmente, e no meio disso eu me dei conta de que meus punhos estavam cerrados e que estava com a perna esquerda balançando inquieta. Não pude me reter quando estendi a mesma perna para o lado, no corredor, na hora em que Tess passava por ele, tocando com a ponta dos dedos na mesa de Will de um jeito que tive vontade de passar uma adaga por cima para corta-los.

Tess não notou minha perna ali, tropeçando por ela e caindo no chão. Recolhi a perna quando o trabalho estava feito e torci para que ela tivesse quebrado alguma coisa. Mas para a minha infelicidade, ela apenas virou o rosto com uma expressão assassina direcionada a mim. As cobras nas sobrancelhas moviam-se rapidamente agora, ferozes, deixando-me ver apenas um borrão dourado. Fingi ser inocente, fazendo uma cara surpresa e desviando o olhar da cascavel que balançava o chocalho para mim.

Virei o corpo para Will e o encontrei com a cabeça inclinada para o lado, seu sorriso torto e o olhar exótico cintilando para mim. Por que ele me olhava daquele jeito? O ruivinho alternou o olhar entre mim e a garota esparramada no chão, que agora estava levantando-se com esforço, e depois alargou o sorriso, de novo, com o olhar repousado em mim. O sorriso era acolhedor e terno, que fez os resquícios da minha raiva se dissolverem no ar.

–O que foi? –perguntei ligeiramente aborrecida, levantei meus dedos e esfreguei a parte entre minha têmpora enquanto dizia: – Por favor, não me diga que achou alguma garota aqui que o interessou porque...

–Não, não é isso, pequena Annie. –ele me interrompeu rindo. O modo como ele chamou meu nome me fez abaixar minha mão, olhando-o curiosa. Não havia ficado brava pelo apelido, apesar de dever. –Não... Nada.

Arqueei a sobrancelha, mas não abri a boca para falar.

Não consegui me concentrar na aula por culpa de meu pé, cada vez pior. E também estava ansiosa para chegar em casa e descobrir o que a Agatha teria para falar. Eu não era nem um pouco paciente.

Tive uma vaga noção de que a partir de agora, algo estava para vir. Não só por que Will estava aqui, Agatha teria o bebê e Gale seria pai, não por eu de alguma forma estar mudando ou pelas novas pessoas que conheci.

Tudo iria ser diferente, sim. E o que havia dito também ajudava. Mas algo martelava na minha cabeça dizendo que havia algo mais. Alguma coisa que tinha passado despercebido.

Talvez seja só a dor que me confundia, fazendo-me pensar dessa maneira e me fazer imaginar coisas; às vezes também seja a distração que Alex está causando por filmar o professor sem que ele note e deixando com que minha mente viaje...

Ou talvez não.


Explicações de alguns termos:


¹ Wolf’s Rain. – Anime e mangá; sinopse: O enredo se desenvolve em uma realidade alternativa, onde acreditava-se que os lobos estavam extintos há cerca de 200 anos, apesar de uma antiga lenda contar que, quando o fim do mundo estivesse próximo, o Paraíso apareceria em algum lugar na Terra, mas somente os lobos saberiam como encontrá-lo.

Com um misto de aventura e drama, ambientado num mundo que vai gradualmente se aproximando do fim, o anime se torna envolvente a cada episódio pelo sonho de um lobo que não vê outro futuro senão o Paraíso.


² Fullmetal Alchemist – Anime e mangá; sinopse: Depois de perderem sua mãe, Alphonse e Edward Elric tentam trazê-la de volta usando uma técnica de alquimia proibida. Contudo, o princípio básico da alquimia é a 'troca equivalente', e tentar ressuscitar alguém custa muito alto. Ed perde sua perna, e Al perde seu corpo. Ed consegue selar a alma de Al dentro de uma grande armadura metálica, dando em troca seu braço. Anos depois, Ed (com dois membros de metal) e Al (ainda preso na armadura) deixam a sua cidade natal. Ed, que possui um talento nato para a alquimia, se torna um alquimista com certificado nacional, e logo passa a ser chamado de 'full metal alchemist'. Mas o verdadeiro objetivo dos irmãos é encontrar a pedra filosofal, na esperança de recuperarem os seus corpos originais. Logo eles descobrem que essa mística pedra, que pode nem existir, é visada não só por eles, mas como muitas outras pessoas também.


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Notas finais do capítulo

Meu irmão me criticando por eu ter colocado jogos atuais em uma era futurística. *cofcof* Espero que não tenham se incomodado.
Bom, eu queria perguntar uma coisa aqui:
Eu posso colocar mais romance na fic? Tipo, hm... posso deixar como está, Annie narrando a maioria dos capítulos? E o que acontece com ela? Eu tenho medo de vocês não gostarem... então me avisem, está bem? Só vou ter certeza de que postarei o próximo capítulo a partir que eu receber comentários, eu fico tão triste quando ninguém manda suas opiniões. ):
PS: Já como esse capítulo ficou meio grandinho, eu o dividi. Pode ser que agora tenha umas coisas novas... do tipo de começar a aparecer er... acho que dá para entender. É porque a parte dois será mais ação e eu vou dar umas explicações vagas nesses próximos capítulos. Espero que tenham gostado e que gostem dos próximos.
OBS: Eu percebi que no capítulo da escola eu tinha trocado "Melanie" com "Madison", eu acho. Hahahaha, o nome certo é Melanie. Desculpa. u.u