Café. escrita por Burn


Capítulo 1
Capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

Oi (:



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Aquele não seria um dia normal. Por mais que fosse sábado cedo como todos os outros sábados, por mais que os pássaros cantassem da mesma forma que cataram ontem ou anteontem, aquele, com toda certeza, não seria um sábado normal.

Ele sabia que aquele seria um sábado um tanto...

Completo.

Já cedo, de banho tomado, vestiu uma roupa menos social diferente daquela que vestia todos os dias, exceto por domingo.

Ele passou o mesmo perfume de sempre e seguiu para a mesma padaria de sempre onde tomava o mesmo café de sempre antes de ir ao trabalho, porém dessa vez ele não iria ao trabalho.

Sentada em frente a ele, virada ao leste, estava ela bebericando o mesmo café que ele pedira enquanto lia um livro velho.

Certa vez ele viu uma foto dela no jornal. Ela era a garota que havia perdido a memória num acidente de carro quando mais nova, talvez com uns 15 anos. Agora com 25, ela ocupava suas tardes lendo e escrevendo. Era, de certo, a melhor escritora das redondezas.

Ele costumava vê-la todos os sábados nessa mesma padaria. Ainda que não falasse com ela, depois de relacionar a foto do jornal com a mulher calada, era ela que seus olhos procuravam em todas as manhãs de sábado.

Naquele sábado anormal ele havia tirado uma folga de seu trabalho. Coisa muito estranha vindo de alguém que só não trabalhava aos domingos porque seu patrão não permitia.

O real motivo para a folga excepcional dele era ela. Aquela mulher calada e fechada em mundos paralelos, mundos que mudavam de acordo com o livro que ela devorava a cada manhã.

Sem mais delongas, tomou seu último gole de café e foi fazer o que tinha de fazer.

Suas mãos suavam, mas isso não o impediu de se levantar e seguir para a mesa dela.

Com o punho fechado fingiu pigarrear tentando chamar sua atenção. Os olhos castanhos antes fixos nas letras agora pairavam sobre ele.

—Pois não?- indagou com o cenho franzido de quem diz: “como ousa interromper a minha leitura?”.

—Olá, meu nome é Nicholas- se apresentou meio sem jeito- posso me sentar?

A mulher o olhou desconfiada, era difícil alguém querer entrar em “contato” com ela. Na maioria das vezes ela era invisível. Mas ela era assim porque gostava. Gostava do introspectivo. Gostava do antissocial.

—Sente-se- murmurou colocando seu livro a contragosto no colo.

Os dois ficaram num silêncio que pareceu eterno, apenas se analisando, apenas tentando adivinhar o que o outro estava pensando. Até que finalmente ele resolveu se pronunciar.

—Eu queria lhe contratar- anunciou.

—C-como?- engasgou com as bochechas coradas de vergonha. Sua mente já trabalhava em mil e uma formas sujas dele querer-lhe contratar.

—Oh não, não pense isso- tratou de se explicar sentindo-se ruborizar também.- Não quero lhe contratar desse jeito- fez uma careta encabulada. - Eu queria que você escrevesse a minha história.

—Menos mal- ela riu aliviada.- Se a história é sua, por que você mesmo não escreve? – perguntou, deixando que o manto de desconfiança a cobrisse de novo.

—Digamos que eu li alguns de seus trabalhos e que gostei. Não levo muito o jeito para a escrita. Aposto que você faria isso muito melhor do que eu- ele deu uma piscadela sorrindo.

Os lábios dela se comprimiam formando uma linha reta.

—Sobre o que é essa tal história? – perguntou, imaginando que fosse algo parecido com Star Wars por ser um homem, mas para a sua surpresa a resposta dele foi totalmente diferente.

—É sobre um amor de infância. O meu amor de infância. É uma historia legal, acho que você vai gostar - anunciou estudando minuciosamente a expressão da mulher. Ela pendeu a cabeça para o lado como uma criança e sorriu.

Um amor de infância parece-me tão clichê para um homem desses— pensou.

—Quando poderíamos começar?- disse ela animada para ouvir a história. Ela era apaixonada por qualquer boa história.

—Que tal hoje, se não lhe for incômodo.

—Poderíamos começar agora então - ela falou puxando o notebook da bolsa.

Ele sorriu vendo que o presente lhe viria melhor do que a encomenda.

—Me parece ótimo.

Ele a observou abrir a tela do computador portátil e posicioná-lo de forma que ainda assim pudesse ver o rosto de Nick.

—Então, comece - pediu a mulher depois de já ter digitado algumas primeira palavras.

Ele a encarou e viu as imagens de sua história, como se fosse um filme.

—Ela tinha uma beleza peculiar e cada detalhe daquela coisinha a tornava tão única e ainda mais perfeita para mim - começou como se tivesse voltado no tempo, como se fosse o garoto na época em que tudo aconteceu.

Tudo começou quando meus pais resolveram que eu deveria estudar no inferno integral. Ops, eu quis dizer período integral....Sim, eles queriam aumentar a minha tortura para nove horas por dia em todos os dias úteis.

No começo era lógico que eu não concordava, afinal eu não me sentia abandonado por eles preferirem o trabalho do que eu.

Bem, na verdade eu estava até acostumado com isso, mais foi só uma daquelas reportagens do Fantástico mostrarem como os filhos dos outros se sentiam em relação a esses abandonos que eles já generalizaram. Resolveram que eram os piores pais do mundo.

Dramáticos.

Como solução, eles decidiram que eu deveria estudar período integral, para interagir mais tempo com pessoas da minha idade em vez de ficar trancado do meu quarto jogando videogame.

Eles me colocaram repentinamente naquele colégio no segundo bimestre da oitava série. Quando dei por mim já estava entrando por aquela porta com a mochila jogada de forma desajeitada nos ombros, sentindo todos os olhares sobre mim.

O pátio era grande e cheio de armários. Em um dos cantos havia um palco e divididas no centro estavam mesas de pingue-pongue. Além dessas coisas haviam algumas portas para salas e corredores que davam ali.

Não me lembro muito bem como aconteceu, só sei que todos ali me olhavam. Todos, menos ela. Ela andava distraída com um número extraordinário de apostilas e cadernos nos braços, o que a impossibilitava de enxergar onde pisava... E foi assim que ela tropeçou nos próprios pés e caiu.

Caiu bonito que nem um mamão podre.

Ficou estatelada no chão alguns metros me mim.

Olhei assustado para todas aquelas coisas espalhadas em volta da garota que, para a minha surpresa, ria descontroladamente da própria desgraça.”

Nick riu levemente, lembrando-se do rosto dela.

Acho que eu fiquei uns 10 segundos, estático, apenas a encarando gargalhar, até que seus olhos chocolate, por milésimos de segundos se encontraram com os meus, foi tudo tão rápido que eu me perguntei se realmente havia acontecido.

Só para constar: Não a ajudei a se levantar.

Naquele dia fui apresentado para a minha nova sala. Eu parecia um estranho no ninho, todos já estava enturmados e eu lá, solitário.

Durante a aula eu evitava olhar para os lados, talvez por vergonha, ou por medo. Apenas queria desaparecer. Meus olhos alternavam da lousa para o caderno e do caderno, para a lousa.

Eu sentava atrás de todos, no lugar onde eu podia ser o mais invisível possível. Os professores, para a minha sorte, não perguntavam nada para mim. Facilitava muito.

Em vez disso, eles perguntavam tudo, tudo mesmo, para uma aluna que sentava na frente. Uma aluna que ficava entre a minha visão e a lousa. Uma aluna pequena de cabelos e olhos castanhos. A mesma que caíra mais cedo.

Sim, era ela.

Meio mês se passou e eu ainda não havia me enturmado. De tão introspectivo que eu era, eu lia em todas as horas vagas para não precisar puxar assunto com ninguém. Nas horas não vagas, ou seja, nas horas de aula, eu havia adotado um novo passatempo naquele inferno.

Eu havia começado a observá-la.

Era engraçado como ela prendia o cabelo de forma desordenada no calor. Era engraçado vê-la colocar o lápis atrás da orelha e depois ficar procurando ele, por esquecer que estava lá. Aos poucos eu ia decorando as suas manias, mesmo que sem perceber. E foi assim que eu me apaixonei pelo jeito que os olhos dela brilhavam durante as aulas de história, eu me apaixonei por suas bochechas que ficavam rosadas quando não sabia responder uma pergunta dos professores.

Ela era uma caixinha de surpresas, diferente de qualquer garota que eu já vira. Não que eu tivesse lá muita experiência. Ela não andava com garotas, ela andava com garotos. E eles a aceitavam como se fossem um deles. Era engraçado, sem pretensão.”

As mãos de Nick pegaram um guardanapo e começaram a dobrá-lo deliberadamente.

—Eu sei que adolescentes se apaixonam fácil - ele riu ao dizer isso.

Mas é que com ela foi diferente, ela era diferente.

Um mês se passou e aí eu já estava começando a conversar com as pessoas. Já era hora. Eu conversava com todos nos intervalos, nas trocas de aulas e afins.

Com todos menos ela.

Ela eu apenas observava durante as aulas e com o tempo os olhos dela também encontravam com os meus.

Esses encontros eram muito rápidos, ela logo virava o rosto e ruborizava. Era encantador quando isso acontecia.

Como eu disse, ela era uma caixinha de surpresas .

Certo dia, acho que dois meses depois de eu entrar lá, ela simplesmente interrompeu minha leitura.

O que está lendo?- perguntou. Era a primeira vez que ela falava comigo.

Peter Pan- respondi surpreso com a atitude.

Não gosto desse livro- anunciou tirando-o da minha mão e fechando.- O Peter não fica com a Wendy no final – falou com o nariz empinado, exalando um ar de garota mimada.

Talvez porque aquele não seja o final- retruquei, roubando o livro de sua mão.- Eu gosto desse livro.

Ela riu. Uma risada gostosa e infantil mostrando todos os dentes.

Eu gosto de você- disse me olhando nos olhos.

Dava para acreditar? Aquela era a nossa primeira conversa e ela já falava isso, assim, na cara dura.”

Nick olhou para a mulher como se a pergunta fosse para ela, e ela apenas sorriu sem tirar os olhos da tela.

Eu também gosto de você- sorri, e ela me envolveu com os braços. Foi uma coisa meio inesperada. Tudo nela era inesperado... Apesar de desajustado o abraço, eu gostei. Me senti completo. Por mais que eu não soubesse que era incompleto.

Aquele foi o inicio da parte mais bela da minha vida”

Nick agora picava o guardanapo. Ele se calou um pouco para que desse tempo para mulher digitar.

Todos os dias discutíamos por causa do meu livro Peter Pan. Eu sabia que esse era só um pretexto que nós dois criamos para que continuássemos conversando.

No final acabei dando o livro para ela.

Naquele ano nós nos formamos e eu a pedi em namoro. Ela era a garota da minha vida, eu tinha certeza disso.

Certo dia ela me levou para conhecer os pais dela, pessoas ótimas por sinal. Não mereciam que eu fizesse o que fiz...”

Ele comprimiu os lábios.

Eles deixaram que eu a levasse para passear aquela tarde. Andaríamos de bicicleta pelo parque. Estávamos apostando corrida quando tudo aconteceu.

Ela gritava:

Ei Peter Pan, por que está indo tão rápido? Está fugindo? Venha aqui ter um final feliz comigo agora mesmo!

E eu ria.

Não vou cair na sua piada, sei muito bem que você quer é me ultrapassar- continuei correndo o mais rápido possível até que uma buzina seguida de um barulho estrondoso me fez parar.”

A mulher que digitava parou de escrever, levantando os olhos a Nick que continuava a picotar o papel.

A respiração dela ficou mais pesada e eram suas mãos que agora suavam.

Olhei para trás e me deparei com o meu amor estirado no chão. Eu não sabia se me amaldiçoava por agradecer de não ter visto a cena. A bicicleta havia sumido embaixo do carro

Meu coração estava a mil, eu sentia como se o carro houvesse batido em mim, não nela. Eu preferiria isso. Mas infelizmente não era isso, infelizmente era ela que estava estirada no chão, não eu.

Me aproximei meio atônito, pessoas já cercavam o local e a minha ficha não tinha caído. Não tinha caído até alguém gritar: “Ela está morta”.

Naquele momento minha vida parou. Tudo parou. Só existia eu e você no meio do nada enquanto meu coração se apertava após uma punhalada nas costas.

Morta. A palavra se repetia em minha cabeça enquanto você permanecia imóvel. 

Há um segundo viva e agora morta, levando a minha vida.”

Uma gota de lágrima pingou sobre o exemplar do Peter Pan esquecido no colo da moça. Aquele era o que ele lhe dera, prometendo ser seu Peter e lhe mostrar um final feliz.

Os olhos dela pairavam nos lábios trêmulos dele. Ela lembrava do acidente.

Ele continuava a picotar o papel.

Imóvel, morta. A partir daquele momento eu fui incapaz de me aproximar mais. Meus olhos se fecharam, eu não queria guardar a sua imagem ali, imóvel, morta no chão com um filete se sangue escorrendo por sua boca.

Eu não queria lembrar da minha caixinha de surpresas daquele jeito.

Não queria.

Então eu fugi. Peguei minha bicicleta e corri até não aguentar mais.

Fugi do mundo.

Dos meus sentimentos.

De você.

A culpa foi minha? – eu me perguntava a cada pedalada e então a imagem sua correndo atrás de mim, me chamando de Peter Pan me assombrava.”

—A culpa foi minha?-Nick perguntou a moça. Mas não deixou que ela respondesse.

Sim, a culpa foi minha.

Eu fui um covarde, eu a abandonei.

E por quê?

Só porque eu não queria guardar a imagem dela morta?

Não queria me torturar sabendo que nunca mais a veria viva, ruborizando, sorrindo, esquecendo lápis.

Puro egoísmo eu querer me poupar da dor, não acha?

Como eu podia amar você, se só queria proteger a mim?”

Uma lagrima caiu do rosto de Nick, seguido de seu riso sem humor. Em sua mente a história estava embaralhada, ele não sabia mais se referia a personagem ao a mulher dona dos olhos castanhos a quem desabafava o que não admitiu por muito tempo.

—Sim, puro egoísmo. Eu era o Peter Pan dela, EU deveria ficar no final com ela. EU- a voz dele subiu duas oitavas, a visão dele estava embaçada.

Ele secou algumas lágrimas com as costas das mãos e o ato fez com que o cheiro de seu perfume chegasse até a mulher.

— A partir dali sim, eu percebi o quanto era incompleto, o quanto o jeito infantil dela me fazia falta. O quanto ela era o que faltava em mim - ele balançou a cabeça negativamente com um sorriso sem humor no rosto. - Você não sabe quantas vezes eu quis morrer. Você não sabe quantas vezes eu tentei me matar. - Ele falava com a voz embargada mas ao mesmo tempo dura.- E sabe porque eu não o fiz ?

A mulher calada balançou a cabeça negativamente.Ela era incapaz de falar. Apenas ouvia.

—Não fiz porque não era justo. Eu não achava justo. Eu merecia sofrer, merecia me remoer pelo resto da minha vida, eu precisava sentir aquele incompleto para sempre e assim me redimir de tê-la deixado quando mais precisava de mim. Minha Wendy. - Ele deu um riso curto. – Bom, pelo menos eu acreditava que era por isso. Então eu vim para essa cidade pequena, me foquei nos estudos para manter a cabeça ocupada, depois disso fui trabalhar no jornal daqui, cheguei num dos cargos mais importantes da empresa, mas nada disso era suficiente. Nada disso a traria de volta. Nada disso tinha importância. Até que num sábado eu li uma matéria no jornal sobre uma escritora renomada. Ela estava se mudando para essa cidadezinha pequena-

—Ela se sentia incompleta- a mulher o interrompeu.- Ela se sentia incompleta desde o acidente, mas não lembrava o porquê.- Sua voz saiu baixa, mas ainda assim ele a ouviu.

Ele sorriu com o nariz vermelho.

—Ela estava se sentindo incompleta e então resolveu mudar-se para essa cidadezinha. Quando ela mais nova ela havia sofrido um acidente com um carro e sofrido uma parada cardíaca. Eu não estava lá para saber que era só uma parada cardíaca... - completou - mas não foi esse o fato que me chamou atenção. O que me chamou atenção foi a foto dela. Aqueles olhos castanhos. Aquele sorriso infantil, por mas que ela fosse uma mulher.

Nick olhou para a mulher a sua frente, com apenas uma mesa separando-o dela. Ele esticou o braço e tocou sua bochecha bem onde uma lagrima descia.

—Sabe o real motivo de eu nunca ter me matado Wendy?- ele perguntou sorrindo para ela- O real motivo de eu nunca ter me matado, e de você não ter morrido foi porque nós ainda precisávamos do nosso final juntos. Do nosso final feliz.

—Porque aquele ainda não era o final- Ela falou se levantando junto dele, que a envolveu num abraço apertado.

—Esse sim será o nosso final.- ele lhe depositou um beijo na testa- Juntos.

Os dois se beijaram apaixonadamente, completos na presença do outro. Como dito, ele sabia que aquele seria um sábado diferente...Um sábado completo.


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Notas finais do capítulo

Tchau ):
Ps:Comentários são sempre bem-vindos.