A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 8
Lembranças




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POV Estrela

— Ah, finalmente!

Logan suspirou, se jogando de volta na cadeira, enquanto ouvíamos os sons dos sapatos de Águas Claras contra o piso do corredor ficarem mais baixos à medida que ela se afastava e as últimas luzes do corredor se apagavam.

— Ora, você deveria ficar feliz por ela estar aqui, Logan – murmurei sarcasticamente, virando minha cabeça para ele. – A Curandeira lhe dá motivos para voltar a ser um Buscador de verdade. Bem, pelo menos você fica cada vez melhor na dissimulação.

— Buscador de verdade? É assim que você me agradece, Estrelinha? Me insultando por fingir em seu benefício? – ele questionou num tom ofendido. Eu sabia que não era verdade, mas fiquei arrependida de qualquer modo.

— Tudo bem, me desculpe. Não quis dizer isso, exatamente. É só que... Eu ainda não entendo o que você está fazendo. Quer dizer... Por que ainda não me entregou. Era... É seu dever obter informações, e agora que você as tem, simplesmente não...

Calei-me abruptamente. O que eu estava fazendo? Tentando fazê-lo cair em si e contar tudo que sabia para outros Buscadores? Mordi a língua.

— Ah, eu... hmmm, bem... eu n-não... – Logan engasgou. Respirou fundo e começou de novo. – Suas olheiras estão ainda maiores hoje, Estrelinha. Descanse, eu vou ficar aqui até você dormir. Não tem com que se preocupar mais por hoje.

Eu resmunguei, mas tremi ao lembrar que ficar acordada só me faria ter mais das minhas constantes crises de enjôos. Ele apagou a luz e puxou a cadeira para mais perto de minha cama, até estar apertado contra as beiradas de ferro.

— Boa noite, Logan – murmurei.

— Boa noite, Estrelinha – ele afagava meus cabelos, quase não os tocando, então começou a sussurrar uma canção de ninar, como fazia sempre desde que ficamos amigos.

Eu soube quando ele dormiu, antes mesmo da sua música chegar ao segundo refrão, a mão ainda sobre minha cabeça, o rosto sobre o braço apoiado no colchão. Não podia vê-lo no escuro, apenas sua silhueta, mas sua respiração mudou, ficando mais lenta e regular. Reconfortante.

Logan devia estar exausto de verdade, fazendo-me perguntas inúteis o dia inteiro, toda vez que Águas Claras entrava na sala. Fingindo fazer o que realmente deveria estar fazendo, indagando e reclamando por minhas respostas falsas. Mas agora ele sabia por que eu não responderia. E eu era extremamente grata por isso, apesar de não fazer idéia de como um guardião da paz poderia mudar seus conceitos de uma hora para outra, por uma quase desconhecida.

Suspirei. Minha cabeça girava, mas não tanto quanto meu estômago, se bem que isso não era nenhuma novidade.

Eu deveria tentar dormir. Deveria estar exausta também, mas o sono simplesmente não vinha. Então virei minha cabeça para a parede, apertando os olhos e respirando fundo.

“Jamie, jogue direito!”, resmungo.

Mas tudo que ele faz é rir e passar a bola para Mel. Ian se deixa driblar, e ela faz mais um gol para nosso time de duas.

“Incrível, realmente fascinante. Um Stryder e um O’Shea perderem pra duas garotas. Nunca achei que você descesse tão fundo, Ian”, Mel reclama, mas ela sabe o que eles realmente fizeram.

“Foi sorte, Melanie, apenas isso”, murmura Jamie com um sorriso maroto.

Eu reviro os olhos.

“Sorte, sim. Mas só se eu fosse estúpida. Não é de hoje que Ian nos engambela com esse truquezinho.”

“Como se fôssemos insuficientes para vencermos sozinhas!” exclama Melanie, exasperada. “Não jogo mais com vocês dois, não desse jeito.”

Ian ri, pegando a bola e girando-a nas mãos.

“Ian disse que isso se chama cavalheirismo” Jamie declara, dando de ombros.

“Eu digo que se chama roubo contrário. Vocês estão jogando mal de propósito para nós ganharmos, e isso só pode ser idiotice. Eu sei jogar, a Melanie também. ENTÃO DEIXEM-NOS JOGAR DIREITO!”

“Ai, Peg, não precisa berrar” Ian diz, se aproximando de mim. Eu cruzo os braços e viro para o outro lado. “Tudo bem, querida. Deixaremos vocês perderem desta vez. Mas só desta vez.”

Ouço Melanie dar um bufo debochado.

“Gostaria de saber por que vocês não me deixam jogar como todo mundo. Você sabe que eu jogo bem”, reclamo.

Ele sorri e beija minha testa.

“Nós apenas não queremos que você se machuque, meu amor. Nós não queremos que algo aconteça a você.”

“Privar-me de jogar bola não vai resolver isso.”

“Fazer você se cansar, cair e ficar cheia de hematomas, tampouco”, ele devolve, o tom bravo e avesso à ideia.

“Da próxima vez, eu jogo com você, então”, digo, ficando na ponta dos pés e encostando os lábios nos seus. “Ficaremos juntos, e então você não vai ter desculpa alguma para vencermos injustamente.”

“Ou perderem de lavada!”, grita Jamie do outro lado do salão, e nós rimos quando Mel cria um grito de guerra para o time dos irmãos Stryder.

“Está bem, então”, Ian sussurra. “Ficaremos juntos da próxima vez. Sempre.”

Ele me abraça e eu deixo escapar um suspiro de prazer. E sei que é aqui que eu quero ficar para o resto da minha vida, dentro daquele lugar, dentro daquele abraço. Mesmo que eu não ganhe todas as partidas de futebol do mundo.

Algo dentro de mim gritou e eu sabia que estava tentando abrir os olhos, mas não consegui. Exatamente como no primeiro dia, as lembranças estão suprimindo o meu ser.

Nunca me cansaria de ficar observando-o. Nunca.

Sua face brilhava, sua voz se elevava em constante alegria. Ele estava cada dia maior, cada dia mais bonito. A criança das lembranças de Mel não existia mais. Agora Jamie era quase um homem, tomando suas próprias decisões e seus próprios caminhos para a maioria das coisas. Ele era tão forte e independente quanto qualquer outro agora. Aquilo sempre tinha sido visível. Mas meu Jamie nunca tinha parecido tão vivo e intenso quanto naquele momento, numa simples conversa alegre com uma bonita garota da célula de Nate. Os sorrisos dos dois eram tão imensos que era impossível não sorrir também.

“Ele está crescendo, não é?”, murmura Mel ao meu lado, repentinamente.

“Comparado a mim ele já está enorme”, respondo.

“Você sabe que não foi o que eu quis dizer”, ela resmunga, depois aponta para Jamie. “Olhe o que está acontecendo, Peg. Meu garotinho sumiu. Minha pobre criança agora não precisa mais de mim.”

“Sabe que ele sempre vai precisar de você, Mel”, eu sorrio para ela, tentando desfazer sua cara mista de raiva, frustração e um pouco de felicidade. “É o Jamie. Sempre será uma criança para nós.”

“Sim, mas agora ele não gosta de ser tratado como tal, muito menos do que antes. Ontem mesmo eu fui coloca-lo para dormir e disse que ficaria ao seu lado se estivesse muito escuro. E o que ele fez? Praticamente gritou comigo que não era mais um bebê e que não precisava mais de ninguém para ninar o sono dele.” Ela respirou fundo, de olhos fechados. “Dá para acreditar nisso?”

“Humanos são assim mesmo. Um dia eles crescem e o que antes era o conforto, passa a ser quase desonroso.” Suspiro, desviando meu olhar dele para Melanie. “Mas você não esperava que ele fosse o mesmo, não é? Depois de tudo isso, todos nós fomos obrigados a crescer para evitar mais dores. Jamie não seria exceção.”

Ela retesa os músculos, como para segurar as más lembranças no mesmo cantinho escondido que ela evitava. Por fim, solta a respiração e seus olhos brilham também, com lágrimas.

“Espero que ele seja feliz com isso, então.”, é o que ela diz.

Então voltamos nossa atenção para o garoto sorridente e tagarela na nossa frente, suspirando as duas ao vê-lo gargalhar com a garota, os dois perfeitamente alegres. Eu fito o brilho ofuscante no seu olhar espevitado e desejo sempre poder ver Jamie assim.

Senti meu estômago girar. Eu precisava acordar, algo estava rasgando minha garganta, queimando. Mas tinha alguma coisa pesando sobre minhas pálpebras, e eu não conseguia abri-las.

“Eu me lembro de já ter dito algo assim tempos atrás, mas... Isso não é tão emocionante quanto antes” Kyle diz, gesticulando e olhando impacientemente através da janela do furgão.

“Bom, sentimos muito por não estarmos proporcionando a emoção do perigo para você, irmãozinho”, Ian diz sarcasticamente. “Mas talvez você fosse mais feliz se estivesse sozinho por aí, sem ninguém para colocar os olhos na frente dos seus.”

“Não quero dizer que sinto falta de correr perigo”, Kyle revira os olhos. “É claro que não. Só estou dizendo que era bom ter alguma adrenalina correndo nas veias. Agora é simplesmente rodear as ruas, pegar as coisas, colocar no carro e ir embora.”

“E isso não está bom o bastante para você?”

“É, tá. Mas de qualquer jeito, sinto falta dos velhos tempos”, Kyle deixa um suspiro pesado sair, então começa a bater os dedos ritmadamente no painel do carro, apreensivo enquanto procuramos um canto discreto no estacionamento do supermercado para eles me esperarem.

“Falta dos velhos tempos!”, Ian resmunga baixinho.

Eu olho para cima, admirando o céu azul, lembrando-me de que eu conhecia cada segredo que havia na imensidão além dele. Lembrando-me de quando eu voava por ele, de planeta em planeta, convivendo com meus irmãos e com minha imortalidade. E eu não sinto falta disso. Nem por um segundo. Porque sei que não há lugar no universo em que eu tenha o que tenho aqui. Eu não sinto falta do passado, vivo sempre no presente, pensando no futuro e apreciando cada segundo com a consciência nova que eu tinha agora. De que é apenas aqui que eu quero viver para sempre.

Eu me ergui da cama com tanta força que a mesma deu um pequeno solavanco. Minha respiração saía em arfadas, como se eu estivesse embaixo d’água por minutos. Olhei para o lado para ver se eu não tinha acordado Logan, mas ele continuava dormindo na mesma posição, murmurando em seu sono.

Minha cabeça estava rodando e minha blusa estava colada no corpo pelo suor, assim como meu cabelo estava grudado no meu rosto.

Tentei puxá-lo para trás, para me livrar do calor insuportável que me deixava sem ar, mas o simples movimento dos braços me trouxe uma onda de náusea no estômago e minha garganta se fechou, obrigando-me a me arquear e apertar a mão contra boca até que conseguisse alcançar uma vasilha do lado da cama, onde pus tudo para fora.

Enquanto meu jantar ia embora com veemência, eu me fiz a pergunta inconscientemente.

Quem me impunha essas memórias? Quem me obrigava a vê-las toda vez que fechava os olhos? Sim, porque nenhum hospedeiro sonha por livre vontade se suprimido, e eu tinha a completa certeza de que a consciência desta hospedeira era agora inexistente.

Acho que me sentia como quando Peregrina habitava dentro de Melanie, a hospedeira que a fez chegar aos humanos a partir de memórias de sua vida com seu irmão e com seu amor, a hospedeira resistente que ela amava mais do que tudo. Mas essa era a diferença: Melanie resistira, sua mente não fora apagada, ela podia fazer com que Peregrina visse o que ela quisesse.

Mas não havia meios deste corpo fazer o mesmo, já que não havia mais ninguém aqui além de mim. Então, a menos que eu quisesse me lembrar, como esses sonhos que retornavam ao passado me invadiam nítidos e reais?

Eu acreditei na minha resposta para isso.

Peregrina, a Alma humana que rejeitou a sua espécie para viver com os hospedeiros da Terra, com seu amor avassalador que residia dentro do corpo que agora sou eu, conseguiu mudar os próprios fundamentos desta hospedeira.

Ela transformou, com toda sua intensidade singular, esta hospedeira. Mesmo que Peg não estivesse aqui, este corpo era ela. Todos os pensamentos e hábitos desta humana sem consciência eram inteiramente herdados de Peregrina.

E, portanto, apenas por ser ela, não havia meios de existir longe do apoio que a segurava neste planeta. Ela não podia ficar longe da sua casa, dos seus humanos, da sua vida — uma necessidade essencial, as suas sombras vivas de felicidade. Este corpo implorava por isso, ultrapassando todas as impossibilidades de fazê-lo sozinho.

Joguei água no meu rosto, me lavando numa tentativa inútil de me refrescar.

Não havia mais nada para fazer naquela hora, exceto tentar voltar a dormir, e tentar de todas as maneiras possíveis não sonhar. Mas agora não adiantava mais, algo na minha cabeça gritava e se repuxava, tentando me fazer ver a única solução para as múltiplas dores contínuas dentro de mim.

Então eu voltei para cama e, assim como as lágrimas nos meus olhos, uma nova ideia ardia em minha mente.


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Notas finais do capítulo

Esperamos que tenham gostado. Comentários são sempre bem-vindos.