A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 22
Incursão




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There's something I can't see
Something different in the way you smile
Behind those eyes you lie
And there's nothing I can say
'Cause I'm never gonna change your mind
Behind those eyes you hide

(Behind Those Eyes - 3 Doors Down)

 

POV – Logan

Pouco tempo depois, já estávamos no carro, a caminho de Tucson, com uma lista de “exigências” escrita pelo tal Doc: uns “quatrocentos” tipos de vitaminas para gestante, um ultrassom portátil de alta definição e movido a baterias especiais, mais as baterias, claro... Desse jeito eu teria que improvisar uma barriga de grávida para me justificar!

Além disso, muitos frascos de Curar, Limpar, Corta-dor, repositores eletrolíticos e até um medicamento chamado Uniformizar... Aparentemente, esse último servia para que a pele se refizesse completamente após queimaduras solares. Um troço especializado, nada de coisas simples para o Buscador, ahn? Pra que facilitar para a Alma nova no pedaço?

— Esse tal Doc... Como ele sabe tanto sobre nossos remédios? Tenho certeza de que não foi Peregrina quem o ensinou, caso contrário Estrela também teria esses conhecimentos. Ele é Curandeiro? Doc é uma Alma também?

— Quase isso, mas não é bem isso.

— Mais uma fase para passarmos, Jeb: chega de falas enigmáticas. Eu não entendo mais da metade das coisas que você diz!

— Ah, qual é a graça se você entender tudo?

Senti o ar saindo de meus lábios involuntariamente, fazendo um barulho que só podia ser traduzido como frustração. Jeb riu e eu acelerei de repente, fazendo o corpo dele voltar com tudo contra o banco do passageiro. Isso só fez com que ele gargalhasse mais ainda. Acabei desistindo de me irritar. Assim que se certificou disso, Jeb resolveu que já estava bom de brincar de “Fazendo o Buscador de Otário”.

— Doc não é Alma coisa nenhuma! Embora às vezes ele se pareça muito com uma. Mais do que você, com certeza! Mas ele é médico, algo como um “curandeiro de humanos”, então é ele quem nos ajuda quando precisamos. Mas quem ensina as coisas das Almas a ele é Candy.

— Então essa Candy é Curandeira? Se bem que com esse nome não parece...

— Não, ela é humana. Mas já foi hospedeira de uma. Quando Peg achou que ia morrer, ela quis que tivéssemos alguém com os conhecimentos necessários. Então roubamos Candy e retiramos a Alma que ela hospedava. Aliás, “hospedava” é uma palavra engraçada para a situação...

— E como foi que Candy sobreviveu a isso? Vocês mataram a Alma da Curandeira? Por que Peg achou que ia morrer?

— Eia! Calma! Uma pergunta de cada vez. E eu posso fazer as minhas também. O que acha?

— Tenho escolha?

— Não. Bom, vamos começar do começo. Candy sobreviveu da mesma forma que Mel, ou seja, ela não tinha sido completamente suprimida. Estávamos experimentando, porque já tinha dado certo com a Buscadora que aprisionamos.

Olhei pra ele com cara de “mas que história é essa?”, porém ele me respondeu antes que eu pudesse formular a pergunta.

— Não nos julgue. Ela matou um dos nossos e estava perseguindo Peg. Precisávamos nos livrar dela. Se bem que se me perguntarem, acho que fizemos péssimo negócio ao tirar a Buscadora e deixar a tal de Lacey, a hospedeira, acordar. Mas, enfim, Peg não nos deixou matá-la. Ela é toda antiviolência e essa coisa toda. Então Peg ensinou Doc como fazer isso. Ela roubou uns tanques com Jared e levou a Alma para uma daquelas naves...

Oh, merda!

— É isso que vocês pretendem fazer com Estrela? – perguntei, cerrando os dentes

— Estrela pediu por uma nova hospedeira e provavelmente ela vai conseguir quando levarmos a questão ao tribunal. O pessoal vai ser grato a ela por trazer Peg de volta e não nos entregar. Mas com você é outra história, eles vão ter medo de você.

Engoli em seco enquanto pensava “Ninguém vai tocar em mim. De jeito nenhum!”

— Eles pensam que eu vou aceitar pacificamente essa decisão? Você pensa isso, Jeb? Vou dizer uma coisa, Peg ensinou muita coisa a vocês, mas ela não os educou bem em relação ao temperamento de nossa espécie. Essas garotas passivas estão deixando vocês mal-acostumados.

— Não vai acontecer, Logan. Não precisa se preocupar.

Eu sei que não vai acontecer, porque eu simplesmente não vou aceitar isso. Mas como você sabe que não vai acontecer, se está entregando a decisão aos outros? Eles nem me conhecem!

— Exatamente por isso. Eles não te conhecem, têm medo de você, precisam se sentir seguros em relação à sua presença e disso pode deixar que eu me encarrego.

— Como?

— Eu tenho meus métodos. E você vai ficar bem quietinho e fazer cara de pacífico durante e tribunal que eu cuido do resto. Deixa eu te explicar uma coisa, novato. O tribunal não é pra eles decidirem o que querem. É pra eles sancionarem as minhas decisões e ficarem achando que a ideia foi deles.

Não pude deixar de me surpreender com a lógica distorcida por trás disso. Diante do meu pasmo, Jeb completou:

— Não me olhe com essa cara! Democracia é superestimada. O que um grupo como o nosso precisa pra sobreviver é de ordem e coesão. Minhas decisões podem parecer arbitrárias, mas são todas pra manter isso.

Eu sabia! No fundo — ou talvez mais na superfície do que eu imaginava —Jeb e eu éramos iguais! Ele só disfarçava melhor.

— Jeb, você é um filho da mãe insano — disse eu, rindo.

— Vou tomar isso como um elogio.

— E foi. Mas continue contando. O que aconteceu quando Peg ensinou vocês a fazerem uma extração? Vocês sabiam que nem todos os hospedeiros resistiram à supressão completa, não sabiam?

— Não tínhamos certeza, então resolvemos tentar com a Curandeira que sequestramos. Mas com ela levou bem mais tempo, ela já tinha quase desaparecido. Tivemos certeza mesmo de que nem sempre funcionaria por causa de Jodi, a namorada do irmão de Ian. Ela não acordou. Então nós devolvemos Sunny para o corpo dela.

— Tem outra Alma com vocês, então?

— Sim, mas só porque Kyle se apegou a ela e não quis deixar que o corpo da namorada morresse.

— E ela aceitou ficar com ele? Com vocês? Por quê?

— Porque ela ama Kyle.

— E esse tal Kyle, que é irmão de Ian, agora vive com essa Alma como se fosse a namorada dele?

— Bom, mais ou menos. Agora ela é mesmo namorada dele. Ele aprendeu a amá-la por quem ela é, não porque ela está no corpo de Jodi.

— Então por que Jared não conseguiu amar Peregrina?

O que impediria Ian de se apaixonar por Estrela?

— Bem, eu suponho que se Mel não existisse mais... Não, nem assim. Jared a odiava.

— Mas ele não conseguiu matá-la.

— Não porque ele sentisse algo por ela na época além de raiva, mas porque, de certa forma, ele esperava que outros conseguissem.

— E tentaram?

— Sim. Ian tentou e quase conseguiu. Kyle também.

Significa que eles tentariam algo assim com Estrela se ela não estivesse grávida?

— E como foi que Ian passou de tentar matá-la para amar Peregrina?

— E como foi que Estrela deixou de ser apenas uma missão pra você? – provocou ele. — Ele a conheceu. Só isso. No começo, quando ela chegou era tudo diferente. Nós nunca tínhamos conhecido um de vocês. Tudo o que sabíamos era que vocês eram os inimigos.

— Acho que entendo. Eu pensava o mesmo sobre vocês humanos até umas horas atrás. Meu hospedeiro não tinha laços como Melanie, ou lembranças agradáveis do passado como Sunny. Para mim, os humanos eram todos maus.

— O seu hospedeiro foi suprimido?

— Foi mais como se ele optasse por deixar o recinto. Eu cheguei logo no começo da colonização, então ele foi pego de surpresa, não teve muito tempo de reagir. Mas eu acho que ele entendeu o que estava acontecendo. Eu me lembro de tê-lo sentido logo quando acordei. Ele foi se esvaindo, se permitindo ir. Ele não tinha por que ficar.

— Você está dizendo que ele não lutou? Mas por quê?

— Logan era um cara muito triste. Houve muitas vezes em que ele não quis viver. Quando isso aconteceu com ele, ele simplesmente não teve forças para resistir.

— E você manteve o nome dele?

— Sim. Digamos que Canção Noturna não é lá um nome muito másculo no seu planeta.

— De fato, não! – disse Jeb às gargalhadas.

— Bom, ficava melhor na língua dos Morcegos.

— Acho que não devia ficar bem em lugar nenhum. Mas pode deixar, Canção Noturna, seu segredo está seguro comigo! – disse ele, ainda rindo.

— Ah, cala a boca! Seu nome também não é exatamente bonito!

— Bonito como uma canção que ressoa na noite?

— Quer ir a pé até Tucson?

— Vocês Almas não têm nenhum humor mesmo – disse ele, as risadas ainda descontroladas.

— Se eu não tivesse humor, já tinha te jogado no meio da estrada faz tempo!

Esperei que ele voltasse ao normal e continuei. Eu me sentia bem de contar isso para alguém. Sempre escondi dos Confortadores, não queria que eles tirassem conclusões erradas de algo que nem eu conseguia entender. Mas agora eu entendia. E acho que Jeb também seria capaz.

— Não foi essa a razão, na verdade. Digo, para manter o nome dele. Eu pensava antes que era por respeito. Mas agora eu sei que mantive o nome, o apartamento, o carro, quase tudo como era antes, porque... acho que me importo com ele. Sempre me importei. Quando eu cheguei, achava os humanos selvagens e desprezíveis. Menos ele. Porque eu o conhecia, sabe? Eu compartilho de suas lembranças tristes, eu entendo por que ele se tornou o que era. Somos tão parecidos, tão iguais, que eu gosto de pensar que ele não partiu de verdade, mas que ele se fundiu a mim.

— Você está querendo dizer que acha que ele ainda está por aí, em algum lugar?

— Não. Já se passaram sete anos. Nem os mais fortes de sua espécie aguentariam tanto tempo. Mas tem uma parte dele que vive em mim. Emoções que dividimos, maneiras de reagir às coisas que só acontecem por causa de quem ele era. Às vezes, só às vezes, eu sinto como se ele tentasse me dizer alguma coisa. Como quando Estrela chegou e eu comecei a me lembrar de coisas que nunca tinha lembrado antes. De uma menina chamada Lindsay, alguém que Logan conheceu na infância. Estrela me fez resgatar esse sentimento e essas lembranças perdidas. Estrela faz Logan voltar à vida, de certa maneira.

— Acho que você pode estar certo. Acho que, de certa forma, vocês se tornaram um só. Ele não se entregou, ele simplesmente te aceitou, porque você completava algo que não havia nele. Alguma coisa que ele não tinha, mas que encontrou em você.

— Alguém que apreciasse quem ele realmente era – completei, chegando à conclusão a que nunca tinha chegado antes e sorrindo internamente por isso.

— Sim. É isso – Jeb disse simplesmente.

O resto da viagem passou rápido, com Jeb me contando mais detalhes sobre a vida de Peregrina. Preciso admitir que tinha um novo respeito por ela agora, depois de saber de tudo por que ela passou. Minha cabeça estava a mil, porque tanta coisa fazia sentido nesse momento! Era como se alguém tivesse entrado com uma picareta no meu cérebro e derrubado todas as paredes.

— Fique aqui – disse eu, quando estacionamos na parte mais escura do estacionamento do hospital. – Os vidros do carro são escuros, ninguém vai te ver. Mesmo assim, é melhor você ficar abaixado no banco de trás.

— Eu não nasci ontem, Logan. Quer parar de me dar ordens? – respondeu Jeb, irritado.

— Me desculpe, mestre! Esqueci que o especialista em buscas aqui é você – ironizei enquanto ele bufava. — Só estou pensando na sua segurança. Eu volto logo. E Jeb? Pode me passar a bolsa com o tanque de Peregrina?

— Ah, qual é? – disse ele estendendo-me a bolsa, cheio de má vontade – Você ainda não confia em mim?

— Confiar eu confio, mas eu também não nasci pra ganso. Seja lá o que isso queira dizer. Estou só te livrando da tentação.

— Sei. Tome cuidado lá fora.

— Tome cuidado aqui dentro.

Caminhei apressadamente para a porta que se abriu sozinha quando me aproximei. A mulher de meia idade que estava na recepção levantou a cabeça e, quando me viu com o rosto machucado, levantou-se e veio ao meu encontro.

— Mas o que aconteceu com você, querido?

Eu já não estava mais sujo de areia e sangue, porque tinha trocado de roupa antes de sairmos, mas o meu rosto estava realmente assustador, todo roxo, inchado e com um enorme corte no supercílio. Não daria simplesmente para dizer que caí.

— Estávamos treinando, eu e os outros Buscadores. Foi apenas um acidente.

— Que espécie de acidente faria algo assim com seu rosto? – perguntou ela, enquanto me examinava com os olhos. Não havia desconfiança, apenas curiosidade.

— Às vezes fazemos treinos assim, mais intensos, por assim dizer. Artes Marciais são excelentes para a disciplina e para a forma física.

Não era mentira. Nós realmente treinávamos Artes Marciais de vez em quando. Eu, particularmente, gostava, porque era uma maneira segura de aliviar e controlar minha agressividade natural. Claro que a parte que eu contei em seguida, sobre um companheiro Buscador que acertou minha cara por acidente, era uma mentira deslavada.

Um dia na companhia de um humano e eu não tinha nem mais vergonha de mentir para uma Alma tão inocente e doce como essa senhora. Esses humanos eram mesmo contagiosos. Pelo visto, já era tarde demais para mim.

— Oh, coitadinho! – disse ela toda maternal. – Eu vou te levar até a Curandeira que está de plantão hoje e ela vai dar um jeito em você. Qual o seu nome, querido?

— Lo... – Ops! — Canção Noturna. E o seu? – perguntei, desconversando rapidamente para tentar disfarçar meu lapso.

— Flores de Verão. É um prazer conhecê-lo, Canção Noturna. Logo, logo você vai voltar para casa com seu rosto lindo perfeito novamente.

— Obrigado, Flores de Verão.

— De nada. Você é mesmo muito bonito, precisa tomar mais cuidado com esses treinamentos violentos.

— Ah, não são violentos, Flores de Verão. Artes Marciais têm a ver com disciplina e controle, não com violência. Você sabe, nós Almas somos contrários a isso. – Nem todos nós, mas...— Agressividade é uma característica dos humanos.

— Humm, só de falar neles me arrepia – disse ela, enquanto um calafrio cenográfico passava por sua espinha.

— Não precisa, Flores. Estou aqui para proteger você. – Não fazia mal jogar um pouco de charme.

Ela abriu um sorriso enorme enquanto adentrávamos uma sala de atendimento e eu percebi que tinha funcionado. Lembrei-me de que muitas vezes meu hospedeiro fez isso, então pensei que podia dar certo. “Curandeira” ela disse, certo? No feminino. Então as chances de funcionar eram maiores.

A Curandeira entrou na sala e me avaliou com os olhos rapidamente. Eu nunca tinha prestado atenção nas reações femininas antes, então não tive certeza quanto ao resultado dessa avaliação. Eu teria que tentar a sorte. Flores de Verão explicou a ela a situação e, em seguida, se afastou, provavelmente reassumindo seu posto na recepção.

— Canção Noturna, não é? Então vocês “erraram a mão” durante os exercícios? – disse ela, puxando papo. E ela era bonita. Uma mulher negra de pele reluzente e corpo esguio, de cerca de uns trinta anos. Ia ser fácil fingir interesse por ela.

— Está mais para “acertaram a mão”, querida. Só que no lugar errado. Meu colega é mesmo um desajeitado. Mas você, em compensação, tem mãos lindas. Tenho certeza de que elas fazem mágica.

Dei um meio sorriso para ela, não apostando muito que teria algum efeito com aquela cabeça extra crescendo do lado do meu rosto, mas pareceu funcionar mesmo assim. Ela sorriu de volta, encantada. Percebi que seria mais fácil do que eu imaginava.

— É algo simples, não é nada de mágica – respondeu ela, o tom de voz tímido enquanto preparava os procedimentos.

Ela me estendeu o Corta-dor e, por mais que eu quisesse aceitá-lo, resolvi aproveitar a deixa.

— Não precisa disso... Como é mesmo seu nome?

— Oh, me desculpe. Esqueci de me apresentar. Meu nome é Céu Brilhante.

— Ah, combina perfeitamente com você! É um nome lindo. Mas eu ia dizendo que não preciso do Corta-dor, Céu Brilhante, porque me sinto tão bem desde que você entrou! – Um conquistador barato renascia dentro de mim para meu completo horror.

— Você é mesmo uma graça, Canção Noturna. Mas é bom tomar o Corta-dor, não é necessário você ficar se sentindo desconfortável. Além disso, eu tenho um companheiro.

Ih, rapaz!

— Oh, meus parabéns. Se bem que eu devia mesmo era dar os parabéns a ele. Mas espero que isso não me impeça de apreciar sua beleza. Realmente me faz sentir melhor.

E depois que tomei o Corta-dor fazia mesmo. Aquela coisinha fazia tudo à nossa volta parecer mais bonito e inspirador. Era uma sensação que me fazia pensar em Estrela.

Mas eu não podia me deixar entorpecer por aquilo, por mais tentador que fosse. Eu tinha uma missão a cumprir e precisava me focar nela. O sorriso persistente nos lábios da Curandeira deixava claro que, embora tivesse um companheiro, ela não era imune aos elogios.

Olhei insistentemente em seus olhos, enquanto ela limpava meu ferimento e isso fez com que ela se distraísse um pouco. Foram só alguns segundos, mas ela teve que se controlar para se recompor e retomar o serviço.

— Pronto – disse ela depois de me fazer engolir as borrifadas de um spray com gosto de chocolate. – Dentro de poucos minutos, qualquer inchaço e inflamação vai ceder e você vai ficar bem.

— Obrigado, Céu Brilhante. Você é mesmo minha salvadora – disse, enquanto segurava a mão dela e a beijava – Com todo respeito ao seu companheiro, mas suas mãos são mesmo mágicas.

Minha nossa! Eu era terrível! E estava fora de controle. Ainda segurando as mãos dela entre as minhas enquanto sentia a pele de seus braços se arrepiar, eu continuei ao “ataque”.

— Eu não queria ser abusado, querida. Você já fez tanto por mim hoje! Mas é que eu realmente estava precisando de um favor... – Então me interrompi por uns segundos, fazendo cara de preocupado. — Puxa, você está arrepiada, Céu Brilhante. Está com frio? – perguntei enquanto acariciava os braços dela e a puxava para mais perto de mim.

— Eu... eu... Não... Quer dizer, estou! – disse ela se recompondo rapidamente e puxando os braços para se afastar do meu toque. – Acho que passou uma corrente fria por aqui! Mas do que você precisa? – perguntou rapidamente, tentando se desembaraçar da situação.

— É que eu estava trabalhando numa missão no Saint Marie’s e eles estavam precisando de alguns remédios. Alguém do almoxarifado se confundiu e, quando perceberam, o estoque deles estava bastante desfalcado. Eu me ofereci para ir até o fornecedor buscar o que eles precisavam, mas com tudo isso, acabou ficando um pouco tarde... Só agora fui perceber o quanto, já até anoiteceu!

— Por que você não deixa pra amanhã?

— Porque há uma garota grávida no hospital e eles me disseram que ela precisa fazer um exame o quanto antes. Eu não queria deixá-los esperando.

— Oh, que maravilha! Uma grávida! É muito gentil e atencioso de sua parte. Os Buscadores que conheço não costumam se importar muito com os pacientes. Vamos fazer o seguinte, eu posso levá-lo à nossa sala de suprimentos, então. Amanhã podemos repor o que você levar e a garota poderá ser atendida ainda hoje. O que acha?

— Acho que vou pedir ao meu colega para me acertar sem querer mais vezes, por que a minha salvadora é a melhor dos mundos!

— Ora, o que é isso! Não é nada de mais. Somos Almas, nós nos ajudamos, não é? E eu não quero te ver machucado novamente. Você fica muito melhor assim, com o rosto perfeito.

Por essa eu não estava esperando, portanto foi a minha vez de sorrir. Acho até que fiquei um pouco corado e isso teve um efeito arrebatador na Curandeira, cujos olhos já estavam ficando cobiçosos até demais. Alguma coisa me avisou que esse era o efeito “macho que se preocupa com crianças”. Bom, eu podia usar essa com Estrela. Quem sabe?

Controlando-se, ela me levou até a sala de suprimentos extras e encheu algumas sacolas com os pedidos da lista “que eu tinha anotado para não esquecer”. Eu a agradeci efusivamente e saí o mais rápido que pude, sob severas recomendações para que tomasse mais cuidado com os treinos. Afastei-me acenando para a recepcionista e corri para o canto mais distante e escuro do estacionamento, onde dançava uma luz que não estava lá antes.

— O que foi, amigo? – disse para o Buscador que se aproximava com uma lanterna. – Há algo errado com meu carro?

— Oh, não. Eu só o estava admirando. É um carrão, hein! Você tem bom gosto.

— Obrigado, amigo. Meu hospedeiro tinha um gosto especial por carros e acho que eu acabei herdando.

— Sorte sua! Meu hospedeiro gostava mesmo era de comer. E muito! – disse ele, afagando uma barriga um pouco proeminente e dando uma risada. – Tenho que me esforçar muito pra manter este corpo sob controle.

Ri com ele e desejei boa sorte com seus esforços. Ainda jogamos um pouco de conversa fora falando sobre as inovações alimentares e os medicamentos que podiam ajudá-lo a se controlar. O tempo todo, eu atraí sua atenção para mim, para que ele olhasse o mínimo possível para o carro. Enfim, ele foi embora e eu entrei no carro, dirigindo numa velocidade discreta, por mais que eu quisesse enfiar o pé no acelerador e sair logo dali.

— Puxa, pensei que essa conversa sem graça de vocês não acabaria mais – disse Jeb, levantando-se do chão do banco de trás quando estávamos a uma distância segura. – Não tenho mais idade pra ficar me encolhendo desse jeito. Conseguiu tudo?

— No final, elas me deram até coisas que eu não pedi.

— Eficiente. Como conseguiu?

— Inventei uma história e cantei a Curandeira. – Ele arregalou os olhos parecendo surpreso, mas não mais do que eu próprio. — Caramba! Eu não imaginava que as mulheres caíssem em conversinhas baratas como as que eu lancei.

— Não é realmente a conversinha barata, Logan. É o jeito certo de falar o que elas querem ouvir e, no seu caso, a embalagem. Acho que você vai vir a calhar como nosso novo “incursionista”.

— Sei, sei. Mas antes, isso tem que valer a pena pra mim. Que tal me deixar ver Estrela quando chegarmos?

Jeb não respondeu, fazendo a cara neutra com a qual eu já estava me acostumando.

— Ah, vamos lá, Jeb! Eu já te disse que você é o humano mais agradável que eu já conheci?

— Vá à merda, Logan! Quantos humanos você já conheceu? Só porque você descobriu esse novo talento, está achando que vai funcionar com qualquer um?

— Tem certeza? Em algum lugar do deserto tem um Mustang abandonado esperando por você. Cortesia do seu novo amigo aqui.

— Bem, talvez funcione um pouquinho – disse ele, sorrindo de lado.

Ao que parecia, ainda hoje eu a veria de novo.


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Notas finais do capítulo

Olá, lindos!
Aqui é a Rain e eu queria dedicar esse capítulo a dois amigos, que coincidentemente eu conheci no mesmo dia, e cujas palavras me fizeram e fazem tão bem. Esse capítulo foi escrito naquele dia, por causa de vocês e de suas palavras que lançaram sementes para as minhas, que andavam tão murchinhas. Então faz sentido que ele seja dedicado a vocês dois: May e Thiago Tavares.