A Luz Das Trevas escrita por Filha de Apolo


Capítulo 25
Ligação




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O deus acordou sobressaltado. Não entendera o que o arrancara de um pesadelo até abrir os olhos. Dormira talvez pouco mais de uma hora. O quarto todo era iluminado pela luz brilhando de seu criado-mudo. Hades instintivamente ergueu a mão até o criado-mudo para tentar apagar a fonte de luz. Falhando, se sentou e esfregou os olhos.

Focalizando melhor a visão, piscou algumas vezes para ter certeza do que estava vendo. A pedra preciosa era a fonte da iluminação. Hades a pegou na mão. Ao mero toque, a luz retornou para seu simples luar. Ao soltar, retornou ao seu brilho forte. Franziu o cenho. Se ergueu e foi em direção ao banheiro, bocejando. Quase na porta que ele escutou e então entendeu que de fato o acordara.

—Hades... – A doce voz ecoava pelo quarto silencioso. Seu coração disparou, o sono se extinguindo. Deu dois passos em direção à voz e fitou a pedra novamente. Se lançou sobre a cama e a pegou na mão. Considerou a chance de estar embriagado até ouvi-la novamente. – Hades? – A voz soou, um tom inseguro tomando conta da fonação. Independente do canal de transmissão ou da dúvida instaurada, ele reconheceria sempre aquela voz.

Era ela.

—____

               Perséfone suspirou, uma pequena lágrima escorrendo em sua delicada pele. Ela não entendia mais nada. Não entendia o porquê não funcionara, nem o porquê achou que funcionaria, nem o porquê de ter ficado tão triste com isso. Talvez não fosse a falha da tentativa, mas sim o medo de ele ter a ouvido e ignorado. Medo de ter perdido o timing. Balançou a cabeça de um lado para o outro. “Idiota”. Sua consciência acusou. “Ele é rei. Por que esperaria? ”.

               E assim que sua consciência terminou de xingá-la, a voz grossa soou alta no ambiente, fazendo um pequeno esquilo que se esgueirava por uma das árvores da clareira sair correndo.

               -Olá? – Assim como o esquilo, Perséfone também se assustou. Derrubou a pedra na terra. O coração disparado. Músculos contraídos. – Perséfone? – Ouvi-lo chamar seu nome a despertou do choque. Ela tateou a terra em busca da pedra até encontrá-la.

               -Olá.

               O silêncio se estendeu um pouco entre eles. Perséfone se ajeitou e sentou na terra. Hades sentou-se na beira da cama.

               -Perséfone?

               -Sim. Olá. Você demorou. Achei que não tivesse funcionado. – Hades segurou a vontade de se bater por ter demorado.

               -Desculpe. Em geral tenho o sono mais leve, não sei o que houve hoje.

               -Ah, céus, eu te acordei? Achei que você estaria acordado, eu que peço desculpas.

               -Não precisa se desculpar, eu de fato deitei mais cedo do que estou acostumado.

               -Podemos conversar amanhã, não quero te atrapalhar.

               -Perséfone, por favor, você não está atrapalhando. Posso falar agora. – Ele queria se enganar e dizer para si mesmo que o “por favor” soara casual e não a súplica que soou de verdade. – Está tudo bem com você? – Ele se amaldiçoou novamente. Talvez ela tivesse em perigo. Deixou sua preocupação transparecer em sua voz. – Você precisa de algo?

               -Estou bem sim, obrigada. Eu só queria... – Ela hesitou. Hades esperou até ter certeza de que ela não terminaria a frase.

               -Você queria? – Ela não respondeu. – Me perguntar algo? - Ele esperou novamente. - Dizer algo? - Nada. Hades suspirou e aguardou, tentando se conter.

                -Apenas queria falar com você. Sobre qualquer coisa. - Foi a vez de ele não responder. Ficou estático, o corpo congelado no momento de surpresa e alegria, um sorriso discreto em seus lábios. - Hades? - Ela quebrou o silêncio depois de vários segundos. - Você está aí?

                -Estou, sim. Aqui. - Ele a ouviu suspirando de alívio. Não queria assustá-lo. Ela, por sua vez, ouvia a felicidade na mudança de tom de voz dele. Sorriu.

                -Como estão as coisas aí embaixo?

                -Bem, - “piores sem você aqui”. - Um influxo maior de almas nos últimos dias, nada além disto. Por aí?

                -Ah, você sabe, quente, úmido… - “bem diferente daí”.

                -E com a sua mãe? Se não se importa que eu pergunte.

                -Não me importo, não. Estamos melhorando. Não vou lhe mentir, foi bem difícil no início.

                -Fiquei sabendo que ela teve uma reação complicada à toda nossa situação.

                -Sim… - Ela ficou em silêncio por mais um tempo.

                -Não precisamos falar sobre isso. Me diga, como você conseguiu me contatar? Está em casa?

                -Ah, sim, isso… bom, começou ontem… - E assim ela seguiu, contando sobre quando encontrou as pequenas pedras, formou a joia maior, o colar, tudo. Ele também contou para ela a sua parte, de como apareceu, de estranhar a mudança de temperatura e luz da pedra. Perséfone contou a Hades o que Hefesto comentara sobre herdar os poderes no casamento.

                -Claro, eu esqueci de comentar isso com você, não tinha certeza que estando no Olimpo os poderes se desenvolvessem normalmente.

                -E vão se desenvolver, então?

                -Pelo visto, sim, porém provável que lentamente.

                -Hum. Interessante. O que mais você acha que eu vou conseguir fazer? - Ele conseguia sentir a curiosidade na voz da deusa.

                -É incerto. Sei que Hera herdou a maioria dos poderes de Zeus, entretanto isso não ocorreu com Anfitrite.

                -A esposa de Poseidon?

                -Sim. Ela herdou o controle das águas, mas não pode criar furacões e aquelas baboseiras todas. - Perséfone riu do descaso de Hades com os poderes do irmão. - Quanto a você, se já conseguiu conjurar pequenas joias, muito provável que vá completar essa habilidade.

                -O que há além de conjurar as pedras?

                -Bastante coisa, até. Você vai conjurar pedras maiores, vai conseguir escolher o tipo a conjurar e eventualmente vai conseguir controlá-las fora da terra, até ordenar que formem objetos inclusive.

                -Objetos? Tipo, posso fazer uma cadeira de pedras?

                -Uhum.

                -Uau. Você faz isso?

                -Posso fazer, sim. Porém, não sei fazê-las muito confortáveis… - Ambos riram.

                Já fazia mais de hora que estavam conversando. Hades mordeu o lábio para refrear a vontade de perguntar se ela soubera da festa. Não sabia se devia ir. Se devia convidá-la para ir com ele. Se só devia mencionar que vai e esperar que ela decidisse por si se iria ou não, sem ter que avisá-lo. Perséfone bocejou do outro lado da ligação inter-reinos enquanto o deus se remoía em seus próprios pensamentos.

                -Desculpe, mas acho que vou ir dormir. Acho que amanhã é dia de colher.

                -Claro, entendo. Não precisa se desculpar. Você que me ligou, lembra? - Ela riu.

                -Sim, sim. Obrigada por atender. - Hades conseguiu sorrir acima da tristeza de parar de ouvi-la.

                -Obrigado por ligar. - O deus baixou o tom de voz. - Boa noite, Perséfone. - Um arrepio cruzou o corpo da deusa ao ouvi-lo sussurrar seu nome. Hades descansou a pedra no criado-mudo e bebeu um último gole de uísque que havia se servido durante a conversa.

                -Boa noite, - ela parou, hesitou, enquanto se erguia. Fechou os olhos com força por alguns segundos, abriu e fitou o discreto pé de romãzeira na terra encantada. - Meu marido.

                Ela desligou a ligação antes que pudesse ouvir Hades se engasgar com suas últimas palavras. O deus dormiu sorrindo.

—______

                -Isso são horas, filha? Onde é que você estava? O que é que você estava fazendo? - Perséfone nem tinha entrado direito em casa quando o interrogatório começou. Deu de ombros. Estava cansada para discutir.

                -Fiquei conversando com Hefesto até mais tarde, depois um autômato dele me trouxe até perto daqui, verifiquei algumas plantas e agora vou dormir, com licença. - Deméter tornou a falar, entretanto a jovem deusa não a escutava mais. Entrou em seu quarto e nem fechou a porta. Se jogou sobre a cama do jeito que estava vestida. Retirou a pedra que escondera sob as vestes e a depositou abaixo de seu travesseiro. Descansou o colar sobre o criado-mudo e fechou os olhos.

                Adormeceu sem notar que Deméter entrara em seu quarto atrás dela. A mãe pegou o colar e o averiguou. Queria entender que algo a mais teria este colar para justificar uma tarde inteira com Hefesto, além da urgência com que a deusa resolveu fazê-lo. Ela estava escondendo algo e Deméter iria descobrir o que era.

                “Amanhã”. Ela pensou. “Descobrirei amanhã”. Beijou a testa da filha, a cobriu e fechou a porta do quarto ao sair. Andou até suas correspondências e fitou o convite da festa de fim de guerra. Ela era cordialmente convidada aos eventos pelos irmãos, embora não comparecesse muito. Quando Perséfone cresceu, convidavam Deméter e a filha juntas.

                Naquele dia, porém, dois convites chegaram. Foram convidadas separadamente. A deusa sabia muito bem o que a irmã queria dizer com isso. Queria implicar que Perséfone poderia, ao contrário de anos anteriores, ir sem a mãe, caso o desejasse. A deusa fechou os olhos com força, tentando sem sucesso conter as lágrimas que rolaram por seu rosto.

                Sua menininha havia crescido e não havia mais nada a se fazer sobre isso. Não se desculpou com a irmã por terem discutido, mas se arrependeu. Sabia que, sim, Hera queria também o que era melhor para Perséfone. Sempre soube que fora uma mãe superprotetora, porém não sabia reconhecer o limite que isso seria saudável para a menina. Analisando o comportamento da filha nos últimos meses, Deméter percebeu que talvez estivesse falhando em protegê-la, independentemente do quão em cima ela estivesse. Perséfone estava cansada. E ela também.

                Mesmo assim, já se decidira, nas longas horas de reflexão que se passaram enquanto ela esperava a filha chegar em casa: poderia ser menos protetora, entretanto Hades ela não aceitaria assim. Não estava convencida nem de longe que era uma boa ideia para a filha. Não confiava em nenhum de seus irmãos. Não queria que Perséfone se tornasse mais uma das deusas vítimas dos abusos de poder dos Três Reis, não importando quanto Hera insistisse que Hades era muito diferente de Zeus e Poseidon. Ela não acreditava. E isto, sim, faria de tudo para ter de seu jeito. Depois, a filha que traçasse o próprio destino.

                Levou os convites consigo e os guardou em seu próprio criado-mudo. Foi adormecer poucas horas antes de ter de acordar novamente, absorta no looping de seus pensamentos.

—____

                Hera acordou com o cheiro de café passado. Se desvencilhou com delicadeza do abraço do marido que roncava, ainda dormindo. Vestiu seu roupão e desceu, encontrando uma jovem deusa com seu café já servido em mãos.

                -Bom dia, meu bem. - A rainha do Olimpo sorriu. A deusa a entregou o café e se inclinou para receber um beijo de Hera na testa, seus cabelos ruivos como os de Hera presos em um coque no topo de sua cabeça, impecavelmente montado.

                -Bom dia, mãe. - A deusa pegou um café para si e seguiu a deusa mais velha até a sacada que dava vista aos jardins do Palácio.

                -O que a traz aqui tão cedo, Hebe?

                -Recebi a notificação da festa e gostaria de combinar convosco, se meu pai descerá para se juntar a nós, ou apenas contigo, os detalhes.

                -Ah, é claro. Tem certeza de que não prefere discutir isso com Afrodite? - Se sentaram viradas para o pátio. A deusa ficou em silêncio. - Não é só por isso que você veio, então. - Hebe sorriu envergonhada.

                -Me pegou. Queria saber o que é o burburinho sobre meu tio.

                -Hades?

                -Sim. É verdade que meu pai sabia de tudo?

                Hera suspirou.

                -Bom, começou há alguns meses atrás… - Hera discorreu sobre todos os acontecimentos. Era bom conversar com a filha mais nova. Deméter não estava completamente errada, Hera não era a melhor das mães, mas fora melhorando com o nascimento dos filhos. Julgava seu relacionamento com a filha bem satisfatório. Se conectou emocionalmente muito mais com Hebe e suas enteadas mulheres, Atena, Perséfone, Ártemis, do que com os homens. Hebe não parecia se abalar com os feitos ciumentos da mãe, as brigas dos pais, nada. Ainda admirava Hera como talvez ninguém mais o fizesse.

                A rainha estava terminando de contar sua briga com Deméter quando uma serva a interrompeu, duas batidas na porta da sacada roubando a atenção das deusas.

                -Minha senhora, me perdoe a interrupção. - Hera acenou positivamente com a cabeça para que a serva se aproximasse e continuasse. - A senhorita Perséfone está aqui para vê-la.

                -Tão cedo? - Hera respondeu.  - Mande-a subir. - A serva se curvou, assentiu e sumiu pela porta. Hebe se ergueu, imaginando que a mãe fosse querer privacidade. Se abraçaram, ela recolheu as xícaras de café e parou perto da porta, se virando.

                -Preparo mais um café para a senhora? - Hera negou com a cabeça. - E para Perséfone? - Hera sorriu e acenou para a porta.

                -Por que não pergunta para ela?

                Hebe se virou e encontrou a deusa parada na porta, um simples vestido longo amarelo claro a fazendo contrastar lindamente com a arquitetura esguia e de tons brancos do Palácio. Sorriu e abraçou a irmã, que recusou o café educadamente.

                Hera se levantou para abraçar a deusa que se aproximou, a abraçou e sentou-se onde antes estava Hebe.

                -Bom dia, majestade. - Perséfone disse, sorrindo. Hera dispensou a formalidade com um gesto da mão.

                -O que a traz tão cedo ao meu encontro, minha criança? Está tudo bem?

                -Sim, sim, nenhum problema. Desculpe vir tão cedo, já estou acordada há algumas horas trabalhando em minhas tarefas, não levei em consideração que aqui no Palácio vocês acordam em horário “normal”. - Ambas riram.

                -Não precisa se desculpar, meu bem.

                -Vim porque não consegui vir ontem. Acabei saindo tarde do Hefesto. 

                -Ah, sim, claro. Como foi? Conseguiu o que queria?

                -Uhum. - Perséfone levou a mão até o colar em seu pescoço. Fora da vista da mãe deixava a alexandrita em seu lugar. Hera se inclinou para analisar o colar de perto.

                -Muito bonito. Você parecia apressada ontem, nervosa até. Vou chutar que tem algo a ver com essa bela pedra preciosa que nós não temos em lugar nenhum aqui do Olimpo… - Perséfone sorriu.

                -Talvez…

                -Talvez, é? Você ganhou de presente?

                -Não. Ela apareceu para mim. Acho que a fiz. - Hera se recostou na cadeira e fitou o pátio.

                -Hum, interessante. Seus poderes estão surgindo.

                -Sim. Fui ao Hefesto para personalizar esse colar.

                -Entendo. É sobre isso que você quer conversar?

                -Também. Na verdade, queria contar uma coisa. - Hera se inclinou, apoiando a cabeça sobre a mão e ficando mais próxima da enteada. - Ontem eu conversei com Hades. - A deusa sorriu e ergueu as sobrancelhas, em surpresa.

                -E?

                -Uma pedra dessas também apareceu para ele, conseguimos conversar por ela. Só por voz. Não o enxerguei. - Hera murmurou um “hum” e virou a cadeira para ficar mais de frente para a deusa. - Não foi nada demais. Conversamos sobre a vida. Nada específico.

                -E você queria me contar por…?

                -Quero sua ajuda. Minha mãe não vai aceitar que eu o veja.

                -Você quer se encontrar com ele pessoalmente?

                -Sim. Conversar com ele foi a confirmação que eu precisava.

                -Confirmação de?

                -De que sinto falta dele.


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Notas finais do capítulo

Acho que nem tem ninguém lendo por aqui, faz tempo que ninguém comenta nada, só vejo que tem visualizações, então nem sei o que dizer
Se tiver algum leitor fantasma por ai, favor se manifestar, adoro conhecer vocês ♥



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