A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 27
Retirada


Notas iniciais do capítulo

Hush now
watch the stars fall
into a fire wall
I am waiting here
waiting for you to come home
Sinking embers glow
Melting icy snow
I am waiting here,
waiting for you to come home

(Waiting - Norah James)



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POV — Estrela

Numa noite perdida no tempo, num passado que me parecia imemorial, Peg andou por estes corredores. E seus pés, que tinham o mesmo destino dos meus, acreditavam estar percorrendo este caminho familiar pela última vez.

Mas embora eu estivesse me encaminhando para o mesmo lugar para onde ela ia naquela noite e ainda que eu tivesse o mesmo propósito, devolver a vida para aqueles que amamos, não havia nada mais de parecido nas nossas experiências.

Peg estava assustada e sozinha e seu coração estava tomado pelo medo e pela tristeza por ter que abandonar aqueles que amava. Seu medo era suplantado apenas pelo amor que a motivava. Ela sabia que estava fazendo o melhor para eles, mas também sabia que eles podiam não compreender e que, ao fazer o bem, ela estava também arrancando um pedaço deles.

Quanto a mim... Eu não estava com medo. Queria fazer isso e sabia que ia voltar. Da mesma forma, sabia por que e por quem estava me entregando. Por eles. Mas, acima de tudo, por mim.

Eu não estava sozinha. O caminho era para mim o que devia ter sido para ela: cercado de amor e gratidão. Minha família me acompanhava. Meu tio, meus irmãos, meus amigos Jared, Doc e Sunny. E meus amores.

Ian se aproximou de mim e segurou a minha mão. Segurando a outra estava Logan e os dois trocaram um olhar praticamente assassino, mas nenhum deles me soltou. Jared deixou escapar um risinho abafado e Mel o censurou com o olhar, mas, no fundo, todos nós compartilhávamos da sensação de déjà vu e sorrimos internamente por isso. Todos menos Logan.

Olhei pra ele e vi sua mandíbula se contrair. Naquele momento, eu o admirei ainda mais, porque sabia que ele estava sofrendo e que não era do seu feitio ficar impassível diante de algo que o incomodava, mas ele respeitava os sentimentos conflituosos que acreditava estarem no meu coração. Eu também sabia que, no fundo, ele apreciava o gesto de agradecimento de Ian e eu o amava um pouco mais por isso, por querer meu bem acima de si mesmo.

Eu também era grata pelo gesto de Ian. Sei que ele gostaria de ter feito isso por Peg, então agora fazia por mim e eu me permiti ser esta homenagem, esta declaração de amor que ele fez para ela gravando-a na memória deste corpo. Fiquei feliz por isso. E porque era a minha mão que ele segurava também, para garantir que eu não tivesse medo, que eu soubesse o quanto ele era grato. E eu sabia.

Mas o contato físico com ele me fazia sentir dividida e essa era uma angústia à qual eu havia renunciado. Não queria estar ancorada a uma vida e a um amor que não me pertenciam. Havia uma parte de Ian dentro de mim e sempre iria haver, porque eu nunca deixaria de amar John. Mas ele era também uma parte de Peg, então eu deixaria meu amor pelos três se fundir em um só, um amor sólido e inabalável por essa família. Um sentimento terno que não combinava com o arrepio que subia pelo meu braço quando eu sentia o calor da mão dele na minha.

Então eu o deixei ir. Desentrelacei nossos dedos e afaguei carinhosamente seu pulso em despedida, enquanto olhava para ele e lhe comunicava silenciosamente minha decisão. Quando ele pareceu não entender, levei a mão que estava na dele até a de Logan e a envolvi com ambas as minhas.

Ian contraiu os lábios enquanto suspirava e, em seguida, sorriu, ainda com os lábios contraídos, assentindo uma vez com a cabeça, me deixando saber que achava que eu tinha feito a coisa certa.

Virei-me para Logan que continuava olhando para frente, tentando fazer parecer que estava imune a tudo e que respeitava nossa privacidade, mas eu sabia que ele acompanhado cada lance de nossa troca. Sabia disso porque já o conhecia como alguém conhece o seu mundo, o seu próprio coração. E também porque ele reprimiu um sorriso e apertou forte a minha mão enquanto continuava a olhar para frente.

Sunny se adiantou uns passos e tomou meu lugar ao lado de Ian, segurando a mão de seu cunhado para que ele soubesse que não estava sozinho. Ela sorriu para mim e senti Mel afagar meu ombro, seus passos ritmados com os de Jared e Jamie que caminhavam a seu lado. Logan trocou um olhar com Jeb que caminhava mais à frente, ao lado de Doc, e senti que a presença de seu novo amigo o deixava mais tranquilo. Estávamos todos ligados. Nenhum de nós estava sozinho, afinal. E eu estaria com eles até o fim.

Por isso, quando Jeb e Doc entraram no hospital, antes de segui-los, eu me virei para os demais. Não para dizer “adeus”, essa palavra tão temível cuja perspectiva tinha me perseguido até ali. Mas para dizer a frase mais doce que se pode dizer a quem se ama, palavras simples e subestimadas, que carregam a promessa do amanhã:

— Até logo! – disse eu, e naquele momento não havia nada que pudesse gritar meu amor por eles mais alto do que meu desejo de voltar.

— Você não quer que fiquemos com você? – perguntou Mel, com só uma pontinha de decepção.

Eu não queria. Sabia que aquele seria um momento doloroso para Logan e suspeitei que ele preferiria passar por aquilo longe dos olhos dos humanos. Jeb podia ficar, porque “a casa era dele” e porque Logan tinha aprendido a confiar nele no curto espaço de tempo que passaram juntos. Certamente, ele precisaria de um amigo e Jeb podia sê-lo. Mas já era suficiente que ele e Doc tivessem que me ver fechar os olhos. Se todos estivessem ali, soaria demais como uma despedida. E eu definitivamente não estava dizendo “adeus”.

— Não é necessário. Eu sei onde vocês moram. Pode deixar que eu acho vocês – gracejei, provocando risos.

— Volte logo pra casa então – disse Mel. – Estaremos te esperando.

E então ela me abraçou. Em seguida, vieram Jamie, que me deu um abraço apertado, e Jared, que me envolveu de um jeito desajeitado e meio tímido, mas me deu um beijo protetor no topo da cabeça, como se faz com uma criança.

Jared tinha sido tão compreensivo comigo! Acho que ele sentiu muito mais falta de Peg do que tinha deixado transparecer. Sempre sendo forte pelos outros!

Tomei o cuidado de registrar aquela impressão nas minhas lembranças, para que quando Peg acordasse, tivesse ainda mais certeza de que o carinho que ela tinha por ele era correspondido.

Então foi a vez de Sunny. Ela também me abraçou, forte e cheia de alívio:

— Estou tão feliz por vocês estarem aqui – vibrou discretamente, depois olhou sem graça para Ian e Mel. – Não me entendam mal, eu amo este lugar e amo vocês, mas às vezes é difícil demais ser diferente. Passo tanto tempo tentando enxergar o mundo pelos olhos dos humanos que acabo me esquecendo dos meus – explicou desnecessariamente, porque todos sabíamos do que ela estava falando.

E como hoje parecia ter sido decretado o “Dias das Surpresas de Sunny”, ela se aproximou de Logan e o abraçou também.

— Obrigada por me lembrar – disse a ele.

Qualquer um podia ver que o gesto era estranho para Logan, mas só eu que o conhecia bem sabia o quanto. Ele não estava acostumado a se abrir para os outros, parecia ser uma coisa que ele simplesmente não tinha descoberto ainda como fazer. Mesmo comigo, ele às vezes tinha aquele jeito de abraçar sem abraçar, em que você sabia que ele queria estar perto, mas não conseguia se entregar inteiramente ao carinho. Como se o coração não conseguisse se comunicar com o corpo.

No entanto, lá estava Sunny, pendurada no pescoço dele, ansiando por um amigo, por alguém que a ajudasse a enfrentar os desafios de ser uma Alma entre humanos. Tínhamos que estar juntos nós quatro, as Almas do lugar. E se tinha uma coisa que Logan gostava era de ter a quem proteger. Percebi isso quando ele relaxou no abraço dela para logo depois afastar-se com carinho dizendo:

— Não acho que você tenha esquecido seus olhos. Acho que todos nós aqui temos nos esforçado para tentar ver as coisas sob outra ótica e você é bem melhor nisso do que eu. Você é mais forte do que parece. Mas se um dia achar mesmo que esqueceu, nós te ajudaremos a se lembrar.

— Sim. – Sunny sorriu para ele. – Nós nos ajudaremos. Traga logo Estrela de volta. Peg e eu estaremos esperando.

Finalmente, chegou a vez de Ian. Ele se aproximou de mim e Logan, que continuava ao lado se Sunny, fingiu se concentrar nela enquanto se afastava um pouco. Como sempre, ele estava dolorosamente ciente do outro, do efeito que a presença de Ian tinha sobre mim, mas procurou agir como se não estivesse. Porém, ao contrário do que se esperava, Ian se dirigiu primeiro a ele:

— Não estou dizendo que as coisas entre nós vão ser fáceis, Buscador, mas você é um de nós agora e não acho que vou conseguir te manter longe do meu filho. O melhor então é nos esforçarmos pra fazer isso dar certo. Você cuidou dela e a manteve segura, na maior parte do tempo, e sei que, embora você não tenha me dito nada, manteve-se longe do corpo de minha Peg, mesmo com sua Estrela aí dentro. Então vou começar a tentar fazer dar certo te retribuindo o favor.

Ian deu uma risadinha calorosa e se virou para mim.

– Que tal deixarmos o abraço pra quando isso for menos esquisito, Estrela? — Ele tocou meu rosto com uma mão e minha barriga com a outra. – Até logo.

Imaginei se ele estava dizendo aquilo para mim ou para Peg, mas preferi pensar que era para mim.

— Até logo, Ian. – Suspirei.

Sua Peg. Minha Estrela – disse Logan frisando os pronomes. – Gostei disso. Acho que posso fazer um esforço pra tolerar você quando as coisas estiverem resolvidas.

Ian sorriu e pareceu entender que aquele era o jeito de Logan dizer que podia ser seu amigo. Afinal, ele era sensível e perspicaz o suficiente para chegar a compreender quase tão bem quanto eu o jeito provocador de meu Buscador. Além disso, era sarcástico o bastante para responder à altura.

— Sim, senão a gente sempre pode resolver as coisas de onde paramos da última vez.

Visões de sangue misturado na areia surgiram em minha mente e eu tentei afastar para longe o desespero de pensar nos dois se enfrentando, porque sabia que Ian estava só brincando. Eu podia simplesmente deixar aquilo de lado. Tinha sido no dia anterior, mas parecia que tinha acontecido há um século agora. Tanta coisa havia mudado desde então!

Além disso, aquela era a hora de partir para uma nova vida, uma em que angústias e conflitos não teriam mais lugar. Senti-me subitamente cansada, mas feliz, ansiosa.

— Vamos – pedi a Logan. – Estou cansada e preciso de um cochilo antes de iniciar minha terceira vida. – Pisquei para ele e ele sorriu, porque sabia o que eu ia dizer a seguir. – Com você – disse baixinho em seu ouvido e em retorno ele me olhou de um jeito que fez meu sangue ferver.

Nós nos viramos e entramos no hospital. Doc e Jeb estavam parados num cantinho, esperando. Cada um deles se aproximou de mim e me deu um abraço protetor e agradecido.

Acompanhei com os olhos enquanto Doc caminhava lentamente até a mesa de madeira, em direção à pequena caixa plástica que guardava seus instrumentos esterilizados. Mas ele não os apanhou. Em vez disso, sua mão viajou até uma pequena lata de spray com o nome “Dormir”, e eu sabia o que aquilo significava. Mas eu não tinha medo.

Senti os olhos de Logan sobre meu rosto e me virei para encará-los. Era ali que eu sabia que sempre encontraria o meu lugar. Neste planeta. Nestas cavernas. Nesta vida. Em mim.

— Você está bem? – ele perguntou sorrindo um pouco, mas eu sabia o que ele estava tentando esconder.

— É claro. – Sorri de volta, e não me espantei ao ouvir a confiança em minha própria voz. – E você? Como está se sentindo?

— Em parte, aliviado. Porque isto está chegando ao fim, toda esta maluquice – brincou. – Mas por outro lado, a situação me deixa um pouco… nervoso. Eu não sei, ainda acho que talvez esses humanos não saibam como fazer isso e te machuquem.

— Você não precisa se preocupar, Logan. Os humanos sabem como fazer, já fizeram outras vezes. Várias vezes. Eu vou ficar bem. Nós dois vamos ficar bem juntos.

Ele sorriu e acariciou meu rosto levemente.

— Sim, nós vamos, amor.

— Só… Me prometa que não vai demorar para me trazer de volta. Prometa que vai estar aqui comigo, para sempre. Eu preciso de você aqui, meu Buscador. – Olhei dentro de seus olhos e pude jurar que, por um momento, vi lágrimas se acumulando ali.

— Quanto a isso, você pode relaxar. Sinto dizer, mas não vai conseguir se livrar de mim tão cedo, Estrelinha — prometeu ele, com um brilho intenso no olhar. – E antes mesmo de você imaginar o que está acontecendo aqui, já vai estar de volta. Então vamos ficar juntos, mais do que para sempre. Estamos irrevogavelmente fundidos.

Irrevogavelmente fundidos.

Não consegui falar nada após aquilo, porque um bolo se formou em minha garganta e lágrimas fizeram meus olhos arderem. Tudo que consegui foi olhar para ele, para seu rosto, para seus olhos, e encarar a única pessoa por quem eu me disporia a enfrentar tudo aquilo um milhão de vezes.

Ouvi os passos de Doc na minha direção e também vi Jeb se aproximando do meu catre. Eles sorriram para mim de maneira terna e delicada e eu sorri de volta. O médico humano murmurou alguma coisa enquanto borrifava em meu rosto o conteúdo da lata de Dormir, e eu achei que era uma breve promessa de que eu estaria de volta logo.

Jeb fez o mesmo, mas socou meu ombro de brincadeira enquanto dizia algo sobre se eu não achava aquilo tudo muito parecido com alguma cena no passado. No entanto, minha atenção não está completamente nenhum dos dois, mas sim no Buscador ao meu lado, que segurava minha mão cada vez mais forte, com a expressão cada vez mais intensa. Eu ainda tive tempo de ouvir um “eu te amo” antes de cair na inconsciência. Deixei o sono me levar sem medo algum, com algumas certezas imutáveis.

Eu iria voltar. E iria voltar para Logan. Voltaríamos juntos para os meus humanos e não partiríamos nunca mais. Porque era ali que minha vida estava.


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Notas finais do capítulo

Capítulo dedicado a May e Ayelli por nossas novas recomendações.
Esperamos que gostem.