A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 28
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Notas iniciais do capítulo

And I will love you, babe, always
And I'll be there, forever and a day, always
I'll be there till the stars don't shine
Till the heavens burst and the words don't rhyme
I know when I die, you'll be on my mind
And I love you, always

(Always - Bon Jovi)



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POV – Peregrina

Os inícios e os finais sempre se pareciam. Não havia propósito em tentar distingui-los.

Novamente, eu flutuava no azul. Um azul intenso e flamejante que perfurava a neve, onde as eras se encontravam como os ponteiros de um relógio. Meia-noite. O universo era neve, safira e meia-noite.

O azul me confortava. Eu flutuava, mas estava presa a ele, a essa cor que penetrava em quem eu era e me definia, a esse amor que me envolvia num abraço. Ora revolto. Ora calmo. Sempre profundo. Como o mar. Infinito.

Meu peito ardeu à lembrança do amor. Então eu tinha um coração para doer? Era intenso. Perturbador. Era bom. Era sempre estranho e paradoxal ser um humano.

Os corpos também pareciam iguais, distinguíveis apenas por sua ausência. Músculos, nervos e ossos conectando-se sob a pele. Em breve, eu poderia senti-los novamente. Nada profundamente diferente de outros despertares. Mas então havia as emoções. A força implacável que movia os corpos: os sentimentos, a identidade, a memória. E havia tantas memórias chegando, com tamanha força, que ameaçavam me romper.

Eu era uma jovem humana. Um corpo vibrante e poderoso impulsionado por um temperamento forte e determinado. Melanie. O espírito indomável. Um amor profundo penetrando em minha essência e me movendo para além de qualquer limite. Jared. Jamie. Melanie me deu uma família.

Eu era também Pet, e tinha as emoções brandas de uma Alma jovem demais, quase infantil. Um coração inabitado até que foi tomado, consumido, modificado em sua essência. Eu era Peg então. Era esse meu nome? Algo corria dentro de mim, incessante. O fluxo da rocha incandescente. Estava feito agora. Tudo estava mudado praa sempre. Natural, profundo e imutável como se tivesse sido sempre assim. Eu pertencia a Ian.

Ian.

Então era aqui que estava meu sangue. Eu podia senti-lo agora, fervendo sob minha pele, o desejo urgente me fazendo redescobrir minhas veias. Eu precisava estar com ele. Onde estavam minhas mãos? Os músculos sob esta pele em chamas? Siga o calor. Siga o frio.

— Peg? Peg, acorde, querida. Eu preciso que você acorde. Eu preciso de você – disse a voz que me fez redescobrir meus ouvidos, profunda, caudalosa, suave.

Continue falando. Senti tanta saudade. Eu pensei... Eu pensei que nunca mais fosse te ouvir. Que nunca mais poderia te ver. Eu esperei durante meses. Mas ainda não.

Eu era Estrela então. Uma Alma ávida e verdadeira, tomada pelo encanto de sentir. Apaixonada pelas sensações que não eram minhas. Um vislumbre de Jared, de quando tudo em mim ansiava por ele. Mas este corpo ansiava por Ian. Meu coração se contorceu dentro do peito e uma lágrima escorreu por meu rosto, mostrando-me o caminho para as próximas. O toque suave dos lábios de Ian a colheram. Eu conhecia aquele toque, conhecia aquele gesto. De quando eu era Peg e tudo aquilo me pertencia.

Ninguém me preparou para a solidão. Para o abismo sem fim que me separava da felicidade. Eu estava preparada para a dor, mas não para o vazio, para a saudade. Aquele era um tipo totalmente diferente de suplício. Ausência era algo profundamente escuro.

Mas, de repente, havia luz. Olhos verdes que ardiam sob a prata. O olhar implacável e quase cruel cuja prata derretia-se apenas por mim, fundindo-se à de meus próprios olhos. Alguém só meu. Um amigo. Um protetor. Um amor. Uma chance. Meu Logan.

E havia mais alguém. Alguém cujo coração palpitava mais próximo ao meu do que qualquer outro. Não havia uma imagem. Era apenas um sonho. Alguém imaterial em torno de quem se fechava toda a minha existência. Alguém importante demais para que eu pudesse viver novamente, um segundo sequer, num mundo onde ele não estivesse. Alguém frágil. Alguém que corria perigo. Alguém a quem proteger.

— JOHN! – gritei, reencontrando minha voz, redescobrindo meus olhos que se abriram de súbito para os olhos de Ian.

— John está bem – disse ele, segurando minhas mãos e levando-as à minha barriga. – Sinta-o. Você consegue? Ele está aí dentro de você. Ele está seguro.

— É nosso filho – disse eu, maravilhada com a descoberta de um novo mundo inteiro. Nova rocha incandescente corria sob mim. Sob nós. Unindo-nos novamente. Mudando tudo. Agora éramos três.

Ian tomou-me nos braços, segurando-me contra seu peito, como na primeira vez em que nossos corpos se pertenceram. E eu sabia que aquele começo seria totalmente diferente, que nada nunca mais poderia ser a mesma coisa. E isso era maravilhoso.

Mas para ele, para Ian, houve muito mais do que um fim antes desse recomeço. Quantas vezes um coração humano pode ser quebrado? Qual a força necessária para se reerguer quando seu mundo é inteiro roubado de você? Ele enterrou o rosto em meus cabelos e chorou, libertando a fúria da dor que o corroía.

— Eu não conseguia respirar. Eu não podia mais respirar – ele repetia, sua voz abafada na minha pele, o calor de sua respiração insuflando a força de suas emoções para dentro de mim.

Eu pude sentir suas lágrimas molhando minha pele, meu próprio rosto, e me esforcei para encontrar seus olhos. Eles estavam diferentes. A dor os havia mudado. O que tinha acontecido com meu pobre Ian durante o tempo em que estive longe?

“Você vai ficar bem”, eu queria dizer, ansiosa por acreditar nisso como numa verdade incontestável, como se acredita que um dia, não se sabe quando, a chuva cairá sobre nosso deserto. Mas eu não podia ainda.

Havia um abismo em seus olhos safira, algo de selvagem e descomposto em sua expressão, maculando a costumeira placidez da neve.

— Você vai ficar bem? – perguntei, então, ao invés de afirmar.

— Sim, eu vou – respondeu Ian calmamente. – Logo. Tenho tudo o que preciso aqui – completou, abraçando-me um pouco mais forte, como se eu pudesse fugir.

Eu podia sentir seu coração batendo, meu ouvido muito próximo de seu peito e do ritmo que determinava também minha própria vida. Então eu acreditei. Ian podia tentar mentir para si mesmo, mas não mentia para mim. E uma coisa eu tinha aprendido sobre aquele humano afável e forte diante de mim: seu coração era puro e resiliente. Um território inóspito e infértil para mágoas ou tristezas permanentes.

Suas paixões eram como tempestades de verão. O ódio, o ciúme, a tristeza, suas explosões de violência, tudo isso era furioso e, aparentemente, destrutivo e ameaçador, mas desde o início já traziam em si o prenúncio do fim. No entanto, seus amores eram fortes e definitivos e era isso que o movia. A tristeza era apenas mais uma tempestade.

A capacidade de Ian em realinhar constantemente o equilíbrio de seu próprio universo era incontestável. Agora mesmo ele já sorria de um jeito que me fazia acreditar que nada nunca tinha saído de sua órbita. Como quem sabe instintivamente que felicidade e dor se complementam como a noite e o dia, um impossível sem o outro. Ian simplesmente parecia saber dessas coisas e esse conhecimento era parte de quem ele era.

Os humanos costumavam dizer que existiam dois tipos de pessoas: aquelas que achavam que um copo pela metade está meio vazio, e as que achavam que ele estava meio cheio. Meu Ian, no entanto, jamais perderia seu tempo tentando determinar isso. Para ele, simplesmente não existe o copo.

Ainda assim, mesmo com a certeza de sua resiliência intrínseca, era impossível ignorar os sinais visíveis de uma dor cortante que atingia meu peito através de seus olhos.

— Sinto muito – eu disse, lembrando-me de quanta aflição eu tinha trazido a ele desde que cheguei aqui.

— Pelo quê? – perguntou ele, confuso, já quase esquecido da tristeza avassaladora que tinha revelado há poucos instantes.

— Por todo sofrimento que eu te trouxe.

A essas alturas, Ian tinha se sentado no catre, ainda me segurando nos braços, aninhando-me como a uma criança. Mas ao ouvir minha frase, ele me afastou de seu peito para me olhar enquanto soltava um bufo incrédulo.

— Você só pode estar brincando, não é? – disse ele, com um meio sorriso encantador nos lábios. – Eu não chamaria isso de sofrimento – complementou baixinho, antes de me trazer definitivamente de volta à Terra com um beijo.

— Espero que isso seja só parte do pacote de boas-vindas – provoquei quando voltei a mim.

— Ah, é! – respondeu ele, com um olhar que me fazia esquecer do resto do mundo.

O resto do mundo!

— Ian, onde estão todos? Aconteceu alguma coisa na minha ausência?

— Está tudo bem. Estão todos lá fora. Doc deve estar logo aqui na porta, de prontidão caso você se sentisse mal ou algo assim. Sunny, Mel, Jamie, Jared e Jeb também devem estar por perto. Não foi fácil tirá-los daqui. Todos sentimos sua falta.

— Mas por quê, Ian? Por que eles não estão aqui se queriam estar?

— Porque eu precisava de você só pra mim hoje. Só desta vez, eu queria que você abrisse seus olhos só para mim.

— Eu sempre vou abrir meus olhos primeiro para você.

— Espero que esteja se referindo a todos os dias pela manhã, porque eu nunca mais quero passar por outra inserção. Você é linda, Peregrina. Um lindo anjo prateado, mas eu não suportaria ter você em minhas mãos novamente. Chega de criotanques para nós!

— Sim, chega – eu disse acariciando seu queixo e beijando a pele de seu peito, exposta através de alguns botões abertos em sua camisa, e ele retribuiu encostando seus lábios em minha testa.

Aquele era o paraíso e eu queria mais, queria ficar ainda mais próxima dele, queria tê-lo colado ao meu corpo por tanto tempo que nos fizesse esquecer de que éramos dois e não um só. Mas eu também queria ver meus amigos, minha família e queria muito saber, embora tivesse medo de perguntar, onde estavam aqueles que eu já amava, mesmo sem conhecer.

— Ian? – chamei, com cuidado.

— Humm? – respondeu ele, imerso no mesmo torpor do qual a custo eu me arrancava.

— Como está Estrela?

— Ela está bem. Está segura num tanque, mas não está aqui. Ela foi levada e quando voltar estará em um novo corpo.

Eu sabia quem a tinha levado. Logan. Um sobressalto de carinho e saudade invadiu meu peito quando me lembrei dele. Ela o amava. Senti-me como Mel deve ter se sentido em relação a Ian. Então me lembrei de como me sentia no começo, em relação a Jared, e entrei em pânico, minhas mãos se fechando como garras na camisa de Ian. Como ele se sentiria em relação a ela?

— Como ela é? – perguntei com medo.

— Ela é ótima! Você vai gostar dela.

— Eu já gosto. Sei que ela me ama e ama John. Ela cuidou de todos nós. Não há como não amá-la. Mas eu quero saber de você. Como você se sente?

— Em relação a ela? – Ian deu um suspiro lento antes de responder, como se escolhesse as palavras com cuidado. – Mais ou menos como me senti em relação a Mel. Ela é minha amiga, mas não é você. No instante em que pousei os olhos nela eu soube disso. Você não precisa se preocupar. Mas e você? E o namoradinho Buscador dela? Como você se sente ao pensar nele?

— Acho que igual a você. Eu gosto dele. Quero que ele esteja bem, mas é só. Como ele está? Da última vez que Estrela o viu, ele parecia muito triste...

— Quem? O Exterminador do Futuro? Ele vai ficar bem enquanto tiver sua Sarah Connor para proteger.

— Quê? Quem é Sarah? – perguntei confusa.

— Nada não, Peg. É só um filme antigo. Um apelidinho que eu e Kyle colocamos nele – disse Ian, rindo sozinho. E eu fiquei aliviada que ele já estivesse voltando ao seu bom humor original. Ri também, mesmo sem entender a piada, só porque gostei de vê-lo rindo. Mas mesmo em meio às risadas, voltei a tocar em assuntos delicados:

— Ian, eu sei que deve ser difícil pra você, mas você vai precisar aceitá-lo por perto, não pode ficar rindo dele ou o provocando. Ele ama John e vai trazer Estrela de volta para nós. Só por isso ele já merece todo o nosso respeito. Eles são como uma família para nós.

— Eu sei, eu sei. Mas antes de cuidar do meu filho, ele tirou vocês dois de mim!

— Não seja teimoso! Você sabe que ele estava fazendo o que achava que era certo. Como você, no começo... – disse eu, fazendo algo que nunca tinha feito antes, tocando propositalmente em nossas feridas. Eu me sentia horrível em fazer isso, principalmente quando seus olhos alegres escureceram com a lembrança, mas eu precisava fazer Ian entender. — O importante é que estamos todos aqui agora – sentenciei.

— Tudo bem, Peg. Não precisa me dar bronca, fica engraçado vindo de alguém com essa carinha! Você não vê como eu e Kyle nos tratamos? Brigar e se odiar na maior parte do tempo é coisa de família! O Exterminador logo entra na brincadeira. Supondo que ele tenha senso de humor...

— Ele tem nome, Ian! Você é impossível!

— Sim, sim... Vamos parar de defender o namoradinho da outra agora, que tal? – falou ele, fechando a cara de um jeito que eu já tinha aprendido que não passava de brincadeira.

— Tudo bem, me desculpe – pedi, por via das dúvidas. – Será que eu já posso ver o resto do pessoal?

— Pensei que nunca perguntaria! – disse Mel ao fundo.

Não sei há quanto tempo eles estavam ali ouvindo, mas quando me virei e vi quase todos os rostos que amava, tive certeza que minha décima vida, tão bruscamente interrompida, não seria retomada de onde parou, mas de um lugar muito melhor: nos braços de meus saudosos amores.


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Notas finais do capítulo

Dedicado a Emily Valentim, por sua linda Recomendação.