A Hospedeira - Antes e Depois da Chuva escrita por Rain


Capítulo 3
Capítulo 3 - Tribunal


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo é baseado no capítulo Pronta.



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No tribunal pequeno, todos sentados no chão de pedra às margens do círculo projetado pela luz, Peg sentou-se de frente para nós. Até sua própria postura indicava que ela achava que tinha que se defender, que era a ré. Isso era mesmo o que eu queria que ela pensasse, que era culpada de um crime, um crime contra si mesma, contra mim.

Mas eu sabia que não era assim. Ela estava ciente de que tinha que defender sua decisão, mas não como alguém que sabe que está agindo errado, e sim como uma mãe que sabe o que é melhor para seus filhos, mesmo que eles não gostem de ir ao dentista ou comer seus vegetais. Exceto que neste caso não se tratava de algo tão simples quanto uma ida ao dentista e ela estava errada quanto ao que achava que era melhor para nós.

Como acontece com todos os humanos, a maior qualidade de Peg era também seu principal defeito: seu extremo altruísmo a transformava na mais teimosa das criaturas ao negar as próprias necessidades. Bem, era pra isto que eu estava aqui. Para lembrá-la de que agora tinha mais uma necessidade que ela tinha que considerar: a minha.

Eu havia chamado apenas algumas pessoas, não queria fazer de nossa dor um espetáculo para gente que não tinha nada a ver com esta decisão. Estavam ali apenas Jared, como o maior interessado na libertação da Mel; Doc, que era quem realizaria o procedimento se eu não quebrasse a mão dele antes; e Jeb, porque, como ele mesmo diria, “aquela era sua casa”. Eu tinha a sensação de que Jamie seria um forte aliado para a minha causa, mas eu não jogava sujo. Não usaria o moleque para manipular os sentimentos dela como Jared já tinha feito. Além disso, ela jamais me perdoaria, sequer concordaria em estar aqui se tivesse que encarar Jamie também.

Como Peg tinha que ser Peg, ela primeiro quis notícias de Sunny e da Curandeira. Ficou surpresa e triste ao saber que Sunny já tinha partido. “Me espere, irmãzinha!”, ela deve ter pensado. Pois nem em um milhão de anos eu permitiria isso, sua alminha teimosa!

Quando finalmente começamos, Jeb “presidindo” tudo e pedindo por nossas alegações, fomos breves.

— Vou devolver Melanie – ela disse firmemente, como se não pudesse haver argumento lógico contra ela ir embora.

— Nós precisamos de Peg aqui – rebati.

Não contava com essa, hein, sua cabeça dura! Não há argumento mais lógico do que o bem maior!

Quando Jeb aquiesceu, considerando seriamente a minha posição, eu continuei:

— Nós temos que pensar no bem maior, Jeb. Peg já nos trouxe mais saúde e segurança do que jamais tivemos. Ela é vital para a sobrevivência da nossa comunidade... de toda a raça humana. Uma pessoa não pode ficar à frente disso.

Peg argumentou com mentiras, dizendo que Mel queria seu corpo de volta. Eu não sabia quase nada sobre Melanie, mas sabia que ela não ia querer perder a Peg. Além disso, ela podia até compartilhar do conhecimento de Peregrina, como foi apontado, mas não era uma Alma. Seria o fim das incursões nas quais a gente realmente conseguia coisas que nos davam mais comodidade e segurança. Sim, nós tínhamos sobrevivido sem essas coisas antes, mas era só sobrevivência. Por causa de Peg, agora nós vivíamos. Por causa dela, agora eu vivia.

Jared protestou veementemente, alegando que Melanie tinha direito a ter seu corpo de volta. Eu sabia que sim, entendia a situação dos dois, mas ele estava falando em assassinato sem pensar que Peg também era uma vítima. Como sempre, só eu via essas coisas.

— E o que é isso que você está fazendo com a Peg, Jared? E com o restante de nós, se você a tirar?

Tirá-la de nós significava impedir que tivéssemos remédios e uma comida mais saudável, que pudéssemos vestir roupas limpas em vez de trapos, e que pudéssemos ficar livres de doenças. Tudo isso, coisas que jamais poderiam ser subestimadas, acabaria sem Peg. Mas esse não era o meu maior motivo. A questão toda era que eu acabaria sem Peg. E Jared sabia bem disso.

— Você não está preocupado com o restante de nós coisíssima nenhuma! Só quer manter Peg em detrimento de Melanie... nada mais importa para você.

— E você quer ficar com Melanie à custa de Peg... nada mais importa para você! Assim, com a coisa empatada, tudo se reduz ao que é melhor para todos os demais.

Aha, chupa essa manga agora, Howe!

— Não! A coisa se resume ao que Melanie quer! É o corpo dela!

É o corpo da Peg também, seu idiota!

Nós dois estávamos exaltados, cada um de nós defendendo a mulher que amava. Não havia maior causa que essa e nossos corpos reagiram de acordo, posicionando-se em posição de enfrentamento. Jeb teve que nos acalmar, seus dedos coçando o gatilho. Às vezes eu me perguntava que tipo de homem Jeb tinha sido antes disso tudo. Ele se encaixava tão bem aqui, tão seguro de seu reinado, que era quase impossível vê-lo no mundo normal, no mundo de antes. Depois de pensar por um segundo, ele disse:

— Bem, eis como vejo a questão. A Peg está certa...

Nem deixei que ele terminasse. Meu corpo pulou como se uma mola o propelisse, pronto para sair carregando Peg à força dali. Onde eu nos esconderia não sei, mas também nem tive tempo de pensar em nada. Ao ver minha reação ele continuou:

— Espere! Sente-se de novo aí. Deixe-me terminar.

Hesitante, eu obedeci.

– A Peg está certa — Jeb repetiu. — A Mel precisa que lhe devolvam seu corpo. Mas...

Até aí a gente já tinha chegado, gênio!

— Mas eu não concordo com o resto, Peg. Acho que nós precisamos muitíssimo de você, mocinha. Os Buscadores estão aí fora nos procurando, você pode falar diretamente com eles. O restante de nós não pode fazer isso. Você salva vidas. Eu tenho que pensar no bem-estar da minha casa, da minha família.

Ah, finalmente raciocínio lógico da parte de alguém!

— Então a gente arranja outro corpo. É óbvio – disse Jared, para surpresa de todos.

Óbvio. Já ouvi dizer que o óbvio é sempre aquela ideia que não estava ali há um instante. Era mesmo uma ideia interessante. Eu tinha que admitir que quando Jared punha aquela cachola dura para funcionar, coisas bacanas podiam sair dali. Mas como nada nunca era fácil nesses dias, Peg protestou. Ela disse que não queria ter que passar por tudo de novo, que não queria ser uma parasita. Como eu odiava essa palavra agora! Estremecia de raiva quando alguém a usava contra ela.

Ocupar o corpo de um humano, segundo Peg, era muito mais difícil, os outros seres não eram tão individualizados, suas emoções eram mais brandas e blá, blá, blá... sobre por que ela não queria “roubar” o corpo de outro humano. Se ela queria saber, tinha muitos humanos, ali mesmo dentro das cavernas, que bem que mereciam ser suprimidos. Mas é claro que ela não pensava assim.

Ninguém estava levando esses argumentos dela realmente a sério, mas o que acabou pesando bastante foi ela dizer que estar em outro corpo podia fazê-la voltar diferente. Talvez esse corpo a arrastasse a outros amores, como o de Melanie a tinha arrastado de volta a Jared e Jamie. Talvez não pudéssemos mais confiar nela e ela trouxesse os Buscadores até nós.

Eu não acreditava em nada disso de verdade. Impossível acreditar que aquele beijo e tudo que ela tinha me dito há poucos instantes estavam impressos somente em mim. Impossível acreditar que, mesmo no corpo de um Buscador, ela faria algo que colocasse Jamie em risco. E quanto a Jared? Mesmo sem o apelo que ele tinha ao corpo de Melanie, ela também o amava de uma maneira que nenhum de nós entendia muito bem. E quanto a Jeb, a primeira pessoa que lhe ofereceu a mão? E Lily, Trudy, Geoffrey e todos os amigos que ela tinha feito aqui? Se ela quase morreu para salvar a vida de Kyle, que a tinha tentado matar, como seria capaz de entregar a todos nós que a amávamos?

Eu tinha certeza que todos esses amores estavam marcados a fogo na Alma Peregrina, mas era preciso admitir que precisávamos pensar melhor na extensão da influência que um novo corpo teria sobre ela. Tínhamos uma nova esperança, mas era necessário tempo para avaliar bem a situação. E se, por fim, decidíssemos que era arriscado demais mudar, nada ia mudar. Eu não ia deixar.

— Tudo bem, querida. Você não precisa ser ninguém mais. Nada vai mudar – eu disse, enquanto a abraçava para conter suas lágrimas.

Mas a semente estava lançada. Coisas diferentes estavam criando raízes nas mentes de cada um de nós, e todos fomos capazes de perceber a necessidade de tempo para reorganizar nossas idéias e argumentos. Além disso, Peg estava com fome. Ela podia estar usando isso como desculpa para escapar da discussão, mas eu sabia que era verdade. Há muito tempo ela não comia e eu não conseguia pensar em mais nada quando percebia que ela precisava de alguma coisa, tamanho era o meu medo de que ela se negligenciasse tanto que pudesse se prejudicar.

Nós encerramos por ali. Reataríamos tudo no dia seguinte, quando todas as cabeças estivessem no lugar.


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