Qualquer pessoa no mundo diria que eu deveria estar feliz, mas, curiosamente, eu não estava. Os dias que se seguiram ao despertar de Peg foram, no mínimo... peculiares. Para não dizer estranhos.

Eu me sentia preso num limbo entre a felicidade plena e a frustração absoluta. “Mas não é assim mesmo a vida?”, os mais filosóficos poderiam questionar. Eu, como não era nada filosófico, esperava sinceramente que não. Quando minha mente já havia se preparado para viver num mundo muito mais simples, onde a mulher que eu amava tinha um corpo que não precisava dividir com ninguém, e onde eu finalmente poderia ter meu amor correspondido, eu me via dividindo Peg entre Mel e Sol.

Eu amava aquele novo corpo, o corpo de Sol. E amava Peg mais do que tudo na vida, mas o comportamento dela estava me desconcertando num momento em que eu achava que não teria mais que lidar com tais estranhezas. Claro, eu sabia que era ingenuidade da minha parte achar que Peg não estaria confusa em seu novo corpo. Mas uma parte cada vez maior de mim, queria que isso passasse logo. Tudo bem, eu estava sendo egoísta. Peg não tinha tido muito tempo para lidar com tudo isso. Por outro lado, ela já tinha passado por algo assim nove vezes antes desta. Será que não ficava mais fácil? Será que ela não poderia tornar isso mais fácil para mim? Egoísta, eu sei! Mas eu não era nenhuma Alma.

Mel compartilhava de minha frustração e isso nos aproximava cada vez mais. Por isso eram os olhos dela que eu procurava com cada vez mais frequência do que os olhos fugidios de Peg, que nunca sustentavam meus olhares. Não, eu não amava Mel, não como eu amava Peg, pelo menos. Disso eu tinha certeza. Mas era ela que estava sempre ao meu lado. Peg fugia de mim, por mais que eu a desejasse por perto. Nós ficávamos juntos, mas ela parecia sempre desconfortável ao meu lado. E quanto mais perto Melanie estava, mais para longe Peg se afastava.

Ela até tentava parecer feliz quando Mel e eu estávamos com ela, mas procurava fugir assim que tinha oportunidade. Por outro lado, quando Jared estava por perto, eu via os olhos deles se encontrando com questionamentos estranhos. As arestas desse quadrado estavam começando a ficar definidas demais para o meu gosto. E as atitudes de Peg só me deixavam mais confuso e frustrado.

Foi Jamie quem matou a charada quando me ouviu me queixando para Melanie:

— Olha, não briguem comigo quando eu disser isso, mas vocês são burros ou o quê?

— Como é que é, Jamie? – exaltou-se Mel.

— Está querendo ficar sem lugar para dormir, moleque? – completei, fazendo uma ameaça que não iria cumprir.

— Eu não ligo. Posso arrumar outro lugar para dormir. Era o que eu deveria estar fazendo, aliás. O que você precisa fazer é tirar Peg daquele hospital e mostrar para ela que o lugar dela é com você!

— Como se fosse fácil assim! Ela deixou muito claro que quer ficar lá com Doc para não atrapalhar ninguém e todas aquelas baboseiras de Peg que você conhece. Parece que ela não me quer mais por perto.

— E eu que achei que você conhecesse melhor do que qualquer um as “baboseiras de Peg” – disse Jamie, fazendo aspas com os dedos e engrossando a voz para me imitar.

— Você vai querer dizer que a entende melhor do que nós? Melhor do que eu que já estive no mesmo corpo que ela? – disse Mel, desafiando o irmão que, neste instante, adotava a mesma postura que ela.

— Pois para alguém que já esteve na mente dela, você não aprendeu muito enquanto esteve lá. Deve ter ficado tempo demais dormindo!

— Ei! Você está pensando que eu vou deixar você falar assim comigo?

— Desculpe, Mel – disse Jamie, se acalmando um pouco. – Mas eu fico louco da vida de ver como vocês quatro estão tão cegos de ciúme que não sabem resolver a enrascada em que se meteram!

— Como assim? – perguntei, com vergonha de que fosse Jamie a nos chamar a atenção para o óbvio.

— Será que vocês não perceberam que Peg está tentando ficar fora do caminho de vocês? Ela acha que o Ian está apaixonado por você, Mel!

— Quê? Mas por que ela pensaria isso?

— Ai, caramba! Sério mesmo que vocês não percebem essas coisas? Quando vocês estão na frente dela, parecem tão íntimos e ficam conversando como se ela não estivesse ali. Como os idiotas dos adultos fazem quando conversam em frente a uma criança. Dica pra vocês: Peg só parece criança, mas não é! E mesmo que fosse, ela tem olhos. E ouvidos também!

— Então, já que você está dando uma de conselheiro sentimental, mais uma para a coluna “Pergunte ao Jamie”... — provoquei.

— Manda! – falou o moleque com o maior ar de arrogância.

— E Jared? Como ele fica nessa história? Já que você é tão perspicaz, deve ter percebido como Peg se sentia em relação a ele.

— Mas é claro que sim! Ela está se acostumando a não amá-lo mais. Boa parte do amor que ela sentia por ele era por causa da Mel, mas o coração dela ainda está só começando a entender isso. Do mesmo jeito que vocês se tornaram importantes um para o outro, Peg e Jared também se sentem assim um em relação ao outro.

— Faz sentido, Ian. Nós já conversamos sobre isso – lembrou Mel, fascinada pela recém-descoberta “sabedoria” de Jamie. – Eu sei que Jared deve sentir muitos ciúmes de nós também. Assim como sentimos dele com Peg.

— Bom, Jared também está com ciúmes, mas ele é seguro de si. E orgulhoso, você sabe. Mas ele sabe que você não está apaixonada pelo Ian e é isso que importa para ele. Talvez ele não tenha muita certeza do que Ian sente por você, mas sabe que ele ama Peg. O que acontece é que Jared sente culpa por não ter cuidado de vocês duas quando chegaram aqui, como Ian acabou fazendo. Então ele se sente forçado a aceitar essa amizade de vocês.

— É, parece bem algo que o Jared pensaria.

— Não é? Ele faz isso por você, Mel. Porque ele acha que a amizade com Ian te ajuda a se adaptar a este lugar e a lidar com o fato de que você e Peg estão separadas agora.

— Como é que você percebe essas coisas todas? – perguntou Mel, surpresa e orgulhosa.

— Olhos e ouvidos, maninha. Eu conheço você e Jared melhor do que tudo. Vocês são minha família. E Peg também. Além disso, Ian é meu amigo e é transparente como água limpa. Para todo mundo, menos para Peg. Mas vamos dar um descontinho para ela, né? Ela ainda não entende muito dessas coisas de amores humanos.

— E você entende muito, pelo jeito, guru Jamie? – perguntei, brincando para disfarçar minha surpresa com a perspicácia do garoto e a vergonha que eu estava sentindo de nossa ignorância.

— É como eu disse, Ian, olhos e ouvidos. Quando vocês acham que eu não estou entendendo nada, estou sacando tudo melhor que vocês!

— Minha nossa! E quando foi que você cresceu tanto e se tornou esse homenzinho tão sagaz? – perguntou Mel enquanto abraçava o irmão e beijava o rosto dele.

— Ah, credo, Mel! Para com isso! Que beijo melado! Eca! – Jamie respondeu se soltando. – “Pergunte ao Jamie” está encerrado por hoje. Pode deixar que logo, logo tiro vocês dessa encrenca! – disse ele enquanto voava pelo corredor deixando-nos boquiabertos e sem ação.