A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 3
Mentiras


Notas iniciais do capítulo

Oi, meus amores! Aqui lá vai nosso segundo capítulo, POV da nossa nova Alminha.E obrigada a todos que deixaram nossos primeiros reviews, amei todos! Boa leitura!



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POV ESTRELA:

“E então, qual a desculpa desta vez?” eu pergunto, olhando irritada para Ian.

Ele tem nas mãos dois sacos cheios dos vegetais que tínhamos trazido da última incursão, e, apoiado desajeitadamente nos dois braços unidos, uma caixa pesada cheia de sacos de arroz. Ele ri, nervoso e envergonhado por ter sido pego.

“Tudo bem,tudo bem, você me pegou, eu admito.”

“Ian, isso era para eu levar! Você já descarregou praticamente o caminhão inteiro. Eu quero ajudar!”

Ele coloca as coisas no chão e revira os olhos, esticando um pesado saco de batatas em minha direção.

“Então, está bem. Tente pegar isto. Se conseguir segurar sem cair nada no chão, deixo você levar tudo até o depósito.”

Eu fito o saco por um instante, e depois Ian, vendo como as articulações dele tremem levemente com o peso do saco, e como eu jamais seria capaz de levantar aquilo do chão. Então simplesmente comprimo os lábios, cruzo os braços e olho para o lado, de mau humor. Seria possível que eu seria limitada apenas em ir a incursões e voltar?

“Ah, Peg, não precisa ficar assim, querida. Você já ajuda muito em outras coisas mais importantes.”

“Com importantes, você quer dizer mais fáceis e entediantes.”

“Bom, não vejo muita graça em carregar sacos de batatas.”

Ele está sorrindo agora, se divertindo com os meus resmungos, que agora eram diários, sobre como eu não podia fazer mais nada.

“A graça está em eu poder fazer! Você não vê? Eu sou uma completa inútil!”

Ele suspira, atravessa o corredor e me abraça ternamente.

“Não diga isso, Peregrina. Você é apenas grande demais para fazer coisas tão pequenas. Incrível demais para se cansar carregando batatas.”

Eu reviro os olhos.

“Ah, sim, ótima desculpa, O’Shea. Ah, Ian, eu odeio este corpo! Odeio como ele me limita! Odeio o fato dele me fazer fraca! Odeio... não conseguir ser boa o bastante para nada”

“Oh, a pobre Pet ficaria aniquilada de ouvir você falando assim do corpo dela. Ela não foi retirada por nada, que tal ser grata? Ah, e se te serve de consolo“, ele move os lábios dos meus cabelos para minha orelha e completa com um sussurro, “você sempre será boa o bastante para mim”

Abri os olhos, então. Estava claro para mim: aquilo não era um sonho, era uma memória. Uma memória do tempo de Peregrina, de quando estava neste corpo, quando estava com os humanos. Quando estava com Ian. Ian. Pensar nele era uma dor física. Meu peito continuava vazio, mas agora eu saia o porquê. Eu precisava do meu Ian.

— Estrelas Refletidas no Gelo, você está bem, querida? — perguntou uma voz, que eu lembrei ser de Águas Claras sob a Lua, minha curandeira. Mas essa voz me trouxe memórias mais recentes.

Eu procurei o Buscador por todo o cômodo, até que o achei encostado na soleira da porta, fitando o chão pensativamente.

— Você o matou?! – eu gritei para ele, ouvindo os bipes do aparelho ao meu lado ficarem mais altos como a minha voz. – Você matou ele?! – Ignorei a curandeira, que pediu que eu me acalmasse.

O Buscador chamado Logan olhou para mim, os olhos verdes estreitos.

— Matei? Matei quem?

— Ian. Você disse que atirou nele – eu falei com dificuldade, sentindo meus olhos arderem. — Você matou ele?

— Ah, o humano que me atacou – Logan disse, apertando os lábios. – Não, eu não o matei. — O alívio que inundou meu coração foi tão grande que chegou a ser doloroso. – Apesar de achar que isso deveria ter sido feito. Mas eu atirei com as mesmas balas especiais com que atirei em você, e os amiguinhos humanos dele conseguiram alcançá-lo e levá-lo de volta para onde quer que seja o esconderijo deles.

— Eles conseguiram fugir, então? – eu perguntei, tentando segurar o sorriso de alívio que ameaçava escapar.

— É, conseguiram. – Ele deu de ombros – Mas não nos preocupamos muito com isso. Você era nosso alvo de captura principal. Quer dizer, o corpo hospedeiro e a Alma dentro dele.

— E... como eles conseguiram fugir? Estavam cercados por Buscadores, não havia saída – disse eu, me lembrando de como Peregrina acreditava estarem todos perdidos, como a única chance deles era a morte.

— Bom... – Logan começou, franzindo a testa, uma ruguinha aparecendo entre os olhos. — Depois que atiramos no corpo hospedeiro, o tal humano Ian veio correndo até ele, tomou-o nos braços e saiu correndo de volta para aqueles arbustos. Então, temendo que ele realmente conseguisse escapar com nosso alvo principal, eu atirei nele. A bala acertou direto no ombro. Ele então caiu no chão, levando o corpo junto. Enquanto ele parecia estar checando os sinais vitais de sua hospedeira, eu corri até lá, acreditando que ele não poderia se levantar. Mas, bem, ele pôde. Acho que não sentiu mais seus sinais vitais, porque, como eu já disse, a cápsula paralisa por uns instantes esses sinais do corpo. Então, ele veio correndo até mim. E para falar a verdade, ele estava completamente fora de si. Acredito que ele teria me matado com as próprias mãos, se pudesse. Então, é claro, eu ia atirar nele outra vez. Mas o outro humano foi mais rápido, atirou em mim com uma Glock; eu realmente não faço a mínima idéia de onde eles conseguiram aquela arma. Minha arma caiu a alguns metros de distância, e, como a bala tinha me acertado na perna e eu não pude correr, e os outros Buscadores estavam ocupados com o Furgão dos terroristas, checando se havia Almas seqüestradas lá dentro, não houve muita coisa que eu pudesse fazer. Isso deu tempo para eles voltarem e pegarem o humano ferido de volta, mas para ser carregado foi preciso praticamente de todos os braços para aguentarem o peso dele, que estava desmaiado a essas alturas; não sobrou ninguém para salvar o corpo dessa hospedeira, mas de qualquer modo, eles acreditavam que ele estava morto.

— Os outros Buscadores vieram então, mas os humanos estavam longe, e quando os viram, começaram a correr, e, como eu já mencionei antes, não estávamos preparados para uma perseguição a pé por um terreno tão difícil e desconhecido para nós. Estava muito escuro, e aqueles humanos pareciam ter um mapa mental daquele lugar. Tudo piorou mais quando chegaram um bando de coiotes, atraídos pelo cheiro de sangue. Os humanos os assustaram com um tiro, então eles vieram em nossa direção. Meus companheiros tiveram que se ocupar em despistá-los, e eu ainda não havia conseguido alcançar minha arma. Mas quando isso aconteceu, os humanos já haviam desaparecido – Logan finalizou, com uma expressão de raiva no rosto. Ele não parecia nada feliz com o fato de ter sido derrubado por um humano.

— Oh... Isso é... Ruim. – menti. Mas não dava para mentir totalmente. Não pude fazer o alegre batimento acelerado do meu coração parar de me denunciar com os irritantes bipes do aparelho.

— Tudo bem, Logan – disse a Curandeira, procurando algo em seu armário. – Não faça a pobrezinha ter outro ataque. Lembre-se de como ela está frágil.

— Ok, mas eu não vou embora – disse ele, puxando uma cadeira de mogno e postando-a diante de meu leito. – Meu trabalho ainda não terminou por aqui.

— O que quiser, mas sem mais histórias por hoje – ordenou Águas Claras sob a Lua.

— Curandeira, será que já posso ir? – perguntei, exausta de ficar deitada, com todos aqueles fios grudados em mim. – Não sinto nada, minha hospedeira está em perfeito estado. Juro que entrarei em contato com o Logan se... lembrar de qualquer coisa. – Eu sabia que aquela última parte era mentira; eu jamais, jamais diria qualquer coisa que fosse prejudicar Ian, ou qualquer outro humano que...

Peregrina tinha laços extremamente fortes.

A Curandeira e o Buscador se entreolharam por um instante, e ele deu de ombros levemente.

— Bom, Estrela...— a Curandeira começou. — Posso te chamar assim? – Eu assenti. – Pois bem. Eu tentei te dizer antes, mas Logan a fez ter um colapso.

O Buscador revirou os olhos.

— Dizer? Dizer o quê? – eu indaguei, minha voz assustada se elevando uns cinco oitavos.

— Se acalme, querida – pediu ela. – É apenas... Um contratempo inesperado. Um perigoso contratempo inesperado.

— Que contratempo?! — gritei, entre dentes. Esta hospedeira odiava protelações.

— Essa hospedeira está... Grávida. – disse Águas Claras sob a Lua, a verdade saindo rápida e automaticamente em reação à minha exaltação.

Demorou minutos para que eu pudesse absorver o que tinha sido dito. Segundos para que eu considerasse a hipótese. Milésimos para eu me desesperar.

— Não, não pode ser. – Balancei a cabeça de um lado para o outro furiosamente. – Ela não se lembra de estar grávida. Peregrina não desconfiava disso, ela nem sequer sentia os sintomas!

— É uma gravidez recente, Estrela. Apenas algumas semanas, pouco mais do que dias. Isso significa que é muito cedo para que a hospedeira possa demonstrar qualquer tipo de sintoma. Somente nossos aparelhos avançados foram capaz de detectar seu bebê, que ainda é bem menor do que um ervilha. Acredito que ela não teria como saber.

Eu não podia conceber a idéia de acreditar naquilo.

Ela estava grávida? Eu estou grávida? Como isso poderia acontecer? Como eu poderia ter um bebê, um bebê que tecnicamente não era meu, mas que viria de dentro de mim? Aquilo não era racional. Fugia à lógica, talvez até à ética de qualquer espécie, a humana ou a das Almas. Eu não poderia tirar o filho de Peregrina. Eu não poderia tirar o filho de Ian. Aquela idéia estava além dos meus limites. Me atordoava, ao mesmo tempo que essa maternidade... me encantava.

— É uma gravidez de risco — prosseguiu a Curandeira —, o corpo dessa hospedeira ainda é muito jovem. Não está devidamente amadurecido para conceber uma criança, e piora a situação ainda mais você ter ficado praticamente morta por quase uma hora depois de ter recebido as balas de Paralisium. Como ainda não sabíamos da gravidez, foi uma sorte o bebê não ter morrido.

— Por que não colocam Peregrina de volta, então? – eu perguntei, meus olhos embaçados pelas lágrimas que inundavam meu rosto. – O filho é dela. É um direito dela poder tê-lo.

— Queremos o melhor para aquela Alma – disse Logan no lugar da Curandeira. – Mas não é normal uma Alma conviver com humanos selvagens, não é nem sequer correto. Ela tem o direito a esse filho, mas também tem o direito de voltar para sua natureza de origem. E isso só acontecerá se ela estiver longe deste planeta e de todas as más influências deste lugar.

Eu sabia disso. Sabia que na primeira chance que Peregrina tivesse de voltar para seus humanos, ela iria. Na primeira chance que ela tivesse, capturaria seu corpo de volta, pegaria seu filho de volta, e iria voltar para as cavernas. O único lugar, com as únicas pessoas que ela seria feliz neste ou em qualquer outro planeta. O único lugar em que ela seria feliz enquanto existisse.

— Enfim — suspirou Logan, passando a mão pelos cabelos castanhos e curtos –, talvez você possa lidar com isso. Agora... Que tal me dar respostas?

— Logan, não acho que esta seja a hora – se opôs a Curandeira, com o semblante preocupado. Ela era uma mulher bem jovem e bonita, seus compridos cabelos avermelhados ondulavam até a cintura, a pele lisa e branca como mármore. Seus olhos, amendoados e de um suave tom castanho, pareciam sempre gentis.

— Eu não posso esperar até que ela fique completamente curada para fazer meu trabalho, queridinha. E definitivamente não tenho paciência para esperar nove meses – o Buscador disse, num tom sarcástico. Ao menos foi a palavra que meu corpo me deu. Sarcasmo.

Tudo o que ele dizia tinha uma pontada disso, e algo que parecia fazer com que ele estivesse constantemente em um desafio. Ironia, objeção, quase sempre na defensiva. Alguma coisa em mim dizia que aquilo era apenas um tipo de cobertura que ele usava, como se tentasse não demonstrar mais do que isso para qualquer pessoa que fosse. Mas não era apenas isso que era Logan; um Buscador ligeiramente irritante e até um pouco insensível. Seu hospedeiro era... O que os humanos chamam de... sexy.

Eu não sabia explicar. Não estava familiarizada com os conceitos dos humanos, mas eu tinha muitas memórias neste corpo. A Alma adolescente chamada Pet, com seus hormônios descontrolados, reconhecia isso. A humana chamada Melanie, a quem Peregrina amava e que já tinha sido sua hospedeira, sabia disso também. As lembranças de Peregrina, seu corpo possuído e em delírio nos braços de Ian, me diziam que ela também concordaria. Todas elas seriam capazes de identificar o que eu via nele.

Ele era forte, seu corpo aparentemente esguio tinha músculos discretos, mas poderosos. Eu podia vê-los se movendo sob a roupa preta, seus impulsos culminando em suas mãos nervosas, sedentas por terem em que se agarrar. O jeito como ele se mexia, fazendo crer que nada nunca poderia ficar em seu caminho, dava a seu corpo um apelo irresistível. O desdém com que ele olhava para tudo com seus olhos brilhantes e verdes, que traíam os lagos profundos onde ele afogava suas lembranças, fazia-me acreditar que ele poderia convencer uma mulher humana a fazer qualquer coisa.

Mas eu não era humana. Tudo o que eu sabia sobre ser uma me dizia que eu precisava proteger os humanos de Peregrina. Os meus humanos.

— O que quer saber? – perguntei, um pouco receosa com o que ele me perguntaria esperando uma resposta sincera. Mas eu já havia tomado minha decisão.

— Você sabe onde fica o esconderijo deles?

Eu sabia. Tinha um mapa inteiramente detalhado na minha mente, uma junção de linhas e pontos que daria exatamente nas cavernas; uma coisa que herdei de Peregrina, que havia aprendido isso depois de tempos morando naquele lugar.

— Eu... Eu não sei. Não consigo me lembrar ainda.

— Sabe quantos humanos vivem lá?

— Não, eu não sei.

— Sabe se eles têm acesso a mais armas além daquela Glock?

— Hmm... Não.

— Eles dispõem de mais algum veículo?

— Eu não me lembro.

— Mais alguma Alma vive entre eles?

— Bom... Eu... não sei.

— Sabe quantos olhos você tem?

— Eu nã... O quê?!

— Oh, céus. – Logan suspirou, olhando para cima – Acho que você está muito cansada, Estrelinha. Tente dormir, às vezes ajuda a ter acesso às memórias. E não se preocupe. Quando acordar, eu ainda estarei aqui. – Ele sorriu de forma maliciosa e encostou-se à cadeira.

Eu suspirei também, mas o som saiu entrecortado. Eu nunca havia mentido de forma tão dissimulada antes, e muito menos por alienígenas. Não era comum mentir para mim; esta foi a primeira vez que eu menti na minha vida. Mas este corpo era acostumado a mentir, seus sinais vitais nem sequer se alteravam. Quer dizer, Peregrina costumava mentir com este corpo. Ela mentia para todas as Almas que encontrava fora das cavernas, até para Buscadores. Mentir para ela era quase um hábito necessário.

Logan estava certo, eu deveria dormir. Estava exausta, meu primeiro dia neste mundo foi mais cansativo que todas as minhas vidas com os Ursos. E eu sabia que teria muito mais por vir.

Então, virei minha cabeça para o outro lado e tentei não pensar em nada. Nem no bebê, nem em Ian, nem no Buscador ao meu lado esperando por informações que eu não seria capaz de dar, nem em Peregrina, nem nos humanos que eu amava que estavam longe de mim. Em nada mesmo.


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Notas finais do capítulo

Esperamos que tenham gostado, deixem suas opiniões! :*