A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 7
Infinito Roubado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/254366/chapter/7

In my eyes
Indisposed
In disguise
As no one knows
Hides the face
Lies the snake
The sun
In my disgrace
(...)
Black hole sun
Won't you come
And wash away the rain?
Black Hole Sun - Soundgarden

 

POV – Melanie

Eu nunca tinha querido morrer. Não de verdade. Nem mesmo quando mergulhei no poço escuro de um elevador. Ou quando tive que lutar com a força arrasadora que destruía minha consciência e a levava para longe daqueles que amo, para longe de mim mesma. Nem quando Jared me olhou com olhos mortos, sem me reconhecer dispersa dentro de meu próprio corpo. Não desejei a morte mesmo quando acordei achando que aquela que me devolveu tudo tinha partido, banhando minha vida em seu sangue prateado. Não de verdade.

Mas, embora nunca tivesse querido, eu sabia como era morrer. Eu me lembrava do elevador, meu corpo todo se quebrando e o sangue levando consigo todo o calor. Frio. Dor. Esquecimento. Eu me lembro dessas coisas. E tem algo que eu posso dizer sobre morrer. Não é uma coisa que se deva desejar, mas é mais fácil ter seu corpo do que seu coração dilacerado. Não me lembro nunca de ter sentido tanta dor como quando um pedaço de mim foi arrancado diante de meus olhos.

Por apenas um segundo, eu segurei o corpo de minha irmã nos braços, acariciando seu rosto inanimado. Mas eu tinha tido que deixá-la. Seu corpo bonito ficando para trás para que pudéssemos salvar Ian. Não tinha sido uma escolha difícil, no entanto, eu sabia o que fazer. Sabia que ela gostaria que Ian vivesse.

As conseqüências dessa escolha, porém, eram algo que ela nunca poderia ter previsto com precisão. Nenhum de nós poderia. Nenhum de nós estava pronto para se arrepender de cada segundo o tempo todo. Essa era a maior dor de todas, maior até do que a dor de sua ausência. Ter que acordar todos os dias imaginando como teria sido.

Como teria sido se tivéssemos ido embora um dia antes, deixando para trás o capricho bobo de comprar roupas novas para Jamie. Se não tivéssemos ficado naquele hotel ou sido prudentes e mantido nossos olhos baixos quando a amigável recepcionista acenou em despedida. Se tivéssemos tomado outro caminho, por outra estrada. Se Jared tivesse visto o Buscador que atirava de longe e o tivesse acertado antes. Se Peg não tivesse soltado a mão de Ian, deixando entre eles os poucos metros dos quais ele se arrependeria para sempre. Como seria se...

Naquela noite, enquanto esperávamos no escuro pela volta de Jared, eu pensava em tudo isso pela primeira vez. A dor estava me enlouquecendo e minha mente ameaçava se perder em meio a ela, quando Ian se mexeu em meus braços, soltando um gemido abafado.

Eu tinha a cabeça dele em meu colo enquanto segurava a camiseta de Aaron sobre a hemorragia. Tirei a camiseta para checar e pude perceber que Ian não sangrava mais. Estava escuro, mas o vermelho do sangue de um amigo que agoniza em seus braços é algo que se vê mesmo no maior dos breus.

Ian oscilava entre uma inconsciência atormentada e breves instantes de consciência em que eu só podia desejar que ele desmaiasse de novo. Os olhos dele naquele dia eram muito mais do que eu podia ver. Chegava a ser mais difícil do que ver a vida se esvaindo dos olhos dela.

E se ela não tivesse morrido? E se tivesse sido eu? E se fosse Jared sofrendo nos braços dela agora?

Mas eu estava viva. Jared estava vivo. Ian estava vivo. E eu tinha uma decisão diante de mim. Ou me entregava à dor, desonrando o sacrifício que um dia ela tinha querido fazer por mim, ou sacrificaria meu próprio luto para ser forte por aqueles que nós duas amávamos.

Quando Peregrina tinha me dado tudo, ela só tinha me pedido uma coisa em troca: que cuidasse de quem ela amava. Que cuidasse de Ian. E era isso que eu tinha feito.

Desde o instante em que ajudei Kyle, descontrolado e cego de dor a ponto de tentar levantar Ian sozinho, a acomodar o irmão encolhido no banco de trás do Sedan. Desde o momento em que apoiei o corpo cansado de Jared em meus braços, reparando nos riscos das lágrimas que cortaram a poeira em seu rosto. Desde o soluço que senti sufocado em meus ombros, enquanto tio Jeb enterrava o rosto em meus cabelos num abraço desajeitado no meio da escuridão, antes de entrarmos no jipe.

Naquele dia sombrio, voltamos para as cavernas em silêncio, as palavras mortas em nossas gargantas secas e sedentas, as paredes emocionais de nossa casa demolidas. Tanto que mesmo aqueles que nunca amaram Peg sabiam que aquela não era mais a nossa casa. Aquelas paredes tinham voltando a ser apenas um esconderijo.

— Será que estamos seguros aqui? – questionou Sharon baixinho.

— Não seja idiota, Shar! Mesmo que não estivesse morta, ela preferiria explodir o próprio cérebro antes de nos entregar – respondeu tia Magnólia, reconhecendo a grandeza de Peg, mesmo em meio à sua natural grosseria.

Eu gostaria que Peg estivesse aqui para ouvir isso. Gostaria que estivesse aqui para levantar Jamie, que tinha se deitado num canto escuro perto das fontes sulfurosas, numa greve de fome, de palavras e de lágrimas. Apenas vestindo a morte em si e arrastando minha alma com ele. Gostaria que ela estivesse aqui para dar as mãos a Sunny que apertava-se acuada contra uma parede enquanto chorava, assustada como quando chegou aqui. Gostaria que ela pudesse limpar as lágrimas de Doc e mostrar a ele o que fazer quando Ian acordasse gritando nas noites que se seguiram.

Mas ela não estava. Nunca mais estaria. E era eu quem teria que fazer essas coisas.

E era isso que eu continuava fazendo, um mês e meio depois. Catando os pedaços dos outros. Mas ninguém disse que seria fácil.

Depois do choque inicial, a vida de alguns tinha voltado ao normal. Cal e Nate tinham conseguido outro furgão para nós e Brandt tinha consertado o caminhão com peças que eles tinham nos arranjado. Cal tinha também trazido algumas provisões para ajudarmos a repor as que perdemos naquele dia, mas as despensas estavam ficando vazias de novo.

— Sunny pode sair e nos ajudar. Cal não pode suprir nossas necessidades para sempre – disse tio Jeb, tentando ser prático.

— Não – disse Kyle de forma direta e imediata. – Vivíamos bem antes de Peg, fazíamos incursões sozinhos e ninguém se machucava.

— Nossas incursões não passavam de saques, Kyle. Era muito mais arriscado.

— É mesmo? Pois eu não me lembro de ninguém ter morrido ou voltado baleado dos nossos “saques”. Nós acabamos ficando descuidados demais. Não vou deixar que aconteça com Sunny o mesmo que... — Então ele parou, os músculos de sua mandíbula se contraindo como ele costumava fazer quando “mastigava” os próprios sentimentos e nos cuspia de volta em forma de insultos. – Você não vai! – decretou finalmente, olhando para Sunny.

— Mas eu quero ajudar, Kyle. Por favor! – insistiu ela segurando firme a minha mão e pedindo o apoio de Jeb com os olhos.

— O que há de errado com vocês? Mas que droga! São cegos, por acaso? – disse apontando para a porta fechada no quarto de Ian, que passava a maior parte do seu tempo trancado no escuro agora.

— Está tudo bem, Kyle. Você vai junto, e Melanie e Jared têm bastante experiência, eles podem cuidar de mim.

— Claro! Porque fizeram um ótimo trabalho da última vez! – disse Kyle, cortando fundo sobre a ferida mal cicatrizada.

— Tudo bem, Sunny! Acho que ele tem razão. Pensaremos em outra maneira – respondi, levantando-me e indo embora antes que partisse a cara daquele idiota com a primeira pedra que encontrasse.

— Mel, volte aqui! – Ainda escutei tio Jeb dizer, mas eu não voltei.

Em vez disso, fui ver como estava Jamie. Nas semanas anteriores à nossa perda, ele tinha se encantado por Kate, uma garota da célula de Nate. Mas nem ela tinha conseguido devolver o sorriso dele. Fui encontrá-lo sentado num canto do quarto que dividia com Aaron e Brandt, o ar cansado e pensativo de quem tinha o peso do mundo todo nas costas.

Eu não disse nada. Apenas me sentei ao lado dele passando o braço por seus ombros. Ficamos sentados em silêncio por muito tempo, enquanto procurávamos por palavras desnecessárias.

— Sabe o que tem sido mais difícil? – disse Jamie finalmente, como se estivéssemos continuando uma conversa interrompida.

— O quê? – perguntei.

— Olhar para Ian e vê-la lá, ao lado dele. Mesmo sabendo que ela não vai mais estar.

— Sim, eu sei – disse eu, abraçando-o.

Jamie não era o único que não conseguia lidar com o luto de Ian. As únicas pessoas que suportavam ficar ao lado dele atualmente éramos eu, Kyle e Sunny. Não que ele nos quisesse por perto. Ele parecia odiar a tudo e a todos agora. Mas nós três o amávamos demais para não entender que quem ele realmente odiava era ele mesmo.

Ian era uma pessoa diferente desde aquele maldito dia. O homem alegre, sarcástico e brincalhão tinha desaparecido para dar lugar a alguém sombrio e recluso. Desde que seu ombro melhorou, ele saía do quarto apenas para trabalhar incansavelmente, até seu corpo não aguentar mais ou estar escuro demais para seus olhos prosseguirem. As reuniões depois do jantar, obviamente, não existiam mais, e mesmo que existissem, Ian não ficaria entre nós. Ele não falava com ninguém e não encontrava os olhares curiosos dos outros. Apenas se alimentava e partia, trancando-se sozinho no quarto.

Um dia depois da conversa com Jamie, eu resolvi pôr um fim nisso. Bati na porta apenas para avisar que estava entrando e não esperei pela resposta que eu sabia que não viria.

Meu coração se retorceu dentro do peito quando entrei e o vi, imerso no mais completo caos em que aquele quarto já havia estado. A presença de Peg estava impregnada em cada canto e o ar estava pesado de dor.

— Mas que droga é essa, Ian? – perguntei me referindo às roupas de Peg que jaziam espalhadas exatamente como ela as tinha deixado, os refugos desorganizados das coisas que ela tinha optado por não levar na mochila de viagem.

— Do que você está falando? – ele respondeu Isem se levantar da cama nem olhar para mim.

— Eu estou falando desse santuário maluco que você está fazendo aqui.

Ian apenas deu de ombros, jogando o livro que estava lendo em um canto. Nos últimos tempos, Peg tinha descoberto os livros. Tínhamos conseguido vários para ela nas ultimas incursões e ela os lia sozinha ou em voz alta para Ian, começando todos ao mesmo tempo e prosseguindo conforme desse vontade.

Eles agora jaziam todos abertos. Ian os mantinha na mesma página em que ela tinha parado de ler. Ao que parece, relendo incessantemente as mesmas palavras, talvez tentando ecoar os últimos pensamentos dela.

— Não! – ele gritou, levantando-se bruscamente quando eu tentei fechar um deles.

Ian tirou o livro de minhas mãos e depositou-o cuidadosamente numa pilha de outros livros abertos. Ele recusava-se a passar as páginas como se recusava a continuar vivendo.

— Você precisa parar com isso agora! Talvez te faça bem sair deste quarto. Vou falar com Kyle para vocês trocarem. Esse quarto é grande demais para você ocupá-lo sozinho, de qualquer jeito.

— Eu não pretendo ir a lugar nenhum. Mas se alguém estiver precisando de espaço, pode vir aqui tentar me tirar. É um favor que me fazem.

— Não diga isso! Você sabe que eu não estou falando de espaço e que ninguém quer realmente tomar seu quarto. É só que te faz mal ficar aqui desse jeito. É como se ela não tivesse ido embora.

— Ah, ela foi! Não se passa um minuto sem que eu me lembre disso.

— Pelo menos me deixe tirar essas coisas todas daqui.

— Não – respondeu Ian naquela que parecia ser agora a resposta padrão dos O’Shea.

— Você não pode fazer isso, Ian. Está se afundando aqui. Você se lembra de quando eu te contei os planos dela? O quanto você se sentiu traído porque achou que ela tivesse desistido de viver? É o que você está fazendo agora.

— Não é nada parecido, Melanie. Eu não me ofereci em sacrifício. Não escolhi terminar com minha vida. Ela foi tirada de mim à força!

— Isso é uma bobagem, Ian. Não vou discutir semântica com você. Você desistiu de viver e é só. E se você pensa que eu vou deixar você fazer isso...

Deixar? Do que é que você está falando? – ele me interrompeu, furioso. – Você acha que pode decidir alguma coisa por mim? Deixa eu te dizer uma coisa, Melanie, eu não estou desistindo. Eu vou continuar pondo um pé na frente do outro até o fim dos meus dias, porque eu não sou do tipo que desiste. Mas de que maneira eu vou sobreviver neste mundo sem sentido é problema meu! Foi o meu mundo que foi tirado, não o seu! Eu só preciso ser deixado em paz!

— Você não é o único que perdeu alguém aqui, sabia? – respondi com falsa calma, a raiva clara e borbulhante dentro de mim como água fervendo.

Ian se sentou sobre o colchão, desabando com as mãos escondendo o rosto. Eu só fiquei ali, olhando para ele, perguntando-me se um dia eu acharia de novo meu amigo no meio daquela massa desorganizada de sentimentos em tormenta. De repente, ele levantou a cabeça, encarando-me com olhos desolados.

— Me desculpe – ele disse. – Me desculpe por ignorar a sua dor. Eu não tenho sido um bom amigo pra você. Eu não tenho sido eu mesmo, de qualquer maneira.

— Tudo bem – assenti, sentando-me ao lado dele. – Eu entendo. Mas você tem que fazer alguma coisa a respeito. Nós sentimos sua falta. Eu, Jamie, o idiota do seu irmão, até Jared...

— Não consigo agora, Mel. Você não imagina o que é sonhar com ela todas as noites. Vê-la morrer repetidamente, noite após noite, e mesmo assim desejar sonhar. Mesmo um pesadelo é melhor do que a ausência dela.

— Eu sinto muito, Ian.

— Não sinta. Apenas deixe-me viver aqui no meio das lembranças dela. É tudo que me resta. Por um segundo, todos os dias antes de abrir os olhos, eu sinto que ela está aqui. É só assim que eu sobrevivo.

— Não é tudo o que te resta. Você ainda tem a nós, sua família. E nós estaremos te esperando quando você estiver pronto.

— Obrigado. E você? Como você está?

— Não sei.

Eu não sabia mesmo, todos os dias acordava e tomava a decisão deliberada de não pensar nela. Eu estava tão preocupada com o luto dos outros que não tinha tido tempo de viver o meu.

— Mel, quando é seu aniversário? – ele perguntou, a questão fora de contexto me surpreendendo.

— Já foi – respondi indiferente. — Há duas semanas. Eu nem me lembrei direito disso. Por quê?

— Porque eu te devo desculpas. Devia ter te dado isso antes – disse Ian, enfiando a mão embaixo do colchão e tirando um saquinho de veludo de lá.

— Peg queria fazer uma surpresa, por isso não estava junto com as coisas que ficaram no furgão que os Buscadores levaram. Ela tinha pedido que eu guardasse no bolso. Disse que queria te dar algo que simbolizasse o amor que sentia por você.

Estendi a mão e percebi que estava trêmula, o controle das minhas emoções indo para o espaço. Agarrei o saquinho e murmurei um “obrigada” meio sem graça.

Ian pareceu perceber que eu estava querendo ficar sozinha, que eu não estava pronta para deixar a minha dor sair ali, dentro daquele quarto onde já havia dor demais. Então ele disse:

— Feliz aniversário atrasado, querida. Depois você me diz se gostou do presente. Agora eu queria dormir um pouco, se não se importa.

— Claro – respondi, levantando-me e indo em direção à porta. – Fique bem, ok?

— Eu digo o mesmo pra você.

Lá fora, no corredor, eu desfiz o laço delicado que fechava o saquinho, colocando desajeitadamente meus dedos trêmulos dentro dele. Senti algo se enrolando na ponta de um dos dedos e puxei-o para fora. Uma correntinha delicada brilhava contra a escuridão. Era algo do tipo que Peg sabia que eu jamais usaria, um objeto delicado demais que combinava muito mais com ela do que comigo. Fiquei imaginando o porquê da escolha quando reparei no pingente. Um oito deitado estava preso na corrente prateada, pendendo por suas extremidades. Um símbolo do infinito. O infinito que foi tirado de nós.

Senti algo explodindo dentro de mim e caí contra a parede que já apoiava quase todo meu peso. Em seis semanas eu ainda não tinha chorado.

Aquela era a primeira vez.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Esperamos que tenham gostado. Beijocas de Laís e Rain