A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 17
Apenas Mais um Dia




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Come as you are, as you were,
As I want you to be, as a friend,
As a friend, as an old enemy (...)
As an old memory, memory,
Memory, memory
(Come as you are - Nirvana)

 

POV Ian

Era apenas mais um dia.

Minha nova vida era uma interminável procissão de dias tristes e terrivelmente iguais. Eu estava arando a terra, concentrado no trabalho como se o mundo ao redor tivesse deixado de existir, porque, na verdade, tinha mesmo. Desde que o Sol tinha se posto para mim, eu apenas concentrava minhas energias no minuto presente, ignorando o buraco negro que se abria diante de meus olhos quando, por segundos, eu abandonava minhas defesas e vislumbrava o futuro.

Era apenas mais um desses dias.

Ou pelo menos foi o que pensei quando acordei e, como em todas as manhãs, saboreei o milésimo de segundo antes do despertar completo da minha consciência. Aquele breve momento em que o cérebro da gente ainda está sendo devidamente “ligado” e parece que tudo de ruim não aconteceu de verdade.

Acho que a maior parte das pessoas não se dá conta da existência desse instante, porque eu mesmo poucas vezes tive consciência dele antes de tudo acontecer. Mas nos últimos tempos, era ele que me salvava a vida. Era por causa daquele breve momento em que eu acordava achando que nada tinha mudado, e conseguia imaginar Peg despertando ao meu lado, que eu abria os olhos.

Por causa disso e porque não houve uma só noite em que eu não a visse morrer nos meus pesadelos. De novo e de novo, num ciclo infinito de autopunição. Como se houvesse algo naquela cena reprisada em minha mente indefinidamente, que eu ainda não tivesse visto.

Mas naquela noite, não sei por que, não tive esse pesadelo. Sonhei com algo que me fez sentir ainda pior. Sonhei com um bebê brincando na beira da praia, como na minha primeira noite com Peg. Era estranho para um morador do deserto sonhar constantemente com a praia, como acontecia comigo naquela época, mas havia um mar dentro de mim. Um mar revolto, cujas águas se acalmaram quando o Sol nasceu em minha vida.

Porém, o Sol havia se posto, as águas do mar eram escuras e profundas demais e afogavam tudo o que tentava respirar ao seu redor. Não se podia mais ver a brancura da areia. Apesar disso, naquela noite, o bebê estava lá e eu podia vê-lo brilhar através da escuridão.

Acordei sentindo meu coração arder, mas não havia espaço para mais tristeza em mim. Levantei-me da cama, mais cedo até do que de costume e, depois de passar pelo insuportável ritual diário de ter que compartilhar a cozinha com os outros na hora do café, fingir para Kyle, Mel e Jamie que eu estava melhor e me desviar dos cuidados de Sunny, pude me entregar ao trabalho.

Eu me sentia culpado por isso, por tentar enganar meus amigos e família, mas era preciso. A dor que eu sentia era só minha, não precisava ser imposta a mais ninguém. Até porque eles já carregavam a sua própria. Mesmo assim, eu me sentia culpado, especialmente por Sunny. Quer dizer, os outros, em algum nível, tinham consciência do meu fingimento, mas o aceitavam porque era um consolo conveniente pra eles. Já Sunny não era assim, ela não perceberia uma mentira mesmo que estivesse dançando hula-hula na frente dela. E o pior de tudo é que minha cunhadinha vinha, nos últimos tempos, se desvelando em cuidados maternais comigo.

Era Sunny quem ficava no meu pé para me manter apresentável, cortar o cabelo, fazer a barba, usar roupas limpas... Era ela que vivia reclamando de como eu passava tempo demais trabalhando ou fechado no quarto e que devia sair mais pra conversar e jogar bola com os outros. Ela insistia que eu precisava me alimentar melhor e trabalhar menos, porque tanto exercício físico estava me fazendo emagrecer... E blá, blá, blá... Todas aquelas coisas de uma inocente irmãzinha mais velha, que não entendia que eu precisava mortificar meu corpo para não perceber que minha alma podia morrer a qualquer instante, e que meu coração estaria para sempre vazio. Antes estivesse morto.

O fato é que eu precisava muito do trabalho para me distrair da tristeza que tentava me engolir. Então, lá estava eu, imerso em minhas tarefas e concentrado na terra que me sujava até os ossos, quando Jamie veio correndo até mim. Mel e Jared vieram logo atrás dele, com uma expressão estranha congelada em seus rostos. Jamie estacou pálido diante de mim e, mesmo quando larguei o que estava fazendo e fiquei apenas esperando pelo que ele tinha a dizer, o moleque não conseguiu falar nada.

— O que foi, Jamie?

— Ian... – ele parou. Então ensaiou o começo de sua fala umas três ou quatro vezes, mas não conseguiu se decidir por nenhuma introdução.

— Você vai precisar ficar calmo – disse Jared.

— O que está acontecendo? – perguntei, impaciente. Não estava com espírito para protelações.

— Tem um monte de coisas acontecendo – disse Jamie. – De algumas você vai gostar muito, mas...

— Bom, então eu sugiro que você comece por elas. – Mas como eu duvidava que houvesse alguma coisa que pudesse me deixar realmente animado, me corrigi: – Ou então apenas comece por alguma coisa.

— Bem, tio Jeb estava no deserto hoje e ele viu um Buscador...

— O quê? Jeb está bem? Vocês já decidiram o que fazer? – perguntei, dirigindo-me a Jared, que era sempre o melhor cara para decidir o que fazer numa situação de risco.

— Não há perigo – disse Jared. – Pelo menos, eu acho. Mas o Buscador trouxe alguém com ele. Alguém que conhecemos... Mais ou menos...

— Será que dá pra vocês pararem com essas reticências e dizer uma sentença completa? – disse eu, exasperado.

Mel, que tinha estado muda e catatônica esse tempo todo, e que estava parada um pouco atrás dos dois, avançou uns passos e segurou minhas duas mãos. Ela respirou fundo e, em seguida, disparou:

— Peg não morreu!

Continuei parado do mesmo jeito que estava. Acho que meu cérebro entrou em colapso, porque simplesmente não pude processar a informação. Era como dar comandos com um controle remoto para uma TV fora da tomada. Comecei a rir de um jeito meio histérico.

Tem algo muito estranho com esses três hoje!

— Desculpe, acho que me desliguei por um minuto. Vocês estavam falando que Jeb viu um Buscador... Estranho, pensei ter ouvido você falar algo sobre Peg. Devo estar ficando louco...

— Ian, preste atenção! – Mel me interrompeu, olhando firme nos meus olhos. – O Buscador trouxe alguém. Ele pediu ajuda a Jeb porque a amiga dele estava doente. Era Sol, Ian. O Buscador carregava o corpo de Sol.

Quando Mel mencionou o antigo nome que eu tinha dado à hospedeira de Pet antes que ela fosse Peregrina, algo acendeu dentro de mim. Meu corpo reagiu sem que eu pudesse controlá-lo e minhas pernas partiram a passos largos para o hospital. Tive a vaga impressão de que os três vinham atrás de mim e que me diziam coisas, mas eu não conseguia registrar nada, apenas o movimento rápido e incontido de meus pés engolindo a distância.

Na metade do corredor, pude ouvir a voz dela e vacilei. Aquela não era a voz de Peregrina. Bem, era a voz daquele corpo, mas não era a voz que eu tinha aprendido a escutar com meu coração. Não tinha sua inflexão doce, era mais alta, mais rígida. Havia uma força estranha nela que não era a força de Peg. Podia ser o mesmo piano, mas não era a mesma canção.

Melanie, que correra mais rápido, chegou e pareceu adivinhar a dúvida em minha expressão.

— Não é ela, Ian – disse Mel, dando a mão a Jared, que chegava logo atrás dela. Jamie veio um pouco depois e eu olhei para eles, implorando por uma explicação.

— Por que vocês fizeram isso comigo? – disse sem saber exatamente pra quem. – Que espécie de piada sórdida é essa?

— Calma! – disse Mel. – Ela está bem. Só que não está naquele corpo.

— Então como é que ela está bem? Mas que merda é essa que está acontecendo aqui? Nós a vimos morrer, Mel. Eu mesmo senti que não havia pulsação naquele corpo. Então como ele pode estar ali? E por que não é Peg que está nele? Mas que droga!

Senti minhas pernas bambearem e, subitamente, era como se eu estivesse fora de meu próprio corpo. Devo ter ficado branco como papel, porque Jared e Jamie me seguraram um em cada braço e me escoltaram para fora dali. Mel vinha logo atrás de minhas costas, pronta para me impedir de voltar ao corredor, como se eles temessem que eu me soltasse e cometesse algum assassinato.

Quando estávamos longe o suficiente, eles pararam e me fizeram sentar, como num de nossos tribunais. Não resisti. O mundo continuava girando muito rápido. Eu ainda estava completamente em choque.

— O que está acontecendo?

— Você estava gritando e nós não queríamos que ela ouvisse – disse Jamie.

— Ela quem?

— Estrelas Refletidas no Gelo, a Alma que está no corpo da Peg. Eles a chamam de Estrela – disse Jared, todo cuidadoso.

— Ah, quer dizer que agora você é todo gentil com a Alma que roubou o corpo da minha mulher? Quando era a sua você se comportava bem diferente, pelo que me lembro.

— Ian, o fato de você estar em choque não te dá desculpa para ser idiota! – respondeu ele. – Você sabe muito bem que as coisas eram diferentes. Eu não sabia que Peg estava trazendo Melanie de volta pra mim. Mas sabemos que Estrela trouxe Peg para nós.

— Ela trouxe? – perguntei, tentando me acalmar. – Como assim? O que aconteceu com ela? Eu não estou entendendo nada.

— Você se lembra como estranhamos o tiro me seu ombro? – lembrou Mel. – Não tinha ferimento de saída, mas Doc não achou nenhum projétil dentro de você. Além disso, você se recuperou rápido demais. E nunca ninguém conseguiu explicar isso direito.

— Sim. Eu me lembro de Doc ter falado sobre isso, mas eu não estava realmente prestando atenção. Eu estava mal demais pra conseguir pensar nisso.

— Pois então – ela continuou. – O Buscador contou a Jeb que eles têm uma arma especial, uma munição que apenas paralisa. Ela fere a pele e os músculos, mas não tem o mesmo efeito de um tiro. Peg levou dois tiros dessa munição, o que paralisou temporariamente seus sinais vitais, mas depois eles os restabeleceram.

— Isso quer dizer que se nós não a tivéssemos deixado lá, poderíamos tê-la salvado?

— Talvez. Mas imagino que seria difícil para Doc, porque foram dois tiros e ele não tem tantos remédios aqui, nem a aparelhagem de reanimação que eles usam. De qualquer jeito, não adianta pensar nisso agora. O caso é que, depois de reanimar o corpo, os Buscadores retiraram Peg e inseriram Estrela. Eles queriam que ela os trouxesse até aqui.

— E foi o que ela fez, aparentemente – disse eu, de forma rabugenta.

— Quer parar, Ian? Tente ser mais grato.

— Grato!? – eu quis gritar umas besteiras para Mel, mas Jared já estava me olhando com cara de poucos amigos.

Olhei pra ele e, pela primeira vez, pude entender exatamente o quanto ele tinha sofrido. Sorri tristemente pra ele, pensando que ele seria o único que me entenderia agora, mas que ninguém pôde entendê-lo naquela ocasião. Ele me olhou de volta com uma expressão confusa. Vai ver que era a primeira vez que eu sorria para Jared. Ele devia estar achando que eu fiquei louco. Mel interrompeu essa troca e puxou meu rosto com a mão, para que eu voltasse a me focar nela:

— Escute. Ela ficou semanas no hospital deles, sendo interrogada diariamente por um Buscador designado especialmente para ela, assim como a Buscadora da Lacey foi para Peg, mas ela não nos entregou.

— Puxa, deve ter sido terrível! – disse Jamie.

— Nem tanto, pelo jeito. Você não viu como ela fala dele? Eles estão apaixonados. Por isso o Buscador não a entregou quando descobriu a verdade sobre nós.

— O quê? Eles estão o quê? Com o corpo de Peg? – perguntei em pânico.

— Calma! Nada aconteceu, eu acho. Por que ela também tem sentimentos por você.

— Ela tem o quê? – Eu já estava começando a soar como uma líder de torcida.

Me dê um O. Me dê um Q...

— Ela tem as lembranças e os sentimentos de Peg, Ian. Por isso mentiu para nos proteger. E por isso ela veio pra cá.

Ai, caramba! Me dê um F. Me dê um O. Me dê um D...

— É. Tem isso e tem mais outra coisa também – disse Jamie.

Mel e Jared olharam sincronizadamente para ele, como se o mesmo impulso nervoso tivesse movido o pescoço dos dois. Eles o ameaçaram com o olhar, o que me fez temer qual era essa outra coisa.

— Bem, Ian. Agora vem a parte difícil. Estrela está disposta a devolver o corpo de Peg, mas ela quer uma outra hospedeira para si.

— Tudo bem... – disse eu, com o coração cheio de alegria. — É justo. É justo e também é fácil.

— Mas o Buscador que está apaixonado por ela não sabe disso. Ele não sabe que nós sabemos como fazer o “transplante”. E ela acha que será bem difícil convencê-lo.

— E isso é um problema por quê? Quem se importa com a droga do Buscador?

Ela se importa. E não quer fazer nada que o magoe. Além disso, tem um problema prático. E esse é muito mais grave.

— Mel, Peg está viva e vai voltar pra nós. O que pode ser grave? Se esse Buscador está mesmo apaixonado por Estrela, não vai se importar com a troca das hospedeiras.

— Teoricamente, mas tem algo no corpo dela que ele ama e que não vai querer perder.

— Como é? O corpo não é dela! Mas que merda é essa? Jared, me ajuda aqui! – pedi, lembrando um tempo distante onde eu estava do outro lado desta discussão.

— Quando Peg foi ferida e capturada, descobriram que ela estava grávida – Jared disse, sem rodeios.

— Ahn!?

O mundo de repente parou e começou a girar ao contrário. Meu sonho dessa noite se reprisou em minha memória e outras imagens se seguiram. Peg caída no chão do deserto abria os olhos e se levantava, andando por estes corredores, rindo, amando, vivendo... Seu corpo bonito se entrelaçava ao meu e de nosso encontro surgia uma lua cheia que iluminava a noite mais escura. É, eu sei, eu tinha uma imaginação estranha. Peg sempre disse que eu tinha um dom para metáforas.

— Um filho? – confirmei, com lágrimas nos olhos. — Peg está esperando um filho meu?

— Sim, querido. É um menino. Estrela o chama de John – disse Mel e, num instante, todos estávamos sorrindo.

— John... – repeti. Não havia palavras, ideias ou imagens que explicassem o que eu estava sentindo agora. – Bom, vamos lá, então. Vamos devolver Peg ao seu corpo, porque ela precisa saber que está grávida.

— Não é tão simples. Estrela é um pouco mãe dele também, ela o ama. E Logan, o Buscador... Parece que ele ama o bebê e não vai aceitar que o tiremos de Estrela.

— Então, “bora” arranjar um outro corpo para eles fazerem um bebê pra eles, porque esse corpo e esse bebê são nossos, meu e de Peg. Ele não precisa aprovar nada até que esteja feito.

— Na verdade, ele precisa, sim – disse Jamie. – Tio Jeb disse que ele está fazendo o tanque de refém. Ele não nos devolverá Peg até que tenha certeza de que Estrela está bem. E Estrela fora do corpo não é exatamente o que ele chamaria de bem.

— Pois eu vou cuidar disso rapidinho! – disse eu, pensando em quantos pedaços podia se partir a cara de um Buscador ladrão de filho alheio.

— Não! Nós não sabemos onde está o tanque. Está com ele, mas ele não diz onde. É melhor sermos diplomáticos porque ele andou fazendo ameaças...

— Ameaças?

— Tio Jeb disse que ele ameaçou abrir o tanque.

— Filho da...

— Calma! Nós daremos um jeito nisso – disse Jared, ameaçando me segurar se eu tentasse alguma loucura. — Ele está lá fora. Jeb não deixou que ele entrasse, mas ele não vai embora e nós também não conseguiremos sair sem que ele nos veja. É melhor tentarmos fazer isso pacificamente. Estrela pode resolver isso do modo mais fácil. É só ela falar com ele e convencê-lo de que eles ficarão juntos depois que tudo isso acabar.

— Bom, pois então...

— Ela tem sentimentos por você, Ian – interrompeu-me Mel. – Ela ainda não entende bem o que sente por ele. Ela própria precisa ser convencida primeiro. Você precisa resolver as coisas na cabeça dela.

— O quê? Eu tenho que ir lá falar com ela? Não, Mel. Não posso.

— Como assim? Por que não? – ela perguntou, perdendo a paciência.

— Você sabe como foi para Jared ver Peg no seu corpo depois de achar que você estava morta? Imagina se ela estivesse carregando um filho de vocês?

Jared arregalou os olhos e, involuntariamente, balançou a cabeça em concordância. Mel e Jamie ficaram me olhando de um jeito esquisito, com um misto de piedade e irritação nos olhos.

— Ouçam. Eu preciso de um tempo, ok? É muita coisa pra digerir. Fiquem com ela e deixem que ela saiba que é bem-vinda aqui, por favor. Mas eu não consigo falar com ela agora.

Ninguém respondeu. Eles continuaram me olhando e pareceram achar natural que eu me levantasse, me dirigindo ao meu quarto. No entanto, meu destino era outro.

Alguém aí com saudades do Ian?


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem, lindas!
Obrigada a KaGomes e KahCastellan pelas recomendações. Esse vai especialmente para vocês.
Ah, esqueci de dizer que os sonhos de Ian, o apelido dado por ele ao corpo hospedeiro e a amizade dele com Mel (que também aparece no capítulo Infinito Roubado) são referências à minha fic Antes e Depois da Chuva. Vocês são muito bem-vindas lá se não a tiverem lido.
Rain