A Hospedeira - Coração Deserto escrita por Laís, Rain


Capítulo 12
Jornada




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You kept everything inside
And even though I tried
It all fell apart
What it meant to me will eventually
Be a memory
Of a time when
I tried so hard
And got so far
But in the end,
It doesn't even matter.

(In The End - Linkin Park)

 

POV Estrela

Peregrina havia pensado isso há um tempo indefinidamente longo, uma lembrança embaçada de outra vida. Aquela estrada era horrivelmente monótona – os carros passando devagar ao meu lado, a paisagem redundante, era-me mais maçante do que eu esperava.

O volante girava quase sem meu consentimento, enquanto eu me mantinha atenta à estrada, mas esse processo era quase desnecessário. Carro algum pedia passagem, porque não havia carro algum querendo passar ou me acompanhando na estrada quase vazia. Não havia ninguém querendo sair da cidade, exceto eu. Perguntei-me o que havia de tão interessante em Phoenix justo no dia em que eu ia embora.

O tanque de Peregrina estava ao meu lado, sob o banco do passageiro, brilhando reluzente com a luz ondulante do reflexo do retrovisor. Peg não fazia ideia de que agora voltava para casa, de que eu faria isso por ela. Deslizei minha mão no topo do seu tanque ternamente, sorrindo. Pensar na expressão de Ian vendo-a de volta seria a coisa mais gratificante para tudo o que eu fiz ao deixar minha curta vida para trás.

— Vamos chegar logo, logo – murmurei para ela. – Você vai ter sua vida, vai ter Ian e John outra vez.

Ao dizer seu nome, afaguei automaticamente o volume quase imperceptível na minha barriga e meus olhos arderam por um instante: o filho que era uma pequena parte meu também talvez não chegasse a saber da minha existência, de que eu dei minha vida para leva-lo para casa. Tudo o que eu podia esperar é que um dia – se ela não guardasse ressentimentos por, antes de tudo, eu machucar seus humanos e roubar seu corpo —, Peg dissesse para nosso John que um dia ele tivera também outra mãe, uma mãe que o amara tanto que não podia suportar a ideia de continuar a viver ao seu lado sabendo que ele poderia ser mais feliz sem ela, com sua verdadeira progenitora.

Enfadada com as horas ininterruptas de tédio, eu suspirei, meus olhos caindo sobre si mesmos, o sono tentando me vencer. Mas eu não podia dormir, afinal, mesmo que com a ajuda da máquina falante, eu estava dirigindo, e não podia perder meu principal ponto de orientação – eu era totalmente capaz de passar milhas da cidade, acreditando que faltavam apenas quilômetros para chegarmos.

Então, foi com evidente alegria que eu recebi a visão do pequeno mercado, minúsculo e abafado, ao lado de um posto de gasolina abandonado. Dei as ordens para o carro independente, e ele me guiou até estarmos devidamente estacionados sob os lajedos que rangiam do posto de gasolina, sem verdadeira proteção para que o interior do carro não ficasse como um forno.

Antes de sair, empurrei bem o tanque de Peregrina para mais debaixo do banco, para que ninguém pudesse ver seu brilho – eu não teria explicações plausíveis se me perguntassem o que eu estava fazendo com ele.

Entrei na lojinha quente e abarrotada. Não havia mais ninguém além do homem que trabalhava ali, empilhando caixas fechadas em cima das outras. As caixas significavam que a loja tinha sido recentemente abastecida, o que significava muito mais comida, sem dar-me o remorso desnecessário de estar tomando algo de alguém que não estivesse traindo sua espécie como eu.

Estremeci a esse pensamento, e ignorei meu estômago rugindo. Havia decidido levar poucas coisas – minhas costas não eram tão fortes quanto as de Melanie, afinal.

— Boa tarde – cumprimentei o senhor do balcão, sorrindo timidamente. As memórias de Peregrina fizeram-me reconhece-lo como o mesmo de tempos atrás.

— Boa tarde, senhorita. – Ele me olhou com seu rosto enrugado e um sorriso gentil. – Posso ajudá-la em algo?

— Oh, não, obrigada. Só vou pegar alguns lanches para uma trilha que pretendo fazer ainda hoje – respondi.

— Tudo bem, querida. Mas lembre-se de que deve fazer essa trilha logo cedo e voltar o quanto antes. Eu não quero assustá-la, mas, nos últimos tempos, alguns de nós têm sumido – o senhor me informou, uma verdadeira preocupação no seu semblante.

— Prometo que tomarei cuidado.

Ele sorriu amavelmente e continuou com seu trabalho.

Respirei fundo, tentando me empenhar, eu seria direta e rápida, sem demoras desnecessárias. Meu tempo não iria durar muito até Logan acordar, ver que eu não me encontrava mais lá e chamar toda a sua horda buscadora para sair à minha procura. E eu não duvidava que ele não deixaria ninguém no seu caminho desta vez, nem mesmo meus humanos... Ian...

Água. Barras de cereais. Um mapa. Alguma coisa extra. Era tudo em que eu devia me concentrar no momento.

Caminhei até a prateleira com garrafões de água, analisando todos e tentando decidir qual eu poderia me esforçar mais para carregar. Havia alguns ali que eram mais pesados que eu mesma. Decidi-me, afinal, por duas grandes garrafas de dois litros.

Eu não precisaria tão desesperadamente de água como Peregrina precisou, porque ela partira sem nem mesmo pensar que poderia conseguir continuar viva para bebê-la novamente, sem saber aonde iria chegar no deserto infindável. Mas eu sabia para onde eu ia, e também sabia que iria chegar. Com sorte, até o fim do dia eu estaria novamente entre as paredes de pedra da minha casa.

Com um esforço inimaginável, e sem conseguir prender o arfar que saiu dos meus lábios, eu consegui ajeitar as coisas junto ao meu corpo, que pendia para o lado em que elas me puxavam. Andei descompassadamente até chegar à outra prateleira, na seção alimentícia. Peguei algumas barras de cereais com a mão livre, enfiando-as no meu bolso. Depois pequei alguns salgadinhos e biscoitos. Voltei para o caixa, derrubando tudo em cima da esteira.

— Aqui — sorri para o senhor –, espero que eu consiga carregar tudo isso.

— Com muita força de vontade, querida. Isso é muito até para mim! – ele exclamou sorridente, registrando minhas compras na máquina.

— Força de vontade. Sim, isso é o que mais tenho.

— Você vai querer um mapa?

— Seria bom, por precaução. Essas montanhas são todas muito parecidas.

O homem – chamado Lionel, como vi em seu crachá quando me permiti prestar atenção — me ajudou com a compras até o carro. Depois de ter ficado “meia hora” admirando o carro de Logan e dizer-me que 69 foi o melhor ano do Mustang, ele me ajudou a ajeitar tudo no porta-malas.

Dei o meu adeus a ele e parti dando as instruções ao carro, adentrando novamente a estrada rumo à minha antiga vida. E à minha futura morte.

**********

As horas se arrastavam mais lentas que antes, como se alguém as puxasse para trás, impedindo-as de seguir em frente. A paisagem havia mudado agora: onde antes havia só vazio e imensidão, agora plantas desconhecidas e de aparência perigosa se alternavam com grandes pontas secas e afiadas e pedras cinzentas e quentes sobre alguns pedaços de vegetação morta.

Eu não estava mais entediada, agora eu estava ansiosa. À medida que o carro avançava pela estrada em direção ao deserto, meu estômago ficava cada vez mais embrulhado, meu coração mais acelerado pela vontade imensa de estar entre as paredes púrpuras até o fim do dia.

Imaginar qual seria a expressão de todos ao me ver era, de fato, fácil. Medo, surpresa, emoção, dor, dúvida. O corpo que era da Alma amada pela grande maioria estaria de volta para eles, tendo conseguido atravessar o deserto novamente para voltar para sua família. Então, depois do primeiro momento, perceberiam que ela, aquela que amavam, não era eu, que ela deveria estar morta.

E então sua reação logo depois. Eles me jogariam no odioso buraco redondo e apertado que por semanas havia sido a prisão de Peregrina? Será que me dariam de comer e beber apenas sopa rala de legumes e água amarga?

Provavelmente, movidos pela raiva com que seriam cegados ao me ver dentro daquele corpo, eles fariam exatamente isso com a Alma no lugar de Peg. Apenas uma coisa me salvaria, se eles me dessem tempo para contá-la: ela havia deixado comigo seu filho, um bebê dela e de Ian, um bebê humano. E por mais que os humanos fossem cruéis e vingativos, eles jamais fariam isso com uma mulher grávida.

E de toda forma, era algo que meu Ian jamais permitiria.

Ian.

Apesar de ele ser a principal razão para que eu me metesse nesta jornada, pensar nele era uma dor excruciante. A vontade... A necessidade que eu tinha de vê-lo era em parte submersa pelo reconhecimento dos nós que eu daria em seu coração quando estivesse à frente de seus olhos. Os olhos vívidos e indulgentes, capazes de queimar e de arder nas minhas lembranças, naquele momento também me lembravam de outro par de olhos intensos, agora tomados pela dor e pelo vazio da sua vida sem sua Alma. Quanto a Ian, eu podia imaginar a esperança desvairada se acendendo e depois se apagando ao ver o corpo da sua amada, e então perceber que não é mais ela que esta aqui dentro. Ah, Ian...

Então eu me dei conta.

De tão perdida que estava nos meus pensamentos, eu não havia visto e nem sentido quando o sol ficou quente demais. Mais do que eu poderia — ou deveria — suportar. Minhas mãos formigavam até o cotovelo, como se fossem água fervendo. A pele argêntea dos meus braços, estendidos sob o vidro dianteiro amplo do carro enquanto seguravam o volante, estava vermelha e repleta de bolhas se formando. Como se meus braços estivessem sendo fritados.

E o meu estômago, antes revirado pela ansiedade, agora esta revolto, se contorcendo e se repuxando em todas as direções. Um bolo se formou em minha garganta, e meus olhos arderam com as lágrimas que se formaram.

Com a velocidade do Mustang, e a facilidade com que ele triturava pedras e plantas espinhentas, nada ficando em seu caminho, acreditei que estava na metade do caminho em direção ao pico, e que ainda faltava pouco tempo para chegar às cavernas. No entanto, eu sabia que não conseguiria aguentar nem mais dois minutos dentro daquele carro, então, num rompante, abri a porta do carro já desligado e me lancei para fora.

Cambaleante, eu rodei alguns metros, desviando de creosotos e chollas, até que tropecei numa grande pedra que me escapara de vista, minha cabeça latejante não detectava nada além da sensação de estar sendo torrada viva sob esse sol entorpecedor.

Minhas mãos foram direto para minha barriga, para meu pequeno John, desejando com todas as minhas forças que ele estivesse bem – até meus braços perderem a força e eu cair com o rosto na areia, então percebi que nenhum de nós ficaria bem.

Tudo que eu pude fazer foi balbuciar mentalmente meus pedidos de desculpas: a Ian, por não ter conseguido voltar e entregar-lhe seu filho e seu amor; a Peregrina, por não ter conseguido leva-la de volta para sua casa; a John, lamentando com minha vida por ter que levá-lo comigo por culpa da minha fraqueza e imprudência; a Logan, por ter destruído sua esperança e seus sonhos, e, de certa forma, os meus também.

Então eu perdi a consciência.


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Notas finais do capítulo

Aviso às leitoras saudosas da Peg:
Queridas,
Gostaríamos de nos desculpar se em algum momento demos a entender que esta fic é sobre Peg e Ian. Eles são personagens desta história e muitas coisas, boas e ruins, acontecerão com eles. Porém, eles não são os protagonistas. Esta história é sobre Logan e Estrela, personagens criados por nós, e sobre como o amor e a força dos personagens de Stephenie, que permeiam toda a fic, vão mudar a vida deles e ensiná-los a amar também.
O ponto de partida da fic é a extração de Peg e a inserção de Estrela em seu lugar. Se nós trouxermos logo a Peg de volta não teremos história. Esperamos que compreendam e sintam-se à vontade de nos abandonar se tiverem se sentindo enganadas.
Para aquelas que vão continuar, há dois emocionantes capítulos no forno para os próximos dias. Fiquem ligadas.