A Luz Das Trevas escrita por Filha de Apolo


Capítulo 29
Festa III




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               A deusa bebia néctar sozinha, sentada em um dos bancos da varanda. Notou quando o casal entrou na pista de volta e agora conseguia vê-los dançando. Tentou se distrair desde a conversa com o deus e quase conseguiu, até vê-los se beijar no jardim. Segurou uma ânsia de vômito e se virou, chegando ali onde estava agora, que antes era o ponto mais distante dos dois, e agora a amaldiçoava com a visão.

            A visão já turva de tanto drink de néctar que bebera, Deméter remoía suas inseguranças e medos enquanto tentava ao máximo desviar o olhar. Bufou. O pior não era apenas ter de aceitar que sua filha de fato queria estar com aquele homem e que o melhor a fazer era aceitar, era ter de ver isso. Até ali, ela podia se repetir toda noite que ele a enganara, que era mentira, que Perséfone era uma criança que não sabia o que queria.

            Podia, sim, ser que sua filha estava errada. Por hora, porém, a verdade estava ali, escancarada em sua frente a cada sorriso apaixonado que ela lançava para ele, cada beijo entre passos de dança.

            –Ela está bem. – A voz familiar surgiu de suas costas, forçando-a a se virar. Era a ninfa com quem Perséfone conversara mais cedo, que crescera com ela. – Vai ficar bem. É a deusa mais teimosa que eu conheço. Se ele a magoar, ela vai fazer a vida dele um horror. Pode confiar. Agora vamos, você vai acabar vomitando aqui. – A ninfa estendeu seu braço e envolveu o corpo da deusa, fazendo ela se erguer. - Vou te colocar na cama.

            Deméter foi obrigada a rir. Agradeceu com as poucas palavras que ainda conseguia conjurar e concordou com a cabeça.

            Depois de trabalhosos minutos, mal haviam chegado até a base da escada que saía dali. Poseidon interrompeu as duas no meio do caminho.

            –Precisa de ajuda? – Ambas o fitaram. A ninfa arqueou a sobrancelha, sabendo do histórico dos dois deuses e notando que ele já estava embriagado também. – Não se deixe enganar, eu sempre aparento estar bêbado e tenho resistência a quantidades de álcool que essa festa não vai alcançar.

            A ninfa suspirou e assentiu quando Deméter ergueu um braço para o deus. Ele deixou que ela passasse o braço por seu pescoço e ergueu seu corpo facilmente do chão.

            –Juízo, lorde Poseidon. – Foi a única coisa que a ninfa teve coragem de falar. Ele sorriu e assentiu.

            –Sempre. – Respondeu, apenas deixando a ninfa mais nervosa. Deméter, por sua vez, já estava à beira do mundo dos sonhos nos braços do deus, a cabeça apoiada em seu peito.

            Em praticamente o mesmo tempo que as duas levaram para chegar da varanda até as escadas, os dois deuses chegaram até a casa dela, com incrivelmente poucos tropeços das pernas entorpecidas do deus.

            Assim que ele pisou na varanda, uma serva surgiu de dentro, uma lança em mão, pronta para atacá-lo por invadir o terreno. Ela derrubou ruidosamente a lança quando notou a deusa em seus braços. O barulho alto não foi o suficiente para acordá-la.

            A serva guiou Poseidon até o quarto de Deméter e ele seguiu como se fosse sua primeira vez ali. A jovem não entrou no quarto com ele, porém ficou logo ao lado da porta semiaberta, como que por garantia.

            O deus empurrou as cobertas bem alinhadas da cama para baixo e deixou que o corpo da deusa lentamente transferisse seu peso para o colchão. Repousou a cabeça dela sobre o travesseiro e foi aos seus pés retirar seu sapato e puxar o lençol para cobri-la. Quando voltou, encontrou os grandes olhos verdes da deusa fitando ele em silêncio.

            –Boa noite. – Ele se inclinou para beijar-lhe a testa e a deusa se ergueu e encaixou seus lábios nos dele. Poseidon sentiu seu corpo sobrepondo sua mente. Fechou os olhos e retribuiu o beijo, deixando sua mão correr por entre os cabelos da deusa. Nem um minuto depois, voltou a si e quebrou o beijo no meio. – Deméter.

            –Por favor. Não quero ficar sozinha.

            –Você não precisa ficar sozinha, há uma ninfa aqui disposta a me matar para te proteger.

            –Você entendeu.

            –É claro que eu entendi, mas você sabe bem que prometemos não ir por esse caminho novamente. E você está longe de ter uma mente clara nesse momento para refutar qualquer combinado. – Ele se inclinou novamente e ela deixou que ele de fato beijasse sua testa.

            –Obrigada. Eu... – Ela se interrompeu. Se aconchegou sob as cobertas que ele puxara e fechou os olhos.

            –Eu sei que você está passando por bastante coisa agora. Permita que o tempo passe. Vai ficar tudo bem. Ele está apaixonado de verdade por ela, eu vi com meus próprios olhos. – Ela voltou a abrir os olhos para olhar fundo nos olhos do deus, tentando identificar algum indício de falsidade. – É sério. Agora descanse.

            Ela assentiu e tornou a fechar os olhos sem responder qualquer outra coisa. Poseidon acariciou o cabelo da deusa até que ela suspirasse, aprofundando seu sono.

“Quem diria que eu não seria o irmão mais desequilibrado essa noite? ” Sua mente ousou brandir. Ele segurou uma risada.

             —____ 

Quando Perséfone cansou de dançar, andaram um pouco mais pelo salão, Hades conversou com alguns oficiais do exército que trabalharam com seus homens, o que demorou pouco mais de uma hora. A deusa participou o quanto conseguiu e ficou atenta aos detalhes. No intervalo entre uma conversa e outra, a deusa bocejou, levando o deus a sugerir que encerrassem a noite, o peito apertado de terminar seu tempo com ela. A deusa aceitou, embora insistisse que não queria dormir ainda.

Enfim, a sós, passeavam pelas ruelas do Olimpo, indo a pé, por sugestão da deusa, do salão até a casa de sua mãe. Ela sabia bem que a travessia, no ritmo que iam, duraria pelo menos mais uma hora com ele. Estavam em silêncio, o efeito do álcool se dissipando e levando com ele a coragem que ostentavam anteriormente para demonstrar tanta intimidade, principalmente do deus, que ainda sofria internamente sem saber como a deusa se sentia. 

Passados alguns quilômetros, Perséfone notou a luta interna dele e deu o primeiro passo, entrelaçando seus dedos nos dele e encostando sua cabeça em seu ombro, diminuindo um pouco o ritmo de caminhada. Ele sorriu e beijou-lhe o topo do cabelo. Entre frivolidades, Hades lembrou de perguntar algo que deixara para mais tarde.

—Eu não quis lhe questionar no meio da festa, porém, posso lhe fazer uma pergunta pessoal agora? - Ela riu a discrição do deus.

—Muito fofo você me perguntar isso sendo que já somos inclusive casados.

—Isso não me dá direito de ser invasivo com você. - Ele retrucou. Ela assentiu, concordando.

—Você é tão diferente dos seus irmãos que chega a assustar. - Constatou. - Enfim, claro que pode, sim. Pergunte.

—Aquela ninfa na festa lhe chamou de Core. Eu havia me esquecido, mas de fato você teve esse nome quando criança e trocou. Por que?

A deusa deu de ombros.

—Eu também havia esquecido, sabe? Não que tive esse nome, mas as circunstâncias em que troquei. Lembrei quando minha mãe me chamou, um dia desses, para sugerir que ainda sou criança. - Hades fez seu melhor para não amaldiçoar Deméter em voz alta. A deusa contou sua lembrança ao deus que ouviu em silêncio toda a história. Quando ele não respondeu nada após o final, ela falou novamente. - Loucura, não? Eu inclusive queria lhe perguntar se você já sabia disso. Se foi… por isso que você me escolheu?

—Não. - Ele respondeu rapidamente. Estava confuso e fez uma nota mental de perguntar a mãe se ela lembrava disso. 

—Isso quer dizer que eu nasci para ficar com você? - A constatação fez o deus parar de caminhar. Ela se interrompeu com ele e ficou fitando-o, tentando ler sua expressão. Hades piscou algumas vezes, refletindo. Imaginou se era isso que os mortais sentiam quando tinham seus destinos traçados por divindades que nem conheciam. Ignorância. Impotência.

—Não sei. - Concluiu, ao fim. - Pode ser que sim, pode ser que não. Geralmente essas coisas vêm acompanhadas de profecias e mesmo assim, não são o que parecem. Pode ser que você estivesse, sim, destinada a ir ao Submundo eventualmente. Depois disso, não temos como saber. - Se limitou a responder, mesmo que acreditasse que talvez, sim, seus destinos foram traçados previamente. Não queria que isso influenciasse a escolha da deusa de retornar.

Ela assentiu, aceitando a explicação, deixando que o assunto morresse ali, por enquanto. Sabia onde a conversa iria parar e não estava pronta ainda. Tornaram a andar e ela quebrou o silêncios alguns vários minutos depois, já quase na metade do caminho.

—Falando em coisas que deixamos para falar depois, eu estou lhe devendo uma explicação.

—Ah, é? - O deus arqueou a sobrancelha, sem lembrar. Passavam por uma praça. A deusa desviou o caminho e sentou-se em um banco. Hades mimetizou-a. - Refresca minha memória? - Pediu.

—Falei que tive um motivo para lhe ligar e que ia te dizer na festa o que era. - Ele assentiu, relembrando. Inclinou-se mais perto dela, olhar expectante. 

—E por que você me ligou, Deusa da Primavera? - Ele teve de perguntar, quando ela ficou em silêncio por tanto tempo. Perséfone mordeu o lábio, transparecendo seu nervosismo. Respirou fundo a brisa noturna que balançava suas madeixas soltas, reunindo a coragem que precisava.

—Porque senti sua falta.

 

—__

 

—Quero saber onde você estava? - Hera disse de seu trono, os braços cruzados, fitando o deus com desconfiança.

—Querer você quer, agora, será que deve? - Ele brincou. Se sentou nos degraus ao lado da deusa. Ela estreitou os olhos.

—O que é que você estava aprontando, Poseidon?

—Por incrível que pareça, nada. - Hera não se convenceu. Manteve seu olhar desconfiado. Ela suspirou e cedeu. - Na casa de Deméter.

—Poseidon!

—O que?! Eu nunca disse que nunca mais ia dormir com ela. E qual o crime?

—Eu vou ignorar que você é um homem casado perguntando qual o crime de trair a esposa para mim, a deusa do casamento. - Ele deu de ombros.

—Eu não me considero mais casado. Temos um acordo comercial, apenas. - Hera bufou e revirou os olhos. - Mesmo assim, por mais que eu ame ouvir seus sermões, eu não estava aprontando nada. 

—Hum?

—Ela estava mal, uma ninfa estava tentando ajudar ela a chegar em casa. Eu fui um perfeito cavalheiro e a levei até lá, coloquei na cama e fui embora.

—É sério? - A tamanha descrença e surpresa nos olhos da deusa fez com que o deus se sentisse mal, como se fosse incapaz de fazer coisas boas. Ele não era nem de longe tão cruel quanto Zeus, mas entendia a deusa presumir que sim.

—Uhum. Não sou tão ruim, Hera. Ela está mal, acho que sentiu que vai perder a filha. Estava bêbada. Eu não durmo mais com mulheres tão bêbadas.

—”Não mais”. “Tão bêbadas”. 

—Me dá um desconto? - Ele baixou os olhos, o olhar de julgamento da deusa pior que qualquer coisa que ela pudesse dizer. Não entendia como Zeus ainda aprontava. - Eu estou melhorando. - Ela suspirou e soltou os braços.

—Eu sei. Parabéns por fazer o mínimo. - Ela retrucou, em tom mais brincalhão. Ele sorriu e voltou a fitá-la.

—Falando em homens horríveis, onde anda o seu marido? 

Hera deu de ombros.

            –E eu sei? Não quero nem pensar nisso. – Poseidon suspirou ao ver a tristeza nos olhos da irmã caçula.  

            –Quer que eu ache ele? – Ela fechou os olhos e negou com a cabeça.

            –Não precisa. Vou ir me deitar, ele que faça o que achar certo com a vida dele. Estou cansada e embriagada, me irrito com isso amanhã. – Disse, se levantando. O deus se levantou junto, estendendo o braço para que a deusa entrelaçasse o seu. Contornaram os tronos, Hera se despediu de algumas divindades. Chegando na entrada do corredor que levava do Salão ao Palácio, ela desfez a volta de seu braço no do deus. Ele franziu o cenho e manteve o braço estendido. – Você não precisa me escoltar, eu estou bem.

            –Você nunca está bem, irmã. – Ele disse, o olhar sério anulando o leve tom de brincadeira que sua voz sempre tinha. – Consigo cuidar de duas irmãzinhas em uma noite, não se preocupe. – E sorriu, quebrando a dureza que ficara o ar entre eles. Ela sorriu de volta, a mesma tristeza nos olhos.

            –E os pombinhos, onde estão? – Disse ela, fugindo do assunto desconfortável já na metade do corredor.

            –De acordo com as minhas fontes, indo para casa.

            –Suas fontes? – Poseidon deu de ombros.

            –Sou amigo de muitos olimpianos, sabia?

            –Mais do que eu, provavelmente. O que não é uma comparação justa, eu sei, porque você é amigo de todo mundo.

            –Eu? – Ele disse, fingindo estar ofendido, e riu. – Enfim, acho que estão apaixonados.

            –Também acho.

            –Ele com certeza. – Disseram ao mesmo tempo e riram. Atravessavam a sala de estar em direção às escadas.

            –E ela? – Poseidon perguntou. – Lhe disse algo?

            –Se disse, o que faz você achar que vou compartilhar contigo?

            –Eu sou um amor.

            –Um amor fofoqueiro.

            –Sim. Mas, um amor. – Hera negou com a cabeça, sorriso no rosto e olhar falso de desaprovação. Subiam as escadas e cochichavam para não acordar os que já dormiam no Palácio.

            –Não importa o que ela disse. Acho que, se não está apaixonada agora, está começando. Não acho que vai aguentar muito mais tempo aqui.

            –Ufa. Será que ele vai virar uma pessoa de bom humor?

            Hera riu, parando em frente às portas duplas de seu quarto.

—Você é um sonhador, pescador. – Ele sorriu e deu de ombros. Abraçou a deusa apertado e beijou-lhe a testa.

            -Sou mesmo. Durma bem, majestade.

            -Dormirei. Aproveite a festa.

            -Irei, porém só mais um pouquinho. Quero dormir em casa hoje. – Ela assentiu e entrou. Ele virou as costas e começou a refazer o caminho que recém fizera.

Hera trancou as portas por dentro e começou a se despir. Sentou-se em frente a sua penteadeira e desfez seu penteado trançado, limpou o rosto das tintas de maquiagem que usara. Retirou os grandes brincos de ouro em formato de penas de pavão que usava em todas as grandes comemorações do Olimpo. Os descansou na caixa de joias de madrepérola que ganhara do irmão, anos antes.

Suspirou, se olhando no espelho, os cabelos caindo sobre o peito nu. Mesmo que pudesse moldar sua forma semi-humana como quisesse, notava sinais de envelhecimento em sua pele. Estava cansada, não podia negar. Poseidon estava certo.

             —____

            A palpitação do coração do deus era quase audível. Ele sentia como se seu peito fosse transbordar. Respirou fundo algumas vezes e fechou os olhos sorrindo.

            -Eu também senti sua falta. – Disse, só então abrindo os olhos. Ela sorriu em resposta e se cobriu a distância entre eles para selar seus lábios. Ele deu passagem à língua dela e assim ficaram alguns minutos. Pararam para recuperar o fôlego se desgrudar as testas.

            -Eu sei. – Ela disse, finalmente voltando a controlar suas cordas vocais. – Você é mais transparente do que imagina. – Ele negou com a cabeça.

            -Você que sabe me ler bem. – Ela deu de ombros e concordou.

—Pode ser. – Disse e beijou ele novamente. Parou e afundou o rosto no pescoço do deus, espichando todo seu corpo. Ele passou o braço por trás dela e puxou ela para o seu colo, sem mover seu rosto. Ela se abraçou nele, um braço por baixo do dele e outro ao outro lado do pescoço. Hades fechou os olhos e apoiou sua cabeça na dela.

Ficaram assim por longos minutos, o perfume floral que a deusa exalava mais embriagante para ele que qualquer bebida que já experimentara. Notou que a respiração dela estava ritmada e seu abraço um pouco mais solto que antes. Sorriu e abriu os olhos, fitando-a recostada nele. Tão pequena. Tão linda.

Notou ao longe a luz ameaçando se pôr. Queria gritar a Ártemis que lhes desse mais tempo. Firmou o braço que envolvia a cintura da deusa e passou o outro por baixo de seus joelhos. Se ergueu devagar, tentando não a acordar, e retornou ao caminho que percorriam.


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