Issues escrita por AHB


Capítulo 2
Segunda Parte




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Nos dias que se seguiram ela se sentou com um grupo de meninas. Eu não deveria me importar, mas aquele primeiro dia tinha sido legal, eu até esqueci da bronca que me esperava por ter xingado meu pai. Foi assim: no intervalo eu mostrei a escola para ela, ouvimos um ou outro comentário malvado, mas ela parecia simplesmente não ouvir – ainda assim parecia desapontada com o comportamento dos novos colegas – eu mesmo poderia ter sido mais simpático. Ela era extremamente simpática e conforme fomos conversando sobre rock, toda hora que faltava assunto ela fazia um comentário sobre algum clipe ou música e lá íamos nós. Percebi que a voz dela era baixinha e suave, um tanto rouca, mas não irritava e nem era aguda como a da Alissa, garota que só serviria ou num pôster ou muda. Eu não falava muito, talvez tivesse desaprendido, mas no dia seguinte, como não respondi o aceno dela – eu demorei a perceber que era comigo, é que eu tinha tomado uma dose extra de remédios para não pensar no monte de porcaria que meu pai tinha dito – ela fez que não tinha importância e foi sentar com um grupinho de aspirantes a patricinhas. ◊ realmente destoava no meio das outras garotas, comecei a ver que ela não era realmente feia, mas não era bonita, tão pouco: ela parecia estranhamente mais velha que as meninas, apesar de ser tão mirrada, algo como uma boneca de pano bem antiga no meio das barbies.


 


Não pensei mais nisso logo em seguida: dessa vez eu não tinha esquecido meu walkman e tinha música o suficiente, de um monte de bandas de new metal, cheias de acordes distorcidos e eletrônicos, se infiltrando pelo meu cérebro chapado com aspirina. Cara, eu odiava meu pai, ele era um fracassado, ele queria ser um fracassado e se sentia bem em relação a isso porque estava certo que eu ia ser igualmente um merda. Era assim desde que minha mãe tinha ido embora. Ele vivia falando que ela era ruim mesmo, apoiado pela minha madrasta, nossa antiga vizinha, aí eu defendia minha mãe, não sei porque, mas o fazia. Meu pai ficava bravo, eu me sentia muito melhor sabendo que ele estava bravo e jogava na cara dele o quão incapaz ele era e que se eu também era assim, era porque ele fora meu maior exemplo. Aí a minha madrasta se intrometia, falando um monte de bobagens que nem vale a pena citar. Nós três gritávamos um com o outro, eu ia para o meu quarto fingir que não ligava, meu pai ia para a garagem fingir que dessa vez ele faria nosso carro funcionar e minha madrasta ia ver TV, fingindo que já passou tudo estava normal. Mas nós três sabíamos que a sopa servida no jantar era rala e amarga e que não éramos uma família.


 


Aumentei o volume do walkman, não queria pensar nisso ou no que fosse... Não queria pensar em nada... O efeito das aspirinas logo fariam efeito, podia sentir, eu ia encostar na carteira e dormir até a quarta aula. Os professores não se importavam, os outros alunos não se importavam, as pessoas na rua então... Ninguém estava dando a mínima para os problemas dos outros. Problemas, problemas, problemas... Cada um se preocupa tanto com seus próprios problemas que nem lhes passa pela cabeça ajudar os outros... Quem o faz, ou é louco ou é santo e se dá mal de qualquer jeito. Raios... Eu tomei aspirinas, não era para minha cabeça estar tão pesada.


 


Acordei na enfermaria da Santa Casa. Virei para o lado e vomitei. Voltei a me afundar no travesseiro, quando uma enfermeira entrou e fez uma cara de nojo para o liquido amarelo-esverdeado espalhado no chão. Se a enfermaria não estivesse vazia, aposto que os outros iam pedir pra me expulsar de lá. A porta abriu novamente e meu pai entrou. Tentei fingir que estava dormindo, mas ele simplesmente desviou o vomito e se postou do outro lado da cama. “E essa agora moleque?” Não disse nada, cogitei vomitar de novo, bem em cima dele. “Me disseram que você se encheu de remédios até desmaiar. Seu burro, se quer acabar com sua vida, faça longe da minha casa” Era assim então? Naquela hora eu estava puto com o meu pai, mas depois, agora que eu revejo mentalmente a cena... No rosto dele havia preocupação, uma mínima ruga que deixava escapar que ele não era indiferente aos problemas do filho, mas naquela hora eu não vi e achei que ele não se importava, eu quis que ele não se importasse, para colocar mais um motivo na minha lista de sofrimentos. Fui egoísta, mas ele também: que custava demonstrar o mínimo de carinho numa hora que eu realmente precisava? Depois percebi que não faria diferença. Vai entender...


 


Dois dias depois eu estava completamente desintoxicado e como ninguém no hospital salientou que talvez eu precisasse de algum descanso, alguma ajuda, voltei para a escola.


 


É claro que ter uma pequena overdose no meio da sala não passa despercebido e todo mundo estava comentando, até a coordenadora perguntou se eu precisava conversar. Preferi me fechar na concha de sempre, afinal desgraça pouca é bobagem, pelo menos é o que dizem e logo o assunto desapareceu. E ◊ continuava lá, eu cheguei a pensar que aquela maluca fosse algum tipo de alucinação, mas não. Ela estava sentada algumas carteiras à frente, rabiscando no caderno e parecia totalmente real, inclusive porque vi claramente uma garota virar pra ela e pedir uma caneta emprestada. Fiquei um tempão observando o redemoinho de mechas castanho-claro firmemente atadas num coque. Então as patricinhas entraram e desviei o olhar para o decote da Alissa: eu precisava me distrair, oras!


 


“Jon, espera aí!” Eu demorei um pouco para registrar que era comigo. Mas antes que eu parasse e virasse a dona daqueles passos saltitados me alcançou. “Você ‘tá legal?” Até dois dias atrás eu estava reclamando que ninguém se preocupava comigo e agora, saber que ela se preocupava e não escondia isso, me deixou irritado. “É, estou melhor...” ◊ me encarou, ansiosa, como se estivesse se certificando do meu estado de saúde “Ah, que bom! Acho que foi porque o resgate chegou rápido” “Chamaram o resgate?” “Não sabia? Iam te levar pra sala da diretoria, mas eu chamei...” “Que?” Ela deu de ombros e passou por mim, indo encontrar uma garota da sétima série que fazia curso inglês com ela. Eu fiquei parado no corredor, ainda sob o efeito do balde de água fria que ela acabara de me jogar. Talvez a partir de amanhã eu tentasse ser menos rude com ela.



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