A Hospedeira - Antes e Depois da Chuva escrita por Rain


Capítulo 2
Capítulo 2 - Mar Revolto


Notas iniciais do capítulo

Continuamos com Ian no capítulo Amalgamados de A Hospedeira. Daqui para frente o foco não é mais a raiva e a surpresa que ele sente, mas a revelação dos sentimentos dos dois um pelo outro. Por isso, resolvi dividir o capítulo em dois.



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Virei as costas por um segundo para colocar a porta no lugar. Quando me virei de volta ela estava sentada, as mãos estendidas para mim como em oferenda. Mãos vazias. Eu era um mar revolto e tudo o que Peregrina tinha a me oferecer era a amplidão solitária do deserto.

— Você. Não. Vai. Me. Deixar.

As ondas se quebrando sem parar dentro do meu peito.

— Ian – ela sussurrou. – Você tem que entender que... que eu não posso ficar. Você tem de entender.

Eu não tinha de entender droga nenhuma.

— NÃO!

Ela se encolheu, assustando-se com a força de meu grito, com o peso de minha dor. Subitamente, o peso foi muito grande para mim também e eu despenquei sobre meus joelhos, enterrando minha cabeça na barriga dela, agarrando-me à sua cintura, querendo tragá-la para dentro de mim.

Procela. Foi a palavra que me ocorreu, uma tempestade em alto mar. Meu corpo todo estava fora de controle, tremendo ao som dos soluços que saiam descontroladamente de dentro de mim.

— Não, Ian, não. Não, por favor, não fique assim. Por favor, não faça isso. Eu sinto muito. Por favor.

Ela chorava também, tomada pela minha dor e talvez por sua própria.

— Você não pode ir embora.

— Eu tenho de ir, eu tenho – ela disse em meio a um soluço.

Ela sofria mesmo, afinal. Não era uma decisão egoísta. Eu a conhecia melhor do que isso e suas lágrimas caindo sobre mim me diziam que eu tinha razão o tempo todo. Ela se importava comigo também. Mas Peg tinha que ser Peg. Foi por isso que me apaixonei por ela, porque não havia um só grão de egoísmo em toda a vastidão do deserto que ela me oferecia. Ela tinha suas razões. Queria dar a Melanie a chance de viver. Queria dar a Jared a chance de ser feliz. Queria dar a Jamie a sua irmã de volta. Novamente, entretanto, ela e eu perdíamos na barganha.

— Sinto muito. Eu fui mesquinho.

— Não, não. Eu sinto muito. Eu devia ter falado, quando você não percebeu. É que... eu não consegui. Eu não queria lhe contar, machucar você... me machucar. Eu fui egoísta...

Egoísta. Não mesmo. Egoístas nós teríamos que ser agora. Eu seria egoísta por nós dois se fosse preciso. Todos, inclusive ela, tentando proteger Melanie. Pois era meu dever proteger a mulher que eu amava. Principalmente quando, aparentemente, eu era o único que o faria.

— Nós precisamos conversar sobre isso, Peg. Não é um assunto fechado. Não pode ser.

— É.

De jeito nenhum!

Ela decidiu isso desde a Buscadora. Certamente, ao revelar o único segredo que garantia sua segurança para salvar sua inimiga, achou que agora seria obrigada a salvar sua amiga. Não se ela tivesse que abrir mão de sua própria vida para isso. Eu não ia deixar, quebraria os dedos do Doc se ele se aproximasse dela.

— Ninguém está me obrigando. Eu não mostrei ao Doc como fazer a separação para ele poder salvar a Buscadora. A presença dela aqui apenas me obrigou a decidir... mais rápido. Eu fiz isso para salvar a Mel, Ian.

E quem vai salvar você, sua maluca?

Ela está presa aqui dentro, Ian. É como uma prisão... mais que isso; não consigo sequer descrevê-lo. Ela é como um fantasma. E eu posso libertá-la. Eu posso devolvê-la a si mesma.

Era difícil combater a lógica disso. Eu não queria o mal de Melanie. Eu até me importava um pouco com ela, porque ela era importante para a Peg. Mas alguém precisava pôr Peregrina em primeiro plano, já que ela jamais o fazia.

— Você também merece viver, Peg. Você merece ficar.

— Mas eu a amo, Ian.

Alguém também precisava me pôr em primeiro plano.

— Mas eu amo você. Isso não importa?

— Claro que importa. Muito. Não pode ver? Mas isso só torna a ideia mais... necessária.

Como é?

A minha presença atrapalhava? Eu estava me impondo a ela e atrapalhando o caminho para o Jared? Era isso?

— É tão insuportável assim eu amar você? É isso? Eu posso ficar de boca calada, Peg. – Será que eu podia mesmo? – Não vou repetir isso. Você pode ficar com Jared, se é o que você quer. – Talvez isso seja uma promessa vazia. Um blefe. Mas não importa. — Só quero que fique. – No momento, é só isso que me importa.

Pela primeira vez, ela me tocou de uma maneira que me fez sentir mais do que seu amigo querido, segurando meu rosto entre as mãos, apreciando o contato com minha pele, olhando-me nos olhos.

— Não, Ian! – ela disse com urgência — Não. Eu... eu amo você, também. Eu, a pequena lacraia prateada no fundo da cabeça dela. Mas meu corpo não ama você. Não pode amar você. Eu nunca poderei amar você nesse corpo, Ian. Ele me puxa em duas direções. É insuportável.

Pela primeira vez eu entendi. Entendi de verdade, as ondas me acertando em cheio bem no meio do peito. Nós já tínhamos tido uma conversa parecida com essa quando ela descobriu que eu a amava. Quando nós descobrimos que eu a amava. Mas agora tinha uma carta nova na mesa. Ela estava dizendo que me amava também.

Mas também estava me dizendo que não podia ficar comigo.

Minha Alma também me puxava em duas direções.

Lentamente, como se estivesse arrastando seu corpo na direção que ele deveria tomar, ela pôs os braços em volta de meu pescoço, o corpo juntando-se ao meu e me fazendo ferver. Pousou os lábios sobre os meus e eu a puxei para ainda mais perto. Nossos lábios repetiram os gestos que eu já tinha compartilhado com tantas outras bocas, mas aquilo era diferente. Fazia todo sentido, como se sempre tivesse que ter sido assim. Como se esse beijo tivesse nascido antes de nós. Um vulcão submarino entrando em erupção, criando um novo fundo para o oceano.

Peg começou a chorar novamente. Eu movi meus lábios para seus olhos, agora sem nenhuma dúvida de que tudo daria certo.

— Não chore, Peg. Não chore. Você vai ficar comigo.

— Oito vidas inteiras. Oito vidas inteiras, e nunca encontrei ninguém por quem ficasse num planeta, ninguém a quem seguisse quando os outros fossem embora. Nunca encontrei um companheiro. Por que agora? Por que você? Você não é da minha espécie. Como pode ser meu parceiro?

Porque, milhares de anos atrás, você nasceu para mim, Peregrina.

— É um estranho universo – murmurei.

— Não é justo – ela disse, pensando somente em nós pela primeira vez. – Eu te amo.

Não era justo me amar e ter de me deixar?

— Não diga isso como se estivesse dizendo adeus.

— Eu, a alma Peregrina, amo você, humano Ian. E isso nunca vai mudar, não importa o que possa acontecer. Fosse eu um Golfinho, um Urso ou uma Flor, pouco importaria. Eu sempre o amaria, sempre lembraria. Você será meu único parceiro.

Peregrina estava pulando no mar, dando-me um motivo para puxá-la para mim e nunca mais deixar que ela se fosse.

Eu tinha lutado até agora, mesmo vendo-a se derreter por Jared, mesmo sabendo que Mel não me queria por perto. Mas ela queria. Peregrina me queria e agora mesmo é que eu não ia desistir.

— Você não vai peregrinar em parte alguma. Vai ficar aqui.

— Ian...

— Não é justo para mim. Você faz parte desta comunidade e não vai ser excluída antes de uma discussão. Você é importante demais para todos nós... mesmo para aqueles que jamais admitiriam isso. Precisamos de você.

— Ninguém está me excluindo, Ian.

— Não, nem sequer você mesma, Peregrina.

Finalmente, ela tinha aprendido a pensar um pouco em si. Não, não era justo mesmo, como ela disse. Com nenhum de nós dois. Só que eu não ia ficar parado esperando o altruísmo dela reaparecer e pôr tudo a perder.

Beijei-a novamente. Uma última confirmação de que a vontade dela permanecia em mim.

— Bom ou ruim?

— Bom.

— Foi o que pensei.

Um novo beijo selou minha resolução. Meu corpo todo ardia junto ao dela e eu sentia a lava se solidificando na mais firme das certezas: eu não a perderia.

— Vamos.

— Aonde?

— Não me crie problemas quanto a isso, Peregrina. Eu já estou um pouco fora de mim.

Levantei e prossegui, dando-lhe instruções para que me esperasse na sala de jogos, surdo a qualquer argumento contrário.

— Eu estou convocando um tribunal.


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