A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 26
Tribunal


Notas iniciais do capítulo

Pulling your strings
Justice is done
Seeking no truth
Winning is all
Find it so grim
So true
So real

(And Justice for All - Metallica)



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POV - Estrela

Tudo aconteceu em instantes curtos, mas eu sentia que já tinha vivido um ano inteiro até que a voz de Jeb cortou a tensão palpável no ar, antes que o lugar entrasse em algum tipo de combustão espontânea.

— Todos quietos agora! – ordenou ele, a voz seca como areia do deserto. Mas sua ordem não foi obedecida de imediato.

As pessoas ainda olhavam assustadas para mim e sussurravam coisas a meu respeito. Isso porque eu era só a metade menos assustadora da equação. Quando Ian deslocou o peso do corpo, eu pude ver Logan novamente e ele parecia tão nervoso que eu achei que fosse explodir. Seu rosto bronzeado estava lívido e seus olhos, como eu não achei que fosse possível, estavam ainda mais brilhantes. Suas mãos inquietas fechavam-se em punhos para, logo em seguida, abrirem-se totalmente, esticando os dedos. O ar em volta dele praticamente vibrava com a violência que ele estava tentando conter.

Eu quase consegui sorrir quando Ian resmungou que “o Buscador parecia estar torcendo pescoços imaginários”, mas até para mim ele parecia aterrorizante e eu tinha certeza de que isso não era nada bom para nós. Ian afastou-se só um pouco, apenas o suficiente para deixar que Logan me visse e isso pareceu acalmá-lo por um segundo, mas ainda assim ele estava assustador. Qual teria sido a “feitiçaria” de Jeb para mantê-lo obedientemente no lugar?

– Tomem seus lugares. – Jeb voltou a ordenar, e alguns obedeceram, mas não todos. Então ele girou o rifle que estava preso em suas costas por uma correia de couro e o trouxe para frente do corpo. – Também tenho uma outra arma muito interessante aqui na minha cintura. Talvez vocês queiram ver como funciona. Foi um amigo que me emprestou e posso informar-lhes que ela não mata, o que significa que não hesitarei em usá-la, mas vocês não vão querer sentir a dor que ela provoca.

Senti um puxão instintivo na perna primeiro e depois no peito, lugares onde eu já tinha sentido aquela dor, e uma onda de terror me invadiu.

Realmente, tudo o que eu precisava era ficar com mais medo!

Mas a ameaça pareceu funcionar nos outros também, porque todos foram lentamente se sentando.

— Vocês já foram informados sobre o que viemos fazer aqui, então chega desse burburinho conspiratório. A partir de agora, cada um terá sua chance de falar abertamente o que achar necessário. Eis como vai funcionar: Logan e Estrela vão falar o que vieram fazer aqui e o que esperam de nós. Ou, se preferirem, alguém pode falar por eles. Depois cada um que achar que tem algo a dizer, vai ter seu tempo antes de votarmos. A maioria vence, como sempre. A maioria sendo a parte que conseguir me convencer com os melhores argumentos, quero dizer. Estrela, quer vir até aqui, por favor? Sente-se aqui ao nosso lado.

Então nossa pequena comitiva começou a se mover ou, antes, me arrastar. Minhas pernas pareciam feitas de chumbo, até que pude ver dois rostos conhecidos que eu não tinha percebido o quanto estava ansiosa para ver. Melanie e Sunny estavam sentadas uma ao lado da outra, sorrindo para mim. Sorri de volta e fiquei um pouco mais tranquila até ver o rosto de Kyle, que, pela primeira vez em qualquer uma das lembranças que eu pude vasculhar, estava afastado de Sunny. E ele parecia furioso! Eu não sabia por que, mas me lembrava bem de que Kyle nunca precisava de razão.

De chumbo, minhas pernas passaram a parecer feitas de manteiga, e eu sabia que Jared e Doc estavam apoiando todo o meu peso enquanto me olhavam com preocupação.

— Você está bem, Estrela? Quer voltar para o hospital?

Balancei a cabeça de um lado para outro, porque não conseguia nem abrir a boca. Toda a energia que eu tinha no corpo estava sendo gasta para me manter respirando e para manter o sangue circulando numa intensidade satisfatória nas minhas veias.

Quando estávamos chegando perto de Logan, seus olhos pareciam incandescentes, faiscando de preocupação, e ele finalmente não aguentou mais manter-se parado. Jeb não seria capaz de segurá-lo, nem mesmo se tentasse, quando ele avançou alguns passos e contornou Ian, estendendo os braços para mim enquanto Jared e Doc me soltavam devagarinho. Eu me agarrei a ele, tentando me esconder sob sua força, porque eu sentia que não tinha mais nenhuma. Ele colocou a mão sobre meu rosto, apertando-me contra seu peito e formando uma barreira entre mim e o resto do mundo. Então, protegida em seus braços, eu me fortaleci na ilusão de que estávamos de volta a um mundo só nosso, tranquilos e em paz no pequeno e aconchegante apartamento em Phoenix.

— Não tenha medo, amor. Está tudo sob controle – ele disse baixinho em meu ouvido. Então eu olhei para ele e vi a confiança que jamais abandonava sua expressão. Como eu podia não acreditar?

— Você vai se comportar quando não for fácil de ouvir o que eles tiverem a dizer? – perguntei, e ao conseguir articular uma frase relativamente longa, percebi que estava me acalmando.

Por um momento, me deixei levar pela ilusão de que eu teria forças para enfrentar qualquer coisa se estivesse ao lado dele. Talvez não fosse verdade, mas eu me sentia espantosamente bem ao pensar assim.

— Quando foi que eu não me comportei, Estrelinha? – disse ele, dando uma piscada provocativa para mim.

Eu podia pensar numa lista com pelo menos uns dez itens, mas achei melhor deixar isso para lá, porque eu ainda não estava forte o suficiente para entrar no jogo de provocações do meu Buscador. E nem esse era o momento, foi o pensamento que me invadiu com força quando ele me ajudou a me sentar e eu pude olhar novamente para os rostos confusos ou furiosos à espreita.

— Muito bem – disse Jeb. – Já que estamos todos prontos, vamos começar. Alguém quer falar em nome de nossos visitantes?

— Nós gostaríamos de falar por eles – disse Mel, enquanto ela e Sunny ficavam de pé diante de Jeb.

— Vocês aceitam? – ele nos perguntou, e eu balancei a cabeça freneticamente, sorrindo de orelha a orelha. – Pois muito bem – confirmou.

Então Kyle se levantou, com um ódio que há tempos eu achava que não se via em seu olhar, e declarou:

— Pois então eu quero falar contra este absurdo! Acho que tenho uma coisinha ou duas a dizer sobre isso.

O olhar que ele e Sunny trocaram nessa hora foi duro e seco como pedra e eu sabia que ele a estava corroendo por dentro com essa intolerância, porque, do jeito que ela via, era como se ele estivesse falando contra ela. Pobre Sunny!

Ian, que tinha se sentado junto ao resto da minha “escolta” atrás de nós, soltou um bufo audível e Kyle devolveu a ele um olhar petrificante e gélido, daqueles que ele conseguia quando estreitava os olhos e contraia a mandíbula. Logan se mexeu impaciente ao meu lado e eu sabia que ele estava imaginando alguma coisa como um atropelamento com vítimas fatais para Kyle. Jeb, por outro lado, não pareceu se preocupar, e fazendo um gesto de descaso com uma das mãos deu início aos “procedimentos”.

— Tanto faz, O’Shea. Você sempre tem alguma coisa a dizer. O desafio é você tentar me convencer. Vamos começar com a decisão mais óbvia e fácil, ou seja, vamos falar sobre Estrela. Mel, quer a palavra?

— Sim, tio Jeb. Obrigada.

Melanie parecia extremamente educada e cuidadosa, não que ela não fosse normalmente, mas a aparência era de que, assim como o tio, ela assumia um papel ensaiado neste joguinho onde o prêmio era a minha vida e a de Logan. Mais tarde, talvez eu até pudesse achar graça. Quem sabe? Se eu não estivesse dentro de um criotanque ou me lamentando pela perda de Logan. Um arrepio me percorreu e eu apertei a mão dele, que me olhou preocupado. Eu me esforcei para sorrir ternamente para ele e acariciei seu rosto.

— Eu só peço a vocês que olhem para ela – Mel afirmou com voz firme. – E vejam o quanto é delicada e inofensiva. Mesmo agora, tremendo de medo, ela tenta sorrir e tranquilizar os outros à sua volta. A maioria de nós gostava muito de Peg e conhecia sua natureza pacífica e abnegada. Sunny, essa Alma que continua entre nós – ela disse, olhando especificamente para Kyle que, quem diria, baixou os olhos corando –, é ainda mais meiga e não tem feito outra coisa a não ser buscar a amizade de vocês e ajudá-los no que for preciso. Quero que pensem sobre isso e, principalmente, quero que pensem sobre como nosso mundo ruiu na ausência de Peg enquanto eu expuser o pedido de Estrela e os argumentos a seu favor.

— Tudo bem – interrompeu Lacey. – Peg se mostrou útil pra nós, mas Sunny nunca saiu numa incursão e tem sido praticamente imprestável para o grupo. Qualquer um pode ver que ela é um fardo para Kyle e só mais uma boca a ser alimentada. Com essa aí provavelmente vai ser a mesma coisa...

— O único fardo que existe aqui é você, sua intragável inútil. Sua única tarefa aqui é tornar o lugar mais desagradável com seus comentários – disse Kyle, partindo em defesa de Sunny. Ainda bem! – Você sim, com todos os seus “não-me-toques”, é que é só mais boca para alimentar. Coisa que eu estou prestes a tornar mais difícil pra você, porque se tornar a falar assim sobre Sunny, ou mesmo sobre Peg, eu não terei escrúpulos de te arrancar os dentes da boca!

— Calma, Kyle! Se fôssemos levar em conta todas as barbaridades que Lacey diz, não iriam sobrar ameaças pra você fazer contra ela. E mesmo ela sendo assim, você sabe que eu não permitiria que você batesse em uma mulher – disse Jeb. – Embora eu bem que quisesse – disse ele baixinho, mas audível o suficiente para nós, que estávamos ao seu lado.

Sunny afagou o braço de Kyle em agradecimento e ele segurou um pouquinho a mão dela, mas os dois não se olharam, embora o toque dela o deixasse um pouco mais calmo e mais parecido com o Kyle das lembranças mais recentes de Peregrina.

— A importância de Peg para nós vai além das incursões – retomou Mel, sem se distrair com o burburinho, e quando ela levantou a voz novamente, todos se calaram. – Nós a amávamos. Ela fazia parte da minha família. Era minha irmã. Era a esposa de Ian. Era amiga de vocês. Era um membro produtivo e querido desta comunidade. E é a mãe desse bebê que Estrela carrega.

— Pois é aí que está o absurdo, Melanie! – exclamou Kyle, inflamado. – Peg era uma de nós e carregava meu sobrinho no ventre. Meu irmão ficou quase destruído quando achamos que ela estivesse morta. Agora vocês estão considerando deixar os culpados viverem entre nós? Que ela devolva o corpo de Peg e nós a mandaremos para outro planeta!

— Como você queria fazer comigo, Kyle? – interrompeu Sunny e todos, inclusive eu, pareceram surpreendidos. – Porque você achou que não teria problema? Que eu não sofreria ao acordar e me lembrar que o homem que eu amava estava morto há milhares de anos?

— Você me deu sua permissão, Sunny – disse Kyle baixinho, a voz alquebrada de culpa.

— Sim, pra te fazer feliz e por causa disso você me prometeu que não me esqueceria, que se lembraria de mim por todos os dias de sua vida. Você achou mesmo que eu não me lembraria de você também? Que não carregaria comigo a dor da incerteza se meu sacrifício valeu a pena? Que eu não sentiria sua falta? Estrela não é uma incubadora, Kyle. Assim como eu e Peg não éramos, não somos, as parasitas perigosas e insensíveis que vocês achavam que éramos. Estrela quer ficar porque ela ama esse bebê, porque ele também é um pouco filho dela. E porque ela também nos ama, assim como eu te amava sem te conhecer. Ela ama todos vocês – disse Sunny, pela primeira vez dirigindo-se à multidão, em vez de somente a Kyle. – E ela ama até mesmo você, porque Peg te amava. Não pense que Peg não vai se sentir ofendida com sua atitude contra uma de nós.

Puxa, só faltou ela desenhar o que estava sentindo e mesmo assim Kyle parecia não entender! Senti uma súbita e estranha ternura por ele ao me lembrar do quanto ele podia ser obtuso às vezes. Ternura e raiva! Porque ele continuava parado como um burro empacado em vez de tomar minha amiga nos braços e ir fazê-la feliz!

— Veja o quanto ela é agradecida a você, Kyle! – provocou Lacey.

— Você é que devia agradecer por estar viva, cretina! – ameaçou ele novamente.

— Além disso — continuou Mel, alheia à discussão –, ela podia ter tido uma vida feliz e confortável entre os seus. Ela poderia ter nos entregado e estaríamos todos mortos agora e ela criaria o bebê sem jamais precisar se preocupar com nada. Mas ela nos protegeu esse tempo todo, nunca revelou nosso esconderijo ou nenhum detalhe realmente importante sobre nossa existência. E, assim que pôde se levantar, abdicou da vida que poderia ter tido ao lado de seu companheiro para trazer Peg e seu bebê de volta para nós.

Ian se levantou nessa hora e disse, sem cerimônias:

— Estrela merece ficar onde quiser. É o meu filho que ela carrega e a minha mulher, a minha família, que ela trouxe de volta. Se for preciso, eu mesmo sairei em busca de uma hospedeira pra ela. Acho que estamos perdendo tempo com tudo isto aqui.

Eu não sabia o que sentir. Em tão pouco tempo, emoções tão opostas e tão intensas tinham me invadido que eu estava exausta demais para poder pensar com clareza. Junte-se a isso o fato de que eu mal tinha dormido essa noite, ou me alimentado desde que acordei, e temos o estado de espírito perfeito para enfrentar a decisão de sua vida. Mas de uma coisa eu tinha certeza: eu nunca esqueceria a sensação do amor quente e caudaloso que eu podia sentir invadindo meu coração a cada palavra de Mel, Sunny e agora Ian.

— Parece-me que tudo o que havia de importante a ser dito sobre esse caso já foi dito. Você tem mais alguma colocação ou podemos todos votar, Kyle?

Kyle pareceu inquieto e hesitante. Pensou por alguns minutos, mas finalmente olhou para os olhos de Sunny e, em seguida, direto através de mim para o irmão que tinha voltado a se sentar tranquilo e decidido quanto à sua deliberação. Então ele deu um suspiro alto e disse finalmente:

— Podemos votar.

— Pois então, todos a favor de que Estrela tenha uma nova hospedeira e possa fazer parte de nossa comunidade levantem as mãos.

Havia algumas exceções, as mais notáveis e óbvias sendo Lacey, Maggie e Sharon. Doc deu um suspiro de desgosto ao meu lado, mas ele provavelmente já sabia que seria assim. No entanto, quase todas as mãos se levantaram a meu favor e eu relaxei diante disso. Logan relaxou também, senti um pouco da tensão indo embora de seu corpo pelo quanto ele estava encostado ao meu. Então eu me lembrei que logo seria a vez dele e voltei a me contorcer de preocupação novamente, mas Logan permaneceu relaxado. Ainda mais quando Jeb olhou para ele e os dois trocaram olhares enigmáticos.

Eu não entendia como ele podia estar tão calmo. Entre a maioria dos que permaneceram de mãos baixas estavam provavelmente aqueles que não tinham nada específico contra mim, mas que não tinham ainda confiança de que eu não seria uma ameaça. No entanto, eu estava certa de que muito mais gente o veria dessa maneira. Preparei-me para o que viria, disposta novamente a dizer e fazer o que fosse preciso para protegê-lo.

— Está resolvido então. Estrela, a partir de hoje, é membro de nossa comunidade, devendo ser respeitada, auxiliada e ouvida como tal. Agora, vamos falar de Logan.

— Essa é fácil, é óbvio até pra vocês, amantes de parasitas! – gritou Sharon, olhando diretamente para Doc, que soltou um lamento inarticulado. – Esse aí é um assassino!

— Concordo com Sharon – disse Kyle – Ele é um Buscador, como a que nos tirou Wes – lembrou, lançando um olhar afiado para Lacey e outro mais compadecido para Lily, que engoliu em seco. – Como o que nos tirou Peg. Opa, espera aí — disse ele, dando uma risada falsamente inocente —, esse que está aí é exatamente o Buscador que nos tirou Peg e quase matou Ian. Não podemos ter um desses aqui, não dá para confiar.

Um desses?

Aquilo me deixou enfurecida e finalmente eu tomei coragem para falar. Permaneci sentada e levantei a voz só um pouco, não porque estivesse me sentindo tímida ou amedrontada, mas sim porque o enjôo, a fome e o nervosismo tinham tirado o melhor de mim. No começo, ninguém notou minha voz ou olhou para mim, mesmo assim eu continuei, então Jared deu um assovio alto que chamou a atenção de todos e repercutiu, ecoando nas paredes escuras. Então, eu tomei a palavra.

— Eu acho engraçado você defender Peg tão veementemente, Kyle. Como vocês já sabem, eu compartilho muitas lembranças dela, ao menos as mais intensas. E tem uma muito intensa da qual você é o protagonista. Eu me lembro bem de quando você tentou matá-la, Kyle. Não faz tanto tempo assim para que você ou algum dos presentes possa ter esquecido. Como podem vocês chamar Logan de assassino? Ele não matou ninguém, nem mesmo tentou. A arma usada na captura de Peg não era mortal, tanto é que eu estou aqui no corpo dela. Mas você tentou realmente matá-la e muitos dos que estão aqui teriam te apoiado ou até te ajudado, mesmo depois de Peg mostrar que não era uma ameaça.

— Eu mudei – ele respondeu, como se isso fosse óbvio, o que não era, sobretudo naquele momento. – As coisas mudaram – disse, olhando para Sunny, que permanecia estática diante da revelação. Será que ela não sabia?

— Como podemos ter certeza? Foi uma tentativa de assassinato contra um membro da comunidade. Não podemos ter um desses aqui, não dá para confiar – provoquei, devolvendo-lhe as palavras ofensivas.

— Touché, Estrelinha – Logan sussurrou orgulhoso em meu ouvido e depois se empertigou, assumindo sua postura rígida e confiante de quem sabia que estava prestes a ganhar a briga. Eu já tinha visto isso algumas vezes e eu tinha perdido todas as discussões que tinham começado com essa expressão no rosto dele.

— Você tem medo de nós, Kyle? Dos da nossa espécie? – perguntou Logan, apontando para si e depois para mim e para Sunny. Ele nem se preocupou em se levantar e sua voz era calma e fria, assustadoramente fria. – Você tem medo de sua companheira?

— Ora, mas que pergunta idiota é essa. É claro que não. Mas Sunny não é... Sunny não é como você – disse ele, inseguro.

— Olhe em nossos olhos, Kyle – disse Logan, calmamente, frisando o nome do outro, pronunciando-o devagar e cinicamente como quem fala com uma criança teimosa. – Somos iguais, somos da mesma espécie. Você já teve medo de nós, nem sempre foi capaz de entender o que ela é, mas agora você a ama. Pelo menos foi o que me pareceu quando ela te tocou há pouco. Nós também tínhamos medo. Eu, Estrela, Sunny, Peg... todos nós já tivemos medo de vocês. Nossas espécies são inimigas. Estamos de lados opostos de uma guerra, você me parece ser um dos poucos que não têm ilusões a esse respeito. Eu só fiz o que era preciso, o que era certo fazer do meu lado do combate. Não sabia o quanto os estava prejudicando. Apenas achava que estava zelando pela segurança do meu povo, do mesmo jeito que você pensou que estava fazendo isso quando atacou Peg. Agora você diz que mudou. Pois eu também mudei, pelo mesmo motivo que você, provavelmente. Por amor.

— Como podemos ter certeza? Como podemos nos sentir seguros com um de nossos perseguidores aqui dentro? – perguntou Maggie, e Jeb revirou os olhos diante da pergunta. Isso mesmo! Jeb revirou os olhos!

— Se eu quisesse entregá-los já o teria feito. O que vocês acham que me impediu?

Maggie não respondeu. Nem Sharon soube o que dizer em socorro da mãe. Uma ideia venenosa me percorreu sorrateiramente a cabeça: a de que a inteligência tinha ficado toda na outra parte da família. Ninguém se prontificou a responder a pergunta de Logan. Provavelmente, porque ele os intimidava e, com toda certeza, porque não sabiam o que dizer. Kyle parecia desconcertado, e todo mundo, menos ele próprio, já sabia que ele era carta fora do baralho, que do jeito que estava não conseguiria realmente argumentar contra Logan. Mas mesmo assim ele tentou.

— Talvez você tenha um plano.

— É mesmo? E qual seria? Ir até Tucson, entrar numa Estação de Cura, roubar remédios pra vocês, bater papo com um colega Buscador e voltar para cá com o rabinho no meio das pernas para deixar vocês decidirem a minha vida e a daquela que eu amo e aí, só depois de tudo isso, quem sabe, delatá-los? Muito bom plano esse meu! – disse ele, e eu tive que segurar uma risada, mas Kyle, mesmo atordoado, não tinha desistido.

— E se depois que a retirarmos você sumir daqui com ela num tanque e chamar os outros Buscadores?

— Eu também amo John. Eu nunca faria nada que prejudicasse o bebê de Peg e, mesmo que fosse capaz, Estrela não me perdoaria.

— Ela estaria num tanque, não saberia ao certo o que aconteceu. Você poderia mentir para ela e dizer que não foi sua culpa, mas que conseguiu salvar o bebê.

E no último segundo da contagem do juiz, o lutador caído se levanta!

Tenho que admitir que a reação inesperada de Kyle era significativa e tinha lógica. Se eu não confiasse em Logan, poderia facilmente imaginar um plano assim saindo da cabeça dele, mas eu sabia que não. Olhei instintivamente para ele, na expectativa de saber como meu Buscador esperto e articulado se sairia dessa.

— É um plano bom o seu, exceto por um detalhe. Ainda faltam mais de seis meses para o nascimento do bebê. Ou eu teria que esperar até lá, ou teria que roubar a hospedeira de Peg de volta, mas, veja só! Ela já estava comigo, eu poderia simplesmente ter esperado Estrela me trazer até aqui sem saber que eu estava em seu encalço. Depois era só trazer outros Buscadores para cá e agir como se não soubesse de nada quando ela fosse devolvida a mim em Phoenix. No entanto, eu a deixei vir para cá, e mesmo sabendo o que ela pretendia não alertei ninguém. E agora estou aqui me sujeitando a isso tudo. De novo, plano inteligente o meu!

Bom, isso não era inteiramente verdade. Logan não tinha me deixado vir para cá. Eu fugi. Além do mais, ver o quão prontamente ele discutia os detalhes do plano com Kyle estava me incomodando um pouco. Achei que ele tinha pensado demais nisso!

Mas nessa hora, decidi acreditar nele. Acreditar que ele não mentiria dessa maneira nem faria nada que me deixasse infeliz, nada que pudesse prejudicar John, Sunny ou Jeb. Ele simplesmente não o faria. Entretanto, Kyle olhava descrente para ele e dava para notar que ele estava preparando artilharia pesada para sua réplica. Logan também percebeu, Kyle não sabia fazer a cara neutra de pôquer dos Stryder. Os O’Shea eram transparentes como água limpa.

— Sunny?

— Sim, Logan.

— Há pouco, você mencionou que tomou uma decisão difícil e dolorosa para garantir a felicidade de Kyle, não foi? – Sunny assentiu, com expectativa. – E todos aqui estão a par de qual foi essa decisão?

— Sim. Eu deixei que me extraíssem de minha hospedeira para sabermos se Jodi poderia acordar.

— E por que foi que você fez isso, se você queria ficar? E por que queria ficar, se poderia ter dado o alarme quando Kyle a raptou e ficado segura em sua casa, onde vivia tranquilamente? Talvez até ao lado de uma Alma que tivesse o corpo de seu raptor como hospedeiro?

— Porque eu amo Kyle. E nenhuma dessas opções me faria feliz.

— Escutem bem. Tenho certeza de que ninguém duvida das razões de Sunny. Ou das de Peg, que enfrentou o que enfrentou por amor a Jared e Jamie e depois fez o que fez por Melanie. Ou mesmo das razões de Estrela, que motivada pelo amor de Peg por Ian, veio para cá, disposta a entregar seu corpo e o filho que ela ama como se fosse dela. Vocês conhecem em primeira mão a nossa capacidade de amar. Não duvidem jamais de que eu protegeria e amaria ao ponto de sacrifícios inimagináveis esta garota e este bebê que ela ainda carrega. Eu faria qualquer coisa por ela. Nunca obedeci a ninguém, apenas sigo as regras que acho que devo, confiando cegamente nas minhas noções de certo e errado, porque ninguém determina quem sou. Mesmo assim contrariei tudo o que achava certo para fazer o que Estrela queria. E o que ela quer é ficar aqui com vocês. Por isso eu digo que se vocês quiserem me tirar do lado dela, terão que se tornar assassinos, porque de outra forma eu não sairei.

Nocaute coletivo!

Eu não sabia o que fazer depois disso tudo. Dessa declaração de amor tão perfeita e intensa e ao estilo Logan de derrubar tudo em seu caminho. Então só fiquei parada, apertando muito a mão dele e percebendo que eu não era a única sem palavras. Dava para ouvir uma mosca voando, se existisse uma equipada com hélices cortantes para poder talhar o peso do ar.

Como sempre, o nome da mosca capaz de cortar o silêncio era Jeb Stryder:

— Bem, eu ia lembrá-los do quanto Logan foi útil na última incursão e no quanto ele ainda pode ser. Ia também chamar atenção para as vantagens táticas de ter do nosso lado alguém que entende como os Buscadores agem. E, por último, ia lembrá-los da época em que Peg chegou aqui e eu estabeleci a regra de que quem teria direito de decisão sobre o que faríamos com a Alma, seria o “dono do corpo”, ou seja, o ente mais querido do hospedeiro. No caso de Logan, o hospedeiro não tem um ente querido, mas a Alma tem. E esse ente foi recentemente votado como membro da nossa comunidade. Portanto, a decisão final cabe a Estrela. Mas, sinceramente, agora fiquei curioso. E gostaria, Estrela, se você concordar, que nós fizéssemos a votação mesmo assim, só pra ver no que dá.

— Não sei. Posso mudar a decisão geral se não for do meu agrado?

— Sim, mas, nesse caso, Logan teria que lutar um pouco para conquistar a confiança de todos e por uns tempos eu não poderia permitir que ele saísse daqui para buscar uma nova hospedeira pra você. Ian teria que fazer isso, como prometeu, mas tenho certeza de que ele prefere ficar aqui, matando a saudade de Peg. O que acha?

Pensei em Peg e em Ian e no quanto eles tinham sofrido. Pensei em Mel e Jared se arriscando desnecessariamente por mim. E em Sunny, que tinha seus próprios problemas pra resolver com Kyle e talvez não se sentisse capaz de cuidar da segurança deles em uma incursão tão perigosa quanto essa. Por fim, pensei na assustadora possibilidade de que os humanos escolhessem uma hospedeira com uma “bagagem” tão pesada quanto essa!

— Gostaria que Logan pudesse escolher. E que, de preferência, eu pudesse voltar logo para conhecer Peg. Então, acho que vou me arriscar!

— Pois bem, querida. Todos a favor da permanência de Logan aqui, como membro ativo, livre e participante de nossa comunidade, levantem as mãos.

Eu nunca assisti a um filme na vida, mas pelo que tinham me mostrado sobre o mundo e a cultura dos humanos, eu tinha certeza de que aquele momento pertencia a um. Quase todas as mãos se levantaram, até em maior número das que tinham se levantado para mim. Pensei até ter visto o trio das gárgulas, Maggie, Sharon e Lacey, hesitarem, ainda que tenham permanecido com as mãos abaixadas no final de tudo. A teimosia delas beirava o ridículo, principalmente quando eu não me lembrava de elas terem se recusado a comer a comida que Peg trazia ou a usar qualquer uma das roupas, remédios ou utensílios. Mas a minha dose de milagres estava de bom tamanho por hoje e eu podia me conformar de que não seria desta vez que elas se comportariam de forma mais transigente.

— O tribunal está encerrado. Podem ir cuidar de suas vidas! – anunciou Jeb. – E agora, querida, precisamos discutir quando você estará pronta para o próximo passo.

— Já estou pronta. Eu só gostaria de comer um pouco antes. Agora que o nó em minha garganta está desfeito, não quero que Peg acorde com fome.

Ian sorriu de orelha a orelha, e todos os que amavam Peg verdadeiramente continuaram por perto enquanto eu fui levada ao refeitório para minha última refeição de grávida, a primeira que eu faria realmente em paz e com vontade. Critiquei-me mentalmente por não ter sido mais responsável por John, mas a mãe que eu fui teria que servir por enquanto. Por alguma razão, eu tinha certeza de que nem ele nem Peg reclamariam quando chegassem a saber de minhas escolhas como mãe, apesar de minhas imprudências.

Pelo canto dos olhos, vi Kyle abraçando Sunny e pensei tê-lo escutado dizer que a amava. Quem resistia aos argumentos de meu decidido Buscador? Fiquei propositalmente para trás enquanto avançávamos pela praça principal e o puxei para mim.

— Eu também te amo – disse.

Não era uma declaração de amor como a dele. Não era nada perto do que ele merecia, mas eram as palavras que continham a verdade absoluta e óbvia que eu demorei tanto a entender.

— Eu sei – disse ele, com seu sorrisinho irresistível.

De repente, eu senti uma urgência enorme de quebrar o nosso trato de “nada de beijo neste corpo” e eu o teria feito se Ian não estivesse por perto. Além disso, senti algo me queimar de um jeito nada positivo quando pensei em Peg tendo essa lembrança ao acordar. Então achei melhor não complicar as coisas. Eu podia esperar para que fosse tudo perfeito.

— Ache logo um novo corpo para que eu possa tocar em você! Não me deixe dormindo no tanque por muito tempo.

Logan olhou para mim com seus olhos quentes e provocadores e o ar em torno dele parecia vibrar novamente, mas desta vez por um motivo diferente.

— Estrelinha, você não terá nem tempo de tirar uma boa soneca – disse ele com uma voz ambígua e cheia de promessas.


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Notas finais do capítulo

E aí está o tão esperado tribunal! Então, gostaram?
Deixem comentários!