A Hospedeira - Antes e Depois da Chuva escrita por Rain


Capítulo 4
Capítulo 4 - Dilemas e Contradições


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo ainda é baseado no capítulo Pronta.



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Comemos em silêncio, uma mão minha aferrada à cintura de Peg. Não pude discutir quando ela pediu que eu pegasse a comida e a trouxesse para o campo onde cresciam os brotos de trigo. Ela queria fugir de Jamie. Isso significava que ela ainda mantinha a ideia fixa de nos deixar.

Eu tinha pena do garoto. Se eu não tivesse ouvido a conversa dela com Sunny, teria sido pego de surpresa quando já não houvesse mais o que fazer. E era isso o que aconteceria com ele. Peg pretendia passar o sinal vermelho e atropelar os dois babacas que mais a amavam, Jamie e eu. Ele pelo menos teria a irmã de volta. Eu só ia ficar com a pancada. Bom para mim que eu tinha acordado hoje com vontade de atropelar os carros.

Meu pai sempre dizia isso de mim quando eu e Kyle saíamos no braço. Kyle era mais forte e mais velho e sempre foi... Como dizer? Brutal é uma palavra que o define bem. Nosso pai claramente temia por mim, mas eu sempre dei conta de me defender. Ele odiava quando nós brigávamos. “Casa sem mulher dá nisso”, ele dizia. Meu pobre pai.

Quem sabe se Kyle tivesse razão, se tudo desse certo com Jodi, haveria uma esperança para ele. Isso, porém, significaria que o que aconteceu com Melanie, Lacey e aparentemente com a hospedeira da Curandeira não tinham sido exceções. Saber disso tornaria a possibilidade levantada por Jared impraticável. Ou bem mais difícil, pelo menos.

Depois de comer, seguimos para o hospital. Peg queria ver Jodi e Sunny. Kyle estava lá, os olhos postos sobre o corpo de Jodi, uma das mãos segurando a mão dela, a outra aninhando o tanque onde estava Sunny. Outra coisa que Kyle era: contraditório. Aquilo não chegou a me espantar de verdade, entretanto. Algumas mulheres tinham o poder de transformar meu irmão num ursão carinhoso. Sunny, pelo jeito, tinha sido uma delas.

Mas Peg ficou realmente e positivamente espantada com a reação de Kyle. Ela viu algo naquele gesto, algo que meu irmão idiota deveria ter mostrado desde o início. Se não tivesse a cabeça mais dura do mundo. Por que é que todo mundo na minha vida tinha que ser mais teimoso que um burro empacado? E por que é que frequentemente eu era obrigado a ser ainda mais teimoso do que eles?

De qualquer forma, com essa espécie de “nova tolerância” surgindo entre eles, Peg ensinou Kyle como falar com Jodi, tentando provocar suas memórias:

— O Kyle está esperando por você, Jodi. Ele teve muitos problemas para trazer você para cá... todos que o conhecem querem lhe dar uma surra de matar.

— Não que você esteja surpresa de ouvir isso. Quando não foi esse o caso, não é, Jodi? É bom ver você novamente, querida. Contudo, me pergunto se você sente a mesma coisa. Deve ter sido um bom descanso ter se livrado desse idiota por tanto tempo — eu disse para completar, tentando ver se também reavivava um pouco Kyle, que ainda estava em modo zumbi.

Jodi era uma garota legal. Ela achava a arrogância de Kyle divertida, mas tinha um jeitinho só dela de controlar a megalomania dele e ainda fazê-lo se sentir especial. Claro que Kyle não percebia isso.

Jodi me acha um babaca! – queixava-se ele, quando ela ria de suas ideias malucas.

Prova de que, apesar de ser sua namorada, ela é uma garota sã – dizia eu, aproveitando a oportunidade de atormentá-lo.

Ela disse que eu não devo comprar aquele carro “feroz” que vi na TV. “O que você vai fazer com um carro desses, Kyle? Tirar racha? Pra que ter um carro que pega tanta velocidade se você só dirige aqui na cidade? É caro demais Kyle! Você precisa pensar no futuro, Kyle!” – reclamou, imitando-a, sua voz ficando mais aguda quanto mais irritado ele ficava.

Jodi estava certa. O idiota queria gastar todo o dinheiro que tinha passado anos economizando para comprar um carro horroroso, que mais parecia algo saído direto do Monster Truck.

Ela é mulher, Kyle. Não entende as suas necessidades. Ela não vai entender nunca que você precisa de um carro tão grande para compensar o tamanho de outras coisas.

— Sabe, Ian, seus dentes estão meio tortos hoje, me deixa arrumá-los pra você.

— Calminha aí, Pit Bull, eu só estava falando sobre o seu cérebro – provoquei, enquanto ia saindo disfarçadamente do quarto.

Quer saber, seu babaca? Eu até ia aí fazer uns acertos na sua cara, mas acho que você não está merecendo que eu perca meu tempo com você. Vou ficar aqui pensando em como eu fui bem tratado depois que ela disse que eu era bonito demais pra precisar de um carro grande e chamativo. Pode morrer de inveja, porque com essa sua cara feia, nenhuma mulher vai te amar e nem te dar os “presentinhos” que eu ganhei hoje.

— Faz assim, olha, guarda mesmo seu dinheiro pra comprar uma coleirinha de brilhantes! – falei sobre os ombros, enquanto corria de vez do quarto.

Sempre tinha sido assim, a gente passava a vida inteira se provocando. Mas esse era o nosso jeito de nos ligarmos. Era o tipo da coisa que eu só fazia com meu irmão, porque qualquer outro que falasse dessa forma com qualquer um de nós levaria uma surra daquelas. De nós dois.

— Você se lembra de Ian, é claro. Ele nunca conseguiu me alcançar em nada, mas ainda continua tentando. Ei, Ian, tem alguma coisa que você queira me dizer?

— Na verdade, não

— Estou esperando um pedido de desculpas.

— Pois continue esperando.

— Você acredita que ele me deu um chute na cara, Jodi? Sem absolutamente nenhuma razão.

Sem nenhuma razão. Não tinha acontecido exatamente por causa disso, mas tentar matar a mulher que eu amo não foi só brincadeirinha entre irmãos, caso ele não saiba. A gente ainda não tinha exatamente resolvido a questão. E, sinceramente, nem acho que chegaríamos a resolver. Qualquer que fosse a nossa relação teria que funcionar apesar do que aconteceu. Afinal, ele era a única família que eu tinha. Por enquanto. Mas isso era uma outra história e não dava pra discutir agora. Ainda mais aqui, na frente da Jodi. Então eu me limitei a provocá-lo mais uma vez:

— Quem precisa de desculpas, hein, Jodi?

Continuamos ali, Kyle pensando em Jodi, eu pensando em Peg, Peg pensando... sei lá, provavelmente em Melanie. Até que, para surpresa geral, Kyle se saiu com esta:

— Peg? Eu sinto muito.

Ahn? Quem é você e o que você fez com meu irmão? Ops, hoje em dia essa velha brincadeirinha tinha desdobramentos perigosos!

Peg devolveu a pergunta sem ter mesmo ideia do que se tratava:

— Por quê?

— Por ter tentado matar você. Acho que eu estava errado.

Pedir perdão e assumir que estava errado. Duas coisas que Kyle simplesmente não fazia. Fiquei olhando para a cara do meu irmão como se tivesse crescido uma segunda cabeça no pescoço dele. Bem ao lado da antiga cabeça dura e fechada que não se abria nem a marteladas. A cabeça de Kyle era como um daqueles vidros de conserva fechados a vácuo que você fica pelejando horrores para abrir. Aí vem uma mocinha frágil e abre o vidro facilmente, te matando de vergonha.

O que quer que tivesse acontecido nas últimas horas na vida do meu irmão o tinha mudado. Algo me dizia que Sunny era a responsável pela imagem diferente que ele agora tinha das Almas. Mas, bem, não precisava ser muito inteligente e intuitivo para perceber isso. Era impossível ignorar o braço dele atarracado ao criotanque.

Fosse pelo que fosse, por mais que eu desejasse ter um gravador para provar para mim mesmo que não tinha sido minha imaginação, o momento passou. Provavelmente não se repetiria mais. Mas me fez bem saber que o idiota tinha ficado menos idiota.

Peg ficou feliz também, deu para notar, mas logo uma sombra passou pelo rosto dela. Sua expressão delicada ficou um pouco anuviada, carregada de cansaço. Ela quis ir dormir, parece que estava mais atenta a si mesma agora, às próprias vontades. Levei-a para fora de bom grado. Imaginei que ela ainda não quisesse falar com Jamie, por isso levei-a até meu quarto e ela concordou em ficar lá, deitando-se toda encolhida numa das camas.

Deitei-me ao lado dela, envolvendo-a num abraço apertado. No escuro do quarto, e com ela de costas para mim, eu não podia ver seu rosto, mas sentia seu corpo todo tremer incontrolavelmente. Ter o corpo dela contra o meu me dava ideias às quais eu estaria pronto a ceder em outras circunstâncias. Tocá-la era absolutamente tentador, mas estava claro que ela não estava sentindo o mesmo. Dava para perceber o quanto ela estava aterrorizada. Para ser sincero, o impasse me amedrontava também. Seria uma luta convencê-la a ficar. Seria impossível ela me convencer a deixá-la ir.

E quanto à ideia de Jared... Tanta coisa podia dar errado. E se Doc se descuidasse e ferisse Peg no processo? Afinal, ele nunca tinha feito aquilo sozinho, e a hospedeira da Curandeira podia não se lembrar tão bem do que fazer para ajudar. E se ela tivesse razão quanto ao seu novo corpo hospedeiro afastá-la de nós? Arrastá-la para um novo amor? Já tinha acontecido uma vez, podia acontecer de novo. E se amar os amados de seus hospedeiros fosse uma particularidade da Alma Peregrina que ela não conseguisse evitar? Ela me amava, mas amava Jared, amava Jamie, amava Melanie... Acrescentar mais alguém nessa equação nos enlouqueceria a todos!

Os tremores dela se intensificaram, então eu intensifiquei também meu abraço.

— Tudo vai dar certo, Peg. Eu sei que nós vamos encontrar uma solução.

Não foi bem uma mentira. Só não era verdade naquele momento. Peg nunca precisaria saber como eu era quando mentia. Eu jamais teria coragem de mentir para ela. No momento em que ela me olhasse com aqueles olhos que não conhecem a deslealdade, eu me desmontaria como um código decifrado. Sorte minha que eu não estava vendo esses olhos naquele momento, porque a minha certeza ia e vinha como a maré.

— Eu amo você de verdade, Ian. Com toda a minha alma, eu amo você.

— Eu também amo você de verdade, minha Peregrina – eu disse, procurando a boca dela para beijá-la. Queria poder olhar para ela agora, para que ela visse a verdade dessas palavras, a verdade que o meu corpo contava ao corpo do qual ela queria abdicar. A verdade que meu beijo tentava gravar em sua alma.

Os tremores se acalmaram, o vento cessou nas ondas do mar revolto e, com ela segura em meus braços, afundei na escuridão.


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Notas finais do capítulo

O capítulo seguinte é baseado no capítulo bônus que a Stephenie escreveu. Chama-se Sozinha e você acha fácil no Google. Situa-se entre os capítulos 58 e 59 do livro.