A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 41
Futebol


Notas iniciais do capítulo

Have we eyes to see
That love is gathering?
All the words that I've been reading
Have now started the act of bleeding
Into one...into one...
So I walk up on high
And I step to the edge
To see my world below.
And I laugh at myself
While the tears roll down.
'Cause it's the world I know.
Oh it's the world I know.
(The World I Know - Collective Soul)



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POV Estrela

 

— Jamie, segure isso direito! – disse Mel pela milésima vez, repreendendo o irmão que a cada segundo deixava cair uma caixa de cookies da grande cesta repleta de comida que carregava.

— Desculpe, Mel, mas não posso ficar parado. Isso é tão legal! — exclamou Jamie, esticando a palavra “tão” por alguns segundos. Pegou a caixa no chão e voltou a andar com sua felicidade contagiante.

Eu me lembrava que Jamie sempre ficava empolgado quando acontecia alguma famosa partida de futebol na Sala de Jogos, sempre ficava animado com a expectativa de ser escolhido antes de todos para exibir os seus “incríveis dotes genéticos” com a bola. Mas eu também sabia que a felicidade do meu pequeno irmãozinho não era apenas por isso – também havia outro fator genético, o de ser simplesmente o sobrinho de Jeb Stryder e, com isso, se tornar o serzinho mais persuasivo de toda a caverna.

Persuasivo ao ponto de conseguir que Brandt tivesse um “encontro” com a mãe de Kate, Rachel, fazendo com que os dois se apaixonassem. Ao ponto também de fazer com que ela se convencesse que vir morar na célula de Jeb, trocando de lugar com alguns rapazes interessados em “novos ares”, seria uma boa solução para todos. O intercâmbio era necessário, já que não era possível acomodar mais gente nas cavernas, mas muitos pareciam animados com a ideia de conhecer outras pessoas e lugares, então não era realmente um problema.

Apenas mais uma obra do meu Jamie. Ou melhor, do nosso Jamie.

— Sim, Jamie, nós sabemos exatamente o que é tão legal! – Peg e Mel riram, um som tão conjunto, doce e familiar a meus ouvidos.

Peregrina suspirou.

— Você tinha razão, Mel. Ele está realmente crescendo rápido demais.

— Sim... – Mel também suspirou. Logo depois, estufou o peito e ergueu o queixo numa posição autoritária — Mas se ele pensa que vai se ver livre de nós três pelos próximos milênios, está redondamente enganado!

— Algo me diz que Jamie não vai gostar muito dessa ideia de pelos “próximos milênios” – murmurei, rindo também.

— Ah, com certeza. Só espero que ele não resolva bancar o adolescente apaixonadamente revoltado a esta altura dos acontecimentos – Mel brincou, revirando os olhos.

Ela jogava para o alto a bola brilhante de futebol que havíamos arranjado na última incursão a pedido de Jeb, pois, segundo ele, depois que a poeira abaixa, não há nada melhor para fazê-la subir outra vez do que um amistoso jogo de futebol . Eu não perguntei o que isso significava, aprendi que se você quer manter sua mente sã, considere jamais tentar entender Jeb, mas todos os humanos tinham ficado particularmente animados com a proposta. Resolvemos então que nos daríamos um dia de folga para descontrair e aproveitar como nos velhos tempos. Porém, como esse dia só começaria depois que metade do pessoal colhesse os melões cantapulo de Jeb e regasse as cenouras, nós quatro, além de Logan, Ian e Jared, que já nos esperavam na sala de jogos, nos dispusemos a arrumar tudo e preparar a comida antes que todos chegassem.

Ian estava particularmente ansioso por essa partida. Na verdade, ele e Kyle tinham passado a semana pensando em planos e táticas diferentes “para fazer o Buscador ficar com a cara no chão”, o que fez Logan se incluir prontamente no time adversário. Às vezes, a infantilidade deles me irritava, mas, de qualquer maneira, era extremamente bom saber que aquilo não passava de uma birra natural entre eles, e que, no fundo, era um sinal de que se davam bem. Se um bom jogo de futebol era o suficiente para canalizarem sua rivalidade em algo saudável, eu estava mais do que feliz que fizessem isso, mas o meu caso e o de Peg era completamente diferente.

— Então vocês não vão mesmo participar? – perguntou Melanie quando estávamos atravessando o túnel de pedra para a sala de jogos, por pura gentileza, é claro. Era óbvio que a barriga de sete meses de Peg não a permitiria jogar, ainda que Ian não fosse ter um ataque de qualquer jeito se ela se arriscasse. Mas Peg gostava da sensação de ser convidada, porque a fazia ter a impressão de que, só pra variar, não estava sendo protegida de tudo.

— Não, Mel, com certeza não! – respondeu ela, sendo realista. – Acho que vou ficar apenas sentada, assistindo à partida. De qualquer maneira, será bom poder enxergar os meus pés novamente. — Riu, acariciando a enorme barriga sob uma grande blusa lilás. — E você, Estrela?

— Igualmente, Peg. Vamos nos sentar e ter nossa “tarde das grávidas.” – murmurei, afagando carinhosamente minha barriga, que já começava a crescer também, e suspirando.

Era indescritível a sensação de ter algo crescendo dentro mim. Era mais que um milagre, era uma esperança. A esperança de felicidade, do amor. Uma promessa para o amanhã. O amor se enraizara e agora crescia, se dividia e se multiplicava. E assim como nas cavernas, ele perpetuaria continuamente em nossas vidas.

Dentro de nossa espécie, eu não era como Peg, não era uma Mãe. Apenas uma a cada milhões de nós tinha esse potencial. Jamais teria sabido, portanto, qual seria a sensação de ver minha vida se transformando em outra. Mas havia algo de especial neste planeta que nos igualava diante da mesma grandeza.

Embora eu soubesse que havia coisas verdadeiramente terríveis sobre os humanos, sobre o que eles eram capazes de fazer contra si mesmos, contra outras espécies mais frágeis e contra o mundo que compartilhavam com elas, eu só tinha encontrado felicidade aqui.

Qualquer mal possível, qualquer coisa que minha mente pudesse imaginar, desaparecia diante do pequeno milagre que acontecia dentro de mim. Diante da vida pela qual eu seria responsável e grata e pela esperança que eu via brotar não apenas uma, mas duas vezes, já que havia um outro pequeno milagre dentro de Peg também. Meu outro filho. O primeiro amor pelo qual me sacrifiquei e continuaria a me sacrificar quantas vezes fossem necessárias. Nosso John.

— Como ele está hoje? – perguntei, com saudade de senti-lo dentro de mim.

— Animado com o futebol – Peg brincou, sem precisar de nenhuma explicação sobre de quem eu estava falando. É claro que ela sempre sabia. – Está dando cada chute! – completou rindo e puxando minha mão para sua barriga.

Nesse momento, como se nos ouvisse, ele deu um chute tão forte que quase pude sentir seu pezinho na palma de minha mão.

— Oh! – exclamamos em uníssono, rindo da alegria de nosso bebê.

— E você, como está? – perguntei, porque, ao contrário da minha, que era quase assintomática, a gravidez de Peg era cheia de desconfortos, e eu sabia bem disso.

— Estou bem – disse ela, porque era do feitio de minha irmã nunca reclamar das constantes idas à sala de banhos, dos pés e mãos inchados ou do calor acima do normal que sua testa úmida de suor denunciava. – Faz calor aqui – justificou quando estendi a mão para secar a umidade de seu rosto.

— Faz sim – confirmei, porque com Peg era melhor fazer o jogo dela a discutir. – Vou buscar água para nós duas.

Quando voltei, ela aceitou a garrafa de bom grado e a tomou praticamente inteira num só gole.

— O calor é realmente um incômodo – admitiu ela, de forma envergonhada. – E há outros desconfortos também, você sabe. Mas se eu ficar me queixando, tenho certeza de que Ian vai tentar achar um jeito até de respirar por mim. – Embora ela parecesse um pouco irritada quando disse isso, um sorrisinho terno e orgulhoso brotou num dos cantos de sua boca.

— Ele vai ser um bom pai, Peg.

— Eu sei. E devo isso a você – disse me olhando de um jeito amoroso que me fez, não sei por que, ficar vermelha. Era incrível como eu podia amá-la tanto! – Nós cuidaremos do seu bebê também. E o amaremos tanto quanto você e Logan amam John.

Eu não respondi, apenas segurei a mão dela e sorri. Ela me conhece melhor do que ninguém, sabe tudo a meu respeito. Inclusive que eu acredito nela sem a necessidade de palavras para confirmar.

Continuamos conversando, divertindo-nos com nossos planos para o futuro, imaginando como seriam nossos bebês e ansiando pelo dia em que o ultrassom nos diria se havia outro menino ou uma menina crescendo dentro de mim. Por enquanto ainda era cedo, e eu não me sentia disposta a sair em incursão para fazer o exame mais detalhado que poderia ser feito numa Instalação de Cura.

Pensar sobre isso me deixava insegura, porque eu sabia que logo teria que deixar de acompanhar Logan nas incursões, e eu nunca tinham passado mais do um dia longe dele desde que vim para este planeta. A perspectiva me afligiu e imediatamente olhei em volta em busca dos olhos dele. É um gesto quase automático que nem tenho consciência de quando adquiri, mas que faz parte de mim tanto quanto a vontade imensa de estar ao lado dele o tempo todo. Agora mais do que nunca.

Corri os olhos por toda a sala de jogos e percebi sobressaltada que não vi quando ele saiu. Sentia-me um pouco envergonhada por isso, por só me sentir segura quando ele estava por perto, mas nunca consegui evitar essa sensação, mesmo quando ele era a ameaça. O amor às vezes tem jeitos estranhos de se mostrar, ao que parece.

Antes que eu acabasse a minha “varredura”, entretanto, Logan e Ian apareceram por uma das entradas e vieram em nossa direção. Estavam sorrindo e me perguntei se as coisas estavam menos estranhas entre eles agora que compartilhavam do mesmo “vírus do futuro pai apalermado”, como dizia Jeb. Eu gostava de pensar que era esse o caso, mas não ousava perguntar. Sempre evitava falar sobre Ian com Logan, porque não queria forçá-lo a racionalizar seus sentimentos, a pensar no ciúme que já deveria estar esquecido.

Eu sabia muito bem que a situação podia ser estranha e desconfortável, então usava a técnica de Mel, que consistia em evitar pensar ou falar a respeito. Se eu não amasse Peg tanto quanto amo, me sentiria estranha ao lado dela também, então era fácil deduzir que entre Ian e Logan as coisas não fossem muito fáceis.

No entanto eles estavam sorrindo enquanto se aproximavam de nós, ambos lutando para equilibrar o que parecia uma dezena de almofadas. A visão era engraçada e meu peito se encheu de ternura quando eles se abaixaram desajeitadamente ao nosso lado e começaram a se dedicar à “árdua” tarefa de estender uma manta e distribuir as almofadas sobre ela.

Logan levantou os olhos de seu “quebra-cabeça” e encontrou minha expressão interrogativa.

— O quê? – perguntou ele, meio indignado. – Você não achou que íamos deixar vocês ficarem sentadas nas pedras, achou?

— Puff... – bufou Ian, sem sequer levantar os olhos do que estava fazendo.

Nenhuma de nós duas protestou, porque sabíamos perfeitamente que seria inútil e, além do mais, não era difícil admitir que aquele era um conforto mais que bem-vindo.

— Prontinho, moças. Seu camarote para o jogo já está quase pronto – disse Ian. – Só falta uma coisa... – continuou ele, enquanto remexia nas cestas que Jamie trouxera instantes atrás. – Aqui, guardei especialmente para você.

Quase magicamente, um pacote de Cheetos se materializou em suas mãos e ele o ofereceu a Peg. Lembro-me de que fui eu que consegui vários pacotes ue fui eu que oue bem vitavaa-na última incursão e há muito achei que tivessem acabado, mas, aparentemente, Ian tinha seu próprio estoque escondido.

— Minha nossa, Ian! Eu tenho acordado todas as noites desejando um desses! Como você sabia? – perguntou Peg, seus grandes olhos virando duas esferas brilhantes e vorazes enquanto ela abria o pacote com um puxão e enterrava os dedos na quase-gosma amarela.

— Ah, Peg! Eu conheço você, só isso – Ian se limitou a dizer.

— Você quer? – disse ela, estendendo o pacote na minha direção e fazendo com que aquele cheiro amarelo e viscoso entrasse por minhas narinas e me fizesse, pela primeira vez em meses, ter o estômago revirado.

— Não, obrigada. O cheiro me enjoa – respondi, tentando evitar que o nojo que eu subitamente senti de algo que adorava antes contaminasse minha expressão.

— Você disse que não tinha enjoos! – exclamou Logan de um jeito preocupado.

— E não tenho, mas aparentemente Cheetos é uma exceção.

— Você precisa sair daqui? Tomar um ar? Quer descansar um pouco no quarto? – perguntou ele, ficando absolutamente irresistível ao assumir seu ar de pai preocupado. Era uma expressão que ele usava muito nos últimos tempos. Melhor para mim que eu a achasse tão encantadora!

— Não, não é preciso. É só uma onda de náusea dessas que vêm e vão. Já vai passar. Com sorte, passará com a mesma velocidade que os Cheetos estão desaparecendo do pacote! – brinquei.

Peg olhou para mim sorrindo com uma alegria infantil que irradiava também de seus olhos.

— Desculpe pelo enjoo – disse ela. – Você já suportou muitos desses por mim. Mas é que isso está muito bom!

— Ah, não se preocupe! De qualquer forma, já está passando.

Ian estava sentando ao lado de Peg, olhando-a comer com um ar despreocupado e pretensioso, sentindo-se obviamente muito satisfeito com a alegria dela. Era uma delícia de se ver e eu fiquei ali, ocupada em observá-los. Logan, que estava ao meu lado, estendeu o corpo e colocou a cabeça em meu colo, ostentando seu próprio olhar orgulhoso.

— Quando seu enjoo passar, acho que você vai querer isso – disse ele, estendendo-me um pequeno retângulo vermelho e reluzente que tirou do bolso.

— Kit Kat! – gritei, entusiasmada.

Durante nosso tempo em Phoenix, eu tinha me viciado naquele pequeno pedaço de paraíso em forma de chocolate. Vivian os adorava desde pequena e Águas Claras tinha herdado o gosto. Para mim, aquelas delícias tinham, além de tudo, o gosto de meu primeiro lar.

— Obrigada – disse a ele, lutando contra a emoção que um gesto tão delicado tinha me despertado. Eu estava me sentindo uma “manteiga derretida” com tantos hormônios à flor da pele.

— Guardei uma caixa para você quando ficou evidente que Kyle comeria todos no primeiro dia – brincou Logan, e Ian e Peg riram, porque sabiam que aquilo era bem capaz de ser verdade.

Quanto a mim, estava ocupada demais contendo o discreto nó que tinha surgido em minha garganta. Não era apenas a delicadeza de Logan ou a felicidade simples e plena de estar ao lado de Peg. Era o quadro todo. Nós quatro ali, felizes e relaxados, rindo um com o outro como se todas as angústias e conflitos do passado não tivessem existido.

“É um mundo estranho. O mais estranho de todos”, pensei, lembrando-me de uma conversa entre Peg e Ian. As lembranças dessa época eram raras e embaçadas, especialmente agora. Era como se eu visse algo através de um vidro molhado. Mas, por alguma razão, eu me lembrava bem dessa fala.

“E é o meu mundo”, completei, mergulhando fundo na sensação de que aquela felicidade me pertencia. Abaixei a cabeça e alcancei os lábios de Logan, agradecendo de novo. Apenas uma palavra murmurada contra sua boca, como quem divide o ar que se respira.

No entanto, eu não estava mais agradecendo pelos chocolates, mas sim por algo impossível de se agradecer. Pela existência dele. Por seu amor por mim. Pelas montanhas que ele moveu dentro e fora de si para que estivéssemos aqui agora. E, por fim, pelas nossas vidas que tinham se fundido numa só vida que crescia brilhante e vigorosa dentro de mim.

— Não precisa agradecer – respondeu Logan, achando que eu me referia à caixa de chocolates.

— Preciso sim – disse eu, esfregando meu nariz no dele num gesto carinhoso. Ele revirou os olhos, supostamente contrariado, mas abriu um sorriso discreto e tímido em resposta e meu coração se encheu de amor outra vez.

Logan não gostava que os outros o agradecessem, elogiassem ou pedissem desculpas, então acabava reagindo meio desajeitadamente quando eu insistia em fazer alguma dessas coisas. Tudo o que fazia era tão espontaneamente generoso e desinteressado, que ele custava a ver mérito em seus próprios gestos. De certa forma, acho que ele acreditava que aquilo era apenas sua obrigação natural. Tanto que os elogios lhe pareciam vazios de significado. Quanto a pedidos de desculpas, ele era ainda mais intransigente. Dizia que não passavam da constatação óbvia de que um erro havia sido cometido e que, sendo assim, muito mais importante do que falar a respeito era consertá-lo.

Bem, meu Buscador difícil, ligeiramente arrogante e paradoxalmente autodepreciativo, você pode ser extraordinariamente doce também e eu jamais deixaria de agradecê-lo por isso. Ainda mais se sempre receber esse sorriso tímido como prêmio. Então se não gosta, lide com isso!

Os outros começaram a chegar e Logan e Ian se levantaram para começar o jogo. Sinceramente, o súbito interesse dele em participar me parecia estranho, porque, nos meses todos em que estivemos aqui, Logan nunca tinha se mostrado nem ligeiramente interessado em futebol. Nós sempre tínhamos ficado num canto assistindo enquanto eu torcia e ele fazia cara de tédio e tentava roubar minha atenção do jogo a todo instante.

Mas quando Jeb propôs esse jogo e Kyle começou a desafiá-lo, ele subitamente se animou. Ninguém estava mesmo acreditando que ele fosse ser um bom jogador, mas com Logan nunca dava para saber. Eu ainda não tinha encontrado nada que ele se propusesse a fazer que não fizesse bem.

Kyle se aproximou fazendo gracinhas com a bola e chutou-a em direção a Logan, que tentou pará-la com os pés, mas acabou por dar um pulo desajeitado evitando a custo se desequilibrar.

Oh-oh!

Aquilo era uma das coisas mais estranhas que eu já tinha visto. Logan não era desajeitado! Seus movimentos eram sempre elegantes e precisos, passando a impressão de uma equação perfeita onde não sobrava ou faltava nada. Tropeçar nas próprias pernas não era algo que se podia esperar de alguém como ele.

Mas, bem, ele também nunca tinha jogado futebol. Não é?

Kyle lançou um olhar triunfante a Ian, que apenas aquiesceu e sorriu discretamente. “Vai ser mais fácil do que pensamos”, um parecia dizer ao outro. Logan apenas fingiu que não era com ele.

— Eu sabia que vocês dois estavam aqui namorando – disse Kyle. – Só que pensei que era um com o outro! Vamos lá, preguiçosos! Vamos logo jogar – disse ele, empurrando o ombro do irmão e dando um puxão na manga da camiseta de Logan que o seguiu de má vontade. – Senhoritas, é um alívio vê-las! – provocou, olhando pra mim e para Peg sobre o ombro e rindo da própria piada.

— Quer um conselho, Kyle? Não largue seu “emprego” de troglodita, porque como “engraçadinho” você é um desastre – resmungou Ian, enquanto Logan fazia uma cara de desprezo e ia se alongar ao lado de Jamie.

— Puxa, que falta de senso de humor! – disse Kyle, indo também se aquecer para o jogo.

Mel e Lily foram escolhidas como as capitãs e Lily ganhou no cara ou coroa o direito de escolher primeiro.

— Ian! – ela gritou.

— Jared! – Mel rebateu.

Claro!

— Kyle – disse Lily calmamente, satisfeita por contar com o entrosamento entre os O’Shea e exibindo um sorriso desafiador de quem estava certa de que ia ganhar a partida.

— Hum, não importa – rosnou Mel. — Nós daremos conta. Escolho Andy.

Lily completou seu time com Heidi, Brandt e Maggie no gol, enquanto Mel ficou com Jamie, naturalmente, e Logan, que “não podia ser tão mau assim”, finalizando o time com Jeb, que se dirigiu para o gol, mas não sem antes trocar um olhar muito suspeito com ela e Logan.

— Você já reparou como os dois têm a mesma expressão de gato que ataca? – perguntou Peg, cortando minha linha de pensamentos de quem tentava imaginar um jeito possível disso tudo acabar sem que Logan e Kyle brigassem.

— Hã? Quem?

— Jeb e Logan. Eles têm a mesma expressão de quem está tramando algo.

— Humm... – respondi, sem saber realmente o que dizer. De fato, havia alguma coisa estranha no comportamento deles hoje. E talvez Mel fizesse parte disso.

Os primeiros minutos do jogo foram um show à parte dos O’Shea. Ian e Kyle tinham uma sincronia perfeita e um entendimento mútuo dos movimentos um do outro. Eu não cansava de ver. Eles trocavam passes e driblavam os adversários como se tudo não passasse de uma dança previamente ensaiada. Jeb já tinha deixado passar um gol do time adversário e Lily e os outros estavam absolutamente confiantes na vitória fácil.

Jared tentava como podia fazer a marcação e impedir as jogadas dos dois “dançarinos”, mas o resto do time parecia não ajudar. Andy e Jamie estavam ocupados marcando Heidi e Brandt, e Mel e Logan nem pareciam estar realmente se esforçando.

Bom, eu sabia que nenhum dos dois era do tipo que aceitava a derrota numa boa, então havia algo muito estranho no comportamento negligente deles. Jeb estava se esforçando para defender as várias bolas que chegavam perto de atingir o gol e Jared já estava completamente exausto e olhando feio para qualquer um, até que uma coisa mais ou menos inesperada aconteceu. Como ninguém estava prestando a atenção nele, depois de receber um passe de Mel, Logan disparou pelo campo e marcou um gol.

Yey!

O time adversário soltou gritos surpresos de protesto e Lily os repreendeu.

— Mas que diabos! Vocês não estavam prestando atenção e olha no que deu!

— Pura sorte – respondeu Logan, levantando um dos ombros de um jeito indiferente, embora eu começasse a suspeitar que não houvesse nada de distraído ou não calculado em suas atitudes.

O gol foi como uma injeção de ânimo nos outros e uma surpresa desestabilizadora para o time adversário. De repente, era como se houvesse novos times em campo e esse fosse um jogo inteiramente novo. Mel e Logan pareciam adivinhar o que Kyle e Ian estavam pensando antes que eles tivessem a chance de executar suas jogadas. Por sua vez, aliviado do fardo de ter que marcar os dois irmãos, Jared deslanchou e mostrou seu melhor jogo, já que Lily, que agora estava em sua marcação, não era páreo para ele.

As únicas coisas que impediram que o nosso time ganhasse de lavada foram a insuspeita habilidade de Maggie no gol e, claro, o fato de que o efeito-surpresa-desestabilizadora não podia durar para sempre. Mas a vitória por 5x3 foi prontamente comemorada pelos jogadores e pela torcida orgulhosa.

— Você é um fingido, isso sim! – protestou Lily quando Logan foi cumprimenta-la ao final do jogo.

— Eu nunca disse que jogava mal ou que não sabia jogar. Vocês é que deduziram.

— Ah, é? E aquela ceninha ridícula de tropeçar na bola? Se aquilo não foi pura enganação, eu não sei o que foi – disse Kyle.

— Tudo bem, Jeb e Mel acharam que seria legal deixar vocês pensando que o jogo já estava ganho. Eu só concordei com a encenação.

— É, pois é! Que gracinha! – escarneceu Lily.

— Eu sabia que não podia confiar em você! – acrescentou Kyle.

— Relaxa, Grandalhão! Você estava confiante demais. E está certo, porque você e Ian jogam muito bem, principalmente quando estão juntos. Só que vocês estão sempre tão seguros dos movimentos um do outro que acabam ficando previsíveis para os outros também.

— Você já sabia jogar? Não vá me dizer que as Almas têm campeonatos de futebol! – brincou Lily, já mais bem-humorada.

— Não! – respondeu Logan, rindo. – Competitividade não é bem uma característica da minha espécie. Mas meu hospedeiro gostava de jogar, sim. Ele jogava quase toda semana com um grupo de policiais do distrito em que trabalhava. Além do mais, esse tempo todo vendo vocês jogarem... Bem, eu observo.

— Da próxima vez que eu for capitã, escolho você! – disse Lily.

— Vendida! – resmungou Kyle.

— Ah, para com isso, você só está com inveja que agora Jared e Mel têm um aliado à altura!

— Inveja desse aí!? Ganhamos deles de olhos fechados.

— Como agora? Parecia mesmo que você estava de olhos fechados quando perdeu de nós – provocou Logan. – Tem certeza de que essa é mesmo a melhor estratégia?

— A melhor estratégia seria você parar de ser mentiroso!

— Ah, coitadinho! Vou arrumar uns violinos para ser trilha sonora dessa lengalenga toda... – respondeu Logan, continuando a discussão infindável que se seguiu. O braço dele se mantinha o tempo todo aferrado à minha cintura, mas ele era agora parte de um outro mundo.

Eu não participei da discussão, nem clamei sua atenção de volta para mim quando pareceu que ele tinha praticamente esquecido que eu estava ao seu lado. Era a primeira vez que eu sentia que ele estava ali por si mesmo e não por mim. A primeira vez que ele parecia verdadeiramente em casa.

Em outras partes, a vida seguia seu curso. Jared e Mel se beijavam depois de superar rapidamente uma quase discussão porque ele tinha sido mantido de fora do “plano”.  Jamie se divertia com Kate, e Ian tinha se deitado nas almofadas ao lado de Peg e se esquecido da vida enquanto ela lhe fazia cafuné. Todos riam e conversavam e até Maggie estava de bom humor, apesar da derrota de seu time.

Em seu canto, Jeb observava tudo como um gênio contempla uma equação resolvida. Seus olhos azuis desbotados se voltaram rapidamente para mim e ele sorriu, dando uma piscadela quando apontou Logan e Kyle com a cabeça. Eu joguei um beijo para ele e observei-o ficar, mais uma vez, vermelho como um tomate maduro.

“Sim, Jeb, este é o seu mundo estranho. Esses sapos todos foi você quem cozinhou”, pensei, sem conseguir evitar um sorriso ao lembrar de quando ele disse a mim, assim como tinha dito a Peg tempos atrás, que se quiser cozinhar um sapo não pode colocá-lo na água fervendo, mas sim deve deixá-la esquentar aos poucos. A imagem de um animal vivo sendo cozido lentamente em água fervendo era aterrorizante, mas a metáfora era perfeita.

Era um mundo estranho este em que se podia ser ao mesmo tempo água traiçoeira e sapo desavisado. Mas foi o mundo que escolhi. Este era o meu mundo estranho. E eu estava perfeitamente em casa aqui.


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Notas finais do capítulo

Olá, corações.
Gostaríamos mais uma vez de nos desculpar pela demora. Vontade não falta de atualizar todos os dias, mas existe uma vida para ser vivida longe dos teclados e uma tal de criatividade, que tem se saído uma sujeita muito temperamental.
Esse capítulo foi feito atendendo a pedidos da May e da Iara e nós queríamos agradecer a elas e à Danny pelas ideias. Como nenhuma de nós duas entende bulhufas de futebol, peço perdão se não saiu lá essas coisas, mas nós nos esforçamos bastante.
Um agradecimento especial à Danny(MandT) por outra lindíssima fan art baseada em situações de nossa fic. Sim, hosters, é um luxo ter uma ilustradora tão gentil, nós sabemos.
Os leitores mais detalhistas devem ter percebido que nesse capítulo, muito mais do que em qualquer outro, há muitas referências a detalhes do livro: a questão de a Peg ser uma das que em sua espécie tem o potencial de mães, a conversa sobre mundos estranhos, a história dos sapos, o lance da Peg com Cheetos, o próprio jogo de futebol como um todo... Enfim, tudo isso foi de propósito.
Nesse, que é um dos últimos capítulos e também o último POV Estrela, nós quisemos fazer uma homenagem a esse livro maravilhoso e querido que tanto atiça nossas imaginações e mostrar como Estrela está, na nossa cabeça, totalmente integrada às cavernas e à história original. Ela agora tem até seu próprio "Cheetos"! Rsrs
Esperamos que tenham gostado.