A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 6
Laços




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He's the one who likes
All the pretty songs and he
Likes to sing along and he
Likes to shoot his gun but he
Don't know what it means
Don't know what it means
When I say...
In Bloom - Nirvana

POV Logan

— Juro que não entendo! Parece trabalho demais para tão pouca prole.

— Pelo menos elas não morrem como nossas mães. Na maior parte das vezes – disse Águas Claras sob a Lua.

Estávamos olhando uma imagem 3D do feto dentro de Estrela. Águas Claras me explicava que, quando chegou, a hospedeira estava grávida de duas semanas. Agora já estava de seis. O feto minúsculo parecia mais uma bolinha de papel amassada, mas estava fazendo a pobre Estrela sofrer enjôos horríveis quase o tempo todo.

Ela ainda estava dormindo, mas eu tinha certeza de que assim que acordasse iria vomitar tudo o que ainda nem estava no seu estômago. Era repugnante, mas ainda pior que isso era ver seu belo rosto ficando pálido e cheio de olheiras, ou seu corpo frágil se contorcendo em terríveis espasmos horrorizados.

Era difícil não tentar protegê-la. Havia algo nela que exigia isso. Na maior parte do tempo, eu conseguia evitar ser controlado por esse fascínio estranho que ela exercia, não era do meu feitio ser controlado por ninguém. Mas quanto mais fragilizada ela ficava, mas difícil era impor alguma resistência.

Para minha sorte, ela só era frágil fisicamente. Para minha sorte e para meu azar também. Em quatro semanas, eu não tinha conseguido penetrar em sua fortaleza. Era frustrante. E era um desafio.

Por causa disso, em resposta ao desejo de provar que conseguiria, não pude ir embora quando senti o primeiro impulso de segurar os cabelos de Estrela durante seus terríveis enjôos. Vasculhei as lembranças de meu hospedeiro em busca de uma explicação para esse impulso, essa força que me impelia em direção a ela, mas não encontrei nada que me ajudasse a entender o que eu sentia. Apenas a memória longínqua de uma garotinha ruiva e febril que chamava por um Logan criança com sua vozinha débil.

O nome dela era Lindsay e ela tinha sido sua única amiga durante uma de suas terríveis estadias nos lares adotivos dos quais ele não gostava de se lembrar. Lindsay partiu deste mundo numa noite de inverno, levando consigo o único laço que Logan teve na vida. Seus cabelos suados e colados no travesseiro sujo eram a lembrança que ele mais evitava, mergulhando-a fundo nas profundezas de um mar de outras lembranças horríveis, abaixo delas ainda. Eu nunca a tinha acessado até ver Estrela sofrer. Ainda assim, eu não conseguia entender qual era a relação.

Eu me perguntava como seria quando esse bebê estivesse pronto para sair. Se eu ainda não tivesse conseguido as informações de que precisava, teria que ficar para assistir isso. Então eu precisava fazer algo a respeito rapidamente.

Durante um mês de interrogatório contínuo, Estrela não tinha deixado escapar nada de útil, apenas bobagens sentimentais sobre humanos cujo nome ela dizia não se lembrar. Ela achava que me enganava com sua contínua negação, mas não. Eu apenas não sabia como fazê-la confiar em mim. E simplesmente não sabia como ameaçá-la. Estrela sabia muitas coisas, e supunha outras tantas. Inclusive que eu não percebia as lágrimas que escorriam por seu rosto quando ela olhava pela janela para ver o sol.

Eu as via bem. E sabia que nelas estava a chave para o conhecimento que eu precisava para me ver livre de tudo isso. Eu só não sabia o que fazer com lágrimas. Ou tampouco sabia como seria quando eu não as visse mais. E essa era uma resposta que eu temia obter. Isso só me deixava mais certo de que era hora de fazer alguma coisa.

Por isso, na noite anterior, quando Estrela dormiu, enfiei a mão sob seu colchão para encontrar os desenhos que ela escondia lá quando achava que ninguém estava olhando. Um jogo de futebol em preto e branco, um pôr do sol cheio de cores quentes e muitos, muitos pares de olhos azuis. Os mesmos olhos em várias expressões diferentes. Ela desenhava muito bem. Achei até um retrato meu. Nesse desenho, eu tinha uma expressão ameaçadora, perigosa e isso me fez sentir estranho. Não sei por que me importava com o que ela pensava.

Eu estava imerso em uma quantidade cada vez maior de coisas que não entendia desde que conheci Estrela. Precisava ser eu mesmo novamente, precisava ir para longe dela, capturar esses humanos e deixar tudo isso para trás. Além disso, eu não conseguiria mesmo ficar até o fim.

— Como você acha que ela vai se sair? Quero dizer, no parto. Você disse que a gravidez dela é de risco – perguntei a Águas Claras Sob a Lua, que permanecia encantada com as fotos do interior de Estrela.

— Ela se sairá bem. Apesar disso tê-la prejudicado muito, ela está se recuperando bem do... – a Curandeira pensou um pouco na melhor palavra para não soar tão desaprovadora quanto sempre fora – acidente que sofreu na captura da hospedeira. Além disso, ela está recebendo todas as vitaminas que precisa e em poucas semanas estará forte para se levantar e levar a gravidez com mais normalidade.

Um misto de alívio e ansiedade me invadiu. O que faria Estrela quando se levantasse e pudesse ir embora daqui? Correria até os humanos de Peregrina? Arriscaria seu precioso bebê humano? Morreria tentando chegar até eles? Caso sobrevivesse, o que eles fariam quando a encontrassem e percebessem que não era Peregrina? E, pior de todas as dúvidas, por que eu me importava?

— É provável que não possa ter um parto normal, no entanto – completou Águas Claras.

A imagem me tomou de assalto: Estrela chorando de dor enquanto seu pequeno corpo se abria para trazer ao mundo um minúsculo e ensanguentado humano berrador.

— Ainda acho que é trabalho demais por um único filhote.

— Não é um filhote, Logan. É um filho. E para as mães vale o sacrifício.

— Muito me admira eles se reproduzirem tanto. Depois esse... filho... vai depender da mãe para tudo e será indefeso durante anos.

Uma pontada estranha de dor picou o coração de meu hospedeiro quando eu disse isso. Ele tinha sofrido o abandono, o fato de não ter uma mãe, e isso definiu muitas coisas sobre ele. Não me agradava nada pensar nisso, porém, mas era inevitável nestes dias. Logan estava se revelando demais para mim ultimamente.

— Nós também somos indefesos quando saímos de nossas mães. E também dependemos de nossos hospedeiros.

— Ok, ok, entendi. Você é fã de humanos. Principalmente dos em miniatura. Pelo menos essa coisinha vai ter uma aparência melhor quando nascer. Porque agora ele mais parece um peixe amassado.

Neste instante, a voz melodiosa e sonolenta de Estrela cortou o ar de monotonia. Ela estava acordada.

— Não fale assim do meu bebê, Logan!

— Oh, olá, Estrelinha. Levante-se e brilhe! – disse eu, levantando uma parede de sarcasmo entre nós. — Opa! Você não pode se levantar. Nem brilhar, ao que parece. Sua aparência está péssima! Preparada para mais um dia produtivo?

— Bom dia para você também, Logan – ela respondeu ironicamente e, por um segundo, senti vergonha de que as primeiras coisas que disse a ela hoje fossem insultos. – Como se você fosse muito mais produtivo do que eu! Quanto tempo você passa aqui me fazendo perguntas inúteis mesmo?

Touché!

— Ah, mas isso é culpa sua, Estrelinha. E nós vamos resolver isso já. Temos que conversar sobre... Bom, como você quer que eu chame esse carocinho provocador de vômito que você tem aí?

— Não de humano em miniatura ou de coisinha. E, certamente, não de peixe amassado ou carocinho de vômito! Tente “bebê”. Você já mostrou que tem dificuldades com o óbvio, mas esse parece fácil até pra você!

— Nossa! Como acordamos de bom humor hoje, hein! Combina com sua aparência. Tudo bem, Estrelinha. É meio genérico, mas a escolha é sua. Vamos falar sobre o “be-bê” – disse eu, acentuando a pronúncia das sílabas para irritá-la.

Estrela suspirou e fechou os olhos, tentando esconder de mim sua frustração. Era estranho conseguir irritá-la. Eu dava sempre o meu melhor para atingir esse resultado, mas não gostava quando ela ficava assim. Eu só não conseguia agir diferente.

— Bem, querida, em alguns minutos eu volto com seu café da manhã – disse Águas Claras, enquanto Estrela fazia uma careta de nojo. – Vou ter que deixá-los sozinhos por um minuto. Comporte-se, Logan! Não a estresse demais. O estado emocional dela é o que mais dificulta sua melhora – disse ela com olhos repreensivos enquanto saía.

Até parecia que era eu quem estava fazendo as coisas erradas aqui. Peregrina era, na melhor das hipóteses, fraca demais para evitar sucumbir à sua hospedeira. E, no pior dos casos, ela era uma traidora suja. E Estrela estava aqui, carregando o filho de um humano, escondendo a identidade e a localização dessa ameaça e exigindo que Peregrina fosse poupada de qualquer crítica. Ela nem sequer me deixava levá-la para a ala reservada aos criotanques. Vinha com uma baboseira enigmática sobre como a presença da outra Alma podia ajudá-la a se lembrar.

Claro que eu não caía nessa. Eu sabia muito bem que ela tinha medo de que se Peregrina fosse levada para longe dela, nós a mandaríamos para outro planeta. Acho que ela tinha uma estranha fantasia de que arranjaríamos uma hospedeira e ela e Peregrina poderiam dividir a maternidade preciosa do bebê que uma concebeu e a outra carregava.

Uma vez eu tinha dito a ela que se ela me ajudasse a encontrar o esconderijo dos humanos, nós traríamos uma hospedeira de lá para sua querida amiguinha. A resposta foi uma onda ininterrupta de lágrimas, soluços e enjôos repugnantes. Então eu percebi que ganhava mais não contrariando seus delírios. Quando tudo isso acabasse, nós poderíamos mandar essa Alma problemática para o canto mais longínquo do universo conhecido e Estrela não poderia fazer mais nada.

Ainda com os olhos fechados, ela disse baixinho, sua voz macia e derrotada:

— O que é que você quer saber, Logan?

— Vamos direto ao ponto, Estrelinha. Você sabe como um be-bê é concebido, não sabe?

Meu hospedeiro nunca tinha querido filhos, mas ele era particularmente fã do processo de concepção. Uma onda de lembranças e sensações fora de controle passou por meu corpo e ele reagiu. Outra “adorável” novidade pós-Estrela.

— Bem... ããã... não me lembro bem dos detalhes – disse ela abrindo os olhos e olhando para o chão enquanto corava como uma fruta madura.

Oh, sim! Ela sabe! Alguém sussurrou com uma voz imaterial em algum lugar dentro de mim. Mas que droga era essa agora?

— Ah, corta essa, Estrelinha! Você sabe bem que isso não se faz sem um homem. Então quem é o pai do seu filho?

— Não é meu filho, Logan. Não de verdade – ela retorquiu com voz triste.

— Agora mesmo você estava aí toda nervosinha porque eu disse que ele era um caroço de vômito. Agora você o renega?

— Ora, não seja simplório! Eu nunca disse que não me importava. Estou apenas dizendo que o fato de eu carregá-lo não o torna meu filho. Ele tem mãe. E a mãe dele está ali – disse ela, apontando com ar resoluto para o tanque de Peregrina.

— Pois muito bem, Estrela, não faz diferença. Você está apenas mudando de assunto novamente. Quem é o pai do filho de Peregrina? – insisti.

— Eu. Não. Sei.

E... voltamos à estaca zero!

Você não se lembra com quem ela fez um filho?

— Não. Não sei com qual deles.

— E quantos homens havia no esconderijo?

— Não sei.

— Peregrina conhecia todos eles?

— Acho que sim.

— E ela copulava com quantos?

— O quê? Que espécie de palavra é essa, Logan? “Copulava”. Você é o quê? Uma antiga enciclopédia de Biologia?

— De novo mudando de assunto! Foi você que disse que não se lembrava com qual deles ela dormiu. É perfeitamente plausível imaginar que tenha sido com vários deles. Ou com todos.

— Não diga besteiras! Peregrina não era nenhuma promíscua. Ela realmente amava...

— Amava quem? – perguntei depois que ela se calou abruptamente.

— Não me lembro do nome dele.

Se ela estava achando que estaríamos de volta à estaca menos um, estava muito enganada. Eu sabia que estava no caminho certo:

— Sabe, Estrelinha. No dia em que capturei sua hospedeira, um dos humanos tentou me matar. Ele estava particularmente furioso. Muito mais enfurecido que os demais. Quando você soube que eu tinha atirado nele, você desmaiou. E não me venha dizer que era porque seu novo corpo estava te fazendo se sentir mal, porque eu não sou idiota. Naquele dia, você disse um nome.

— É mesmo? – disse Estrela, vestindo sua capa protetora de mentirosa cínica. – Não me lembro disso. As lembranças daquele dia são muito confusas.

— Não são confusas para mim, Estrelinha. Ian é o pai de seu bebê?

— Eu não me lembro de já ter ouvido esse nome.

— Sei. E você também não se lembra da aparência dele, não é?

— Não. Creio que não.

— Pois para mim parece que você se lembra de muitos detalhes – disse eu, puxando os desenhos do bolso e entregando-os a ela.

Estrela ficou pálida como um fantasma, seus olhos encheram-se de lágrimas e ela segurou o estômago revolto. Águas Claras não tinha voltado e não havia ninguém por perto para ajudá-la. Corri para apanhar um recipiente onde ela pudesse aliviar sua náusea. E, enquanto ela se sentava na cama sofrendo com os espasmos de seu estômago, eu amparei seu corpo frágil com uma mão e afastei seu cabelo com a outra.

Quando tudo acabou, eu não sabia o que fazer, então continuei segurando o corpo dela, abraçando-a com ambos os braços agora.

— Você precisa cortar esse cabelo, Estrelinha. Seria mais prático – disse, usando essa crítica falsa para aliviar a tensão e sentindo-me estranho por não querer soltá-la.

— Ian gosta deles assim – ela respondeu, para minha surpresa.

— Por que você me disse isso? Por que agora?

— Porque você já sabia – ela disse, deitando a cabeça em um dos meus braços. – E por que você está sempre aqui. Sei que você tem um trabalho a fazer, mas... É bom não estar sozinha. Obrigada.

— Não há de quê. – Foi tudo o que consegui dizer enquanto sentia Lindsay febril de novo em meus braços, e antes que passos no corredor desmanchassem temporariamente este novo laço.


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Notas finais do capítulo

Esperamos que tenham gostado de conhecer a aparência com que imaginamos nosso querido Buscadorzão! E também que tenham gostado de saber um pouco mais sobre o Logan. O que vocês acham de nós complicarmos ainda mais as coisas, hein?
OBS: O photobucket parece estar contra nós, então, se a foto não aparecer, copie esse link em outra aba:
http://i1070.photobucket.com/albums/u499/mairazp/LoganRafael.jpg