Coletânea escrita por Luana Santiago


Capítulo 8
Sexto


Notas iniciais do capítulo

Aposto que vocês perderam as esperanças com a Coletânea, né? Para ser sincera, eu também perdi. Foi por pouco - muito pouco - que não a excluí e desisti. Acreditem, eu tentei escrever, mas as palavras certas, as palavras que eu queria, não saíam.
E então eu pensei: é melhor deixá-la lá, quieta. Quem sabe a inspiração volta e - milagrosamente - eu a escrevo decentemente? Ufa! Ainda bem que eu tenho um lado sensato dentro desta cachola confusa!
De qualquer forma, não acho que vocês vão querer me matar pelos meses que fiquei sem vir aqui, mas sim pelo o quê escrevi desta vez.
Bom capítulo! :)



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O triunfo de um vitorioso

– Oh, ótimo – diz com acidez. Sua voz é um sibilo e sua aparência cadavérica quase me faz pular de susto. Haymitch se parece com uma criança pobre da Costura de anos atrás. – Eu ainda tinha esperanças de não ver a sua linda cara nos meus últimos momentos, queridinha.

– É isso aí – dou de ombros. Coloco minha bolsa na ponta de sua cama, tirando dela uma garrafa de bebida. É imprudente estar dando isto para ele, mas, se Haymitch vai morrer, que morra feliz ao lado de sua mais fiel amiga. – Mas eu não dou a mínima para o seu último pedido, velho maldito.

Eu já deveria estar acostumada com o desprezo – ou seria indiferença? – dele em relação à mim. No entanto, foi inevitável não ficar abalada quando Peeta me comunicou que o último desejo de Haymitch era não me ver.

– Você também não está tão diferente de mim, docinho – replica. É verdade, não sou uma adolescente há muito tempo. Ambos temos cabelos brancos, ele mais do que eu. Muitas vezes pela manhã, quando sou obrigada a encarar meu reflexo, ainda não acredito que aquela mulher incrivelmente parecida com minha mãe sou eu. Além disso, também é difícil aceitar que, algum dia, liderei uma revolução que mudou os rumos deste país e, finalmente, que constituí uma família que não estava nos meus planos.

– Isto é realmente o fim, não é? – divaga. Até então, não estava prestando muita atenção, pois nenhum de nós teve coragem de quebrar o silêncio incômodo instalado aqui.

– O quê?

– Primeiro o garoto chega aqui com as crianças... – Haymitch dá uma risada amarga - ...e agora você aparece. Vocês devem estar comemorando!

Me recuso a respondê-lo, mas o fuzilo com o olhar. Ele gargalha ainda mais alto e considero se devo chamar a enfermeira para colocá-lo para dormir. Não seria uma má ideia.

– Por quê?

– O quê? – levanta as sobrancelhas.

– Por que você disse aquilo? – cerro os punhos, evitando olhar em sua cara.

– Está magoada, queridinha? – zomba. Mais uma vez, o ignoro. Leva algum tempo até ele suspirar pesadamente e prosseguir – Você não acha que já lidou com muitas mortes em sua vida, Katniss?

– Eu posso lidar com mais algumas.

– Pode mesmo? – há algo subentendido na típica ironia de Haymitch, algo que ele não dirá em voz alta, mas espera que eu perceba por conta própria. Não é muito difícil adivinhar o que ele planejava ao pedir uma coisa tão absurda para meu marido: Haymitch queria me poupar.

– Você não vai morrer, Haymitch – determino. – Você ainda tem ordens para cuidar de mim. Eu sou sua responsabilidade. – E não é mentira. O homem ficou encarregado de tomar conta de mim após a guerra, apesar de pouco aparecer nos primeiros anos.

– Eu não preciso da sua permissão para morrer – retruca, sustentando um sorriso de escárnio. – Aliás, vivemos em uma nação livre agora.

Sua observação me faz tremer dos pés à cabeça, pois remete aos tempos em que éramos controlados pela Capital de Snow, onde sequer tínhamos direito de morrer. É um alívio para nós, os vitoriosos, saber que podemos descansar em paz sem que ninguém seja punido por isso.

– Eu sabia que iria ser difícil te convencer, garota.

– Você não vai conseguir, Haymitch – confirmo. Ele espera que eu desista, mas não vou. Somos da pior espécie possível: somos teimosos. Por isso, continuaremos com esta discussão até que um dos lados vença.

– Eu teria morrido antes, você sabe.

– O que está tentando dizer? – franzo o cenho.

– Nos Jogos – murmura simplesmente. Às vezes pego-me pensando como ele. Se tivéssemos nos entregado nos Jogos, teríamos evitado muito sofrimento que fora vão. É um pensamento egoísta, porém, após tudo o que enfrentamos, acho que temos o direito que sermos mesquinhos.

– E então nada teria sido o mesmo.

– Você acredita nisso? - revira os olhos, deixando o marasmo transparecer. Fico em silêncio, pois sei que ele representa uma confirmação.

– Você sabe que isto é o que mais queremos, Katniss.

Eu sei do que está falando: quando se participa dos Jogos Vorazes, você passa a almejar a morte mais do que qualquer outra coisa. É como a dádiva de um patrocinador, é algo que você precisa ter.

Não entendo plenamente a dor de Haymitch e raríssimas foram as vezes em que tocamos nesse assunto. Entretanto, não arrisco compará-la ao meu próprio sofrimento, pois, até onde sei, ele perdeu a família inteira de uma só vez; eu tive a chance de ter a minha por mais algum tempo. E, mesmo depois de assisti-la se dissipar, construí outra.

Haymitch e eu somos parecidos em muitos pontos, menos neste: enquanto fui forte o suficiente para continuar, meu velho mentor estagnou no tempo, entregando-se integralmente ao luto.

– Peeta discordaria – digo.

– Mas você não.

Hesito por algum tempo, sentindo a intensidade dos olhos cinza-tempestade sobre mim.

– Tem razão – dou de ombros – A morte é o único alívio duradouro que podemos conseguir, sim.

– Por que está sendo tão egoísta, então?

Apenas Haymitch é capaz disto, pois sua mente funciona exatamente como a minha. Embora eu não aceite sua decisão de recusar o tratamento na Capital, o maldito tem um ponto.

Pisco os olhos algumas vezes, espantando as lágrimas que estão prestes a cair. Não faz sentido – ou sequer vale a pena – chorar por algo que não irá se concretizar. Eu sou uma teimosa genuína, porém, estava certa em todas as vezes que insisti.

– Esta é a primeira vez que temos uma conversa decente – digo. Fico na dúvida se as próximas palavras de Haymitch são reais, mas elas ficam gravadas na minha cabeça mesmo assim:

– E será a última.

– Não seja ridículo, Haymitch – rosno. Esta é a terceira vez que nos dá um susto desses, por isso, não levo sua despedida melancólica em consideração. É questão de tempo até ele estar fora daqui, derramando todo aquele veneno para dentro do corpo e nos arrumando mais problemas.

– Não engane a si mesma, Katniss.

Todavia, eu o fiz. Eu sempre cometo o mesmo erro e, mesmo sendo alertada por aqueles que me cercam, repito-os. Foi assim com Prim, com minha mãe, com Gale. Ainda há um resquício de esperança que acredita que eu não vá fazer a mesma coisa com os meus filhos, porém, Haymitch está certo.

Estou enganando a mim mesma.

Eu não sabia que aquelas seriam as últimas palavras dele. E, mesmo que soubesse, nada teria mudado: nós já sabíamos que ele não escaparia da morte desta vez. Ainda assim, o efeito que sua partida teve sobre mim foi muito mais forte do que eu imaginava.

Haymitch?

Posso ser uma completa leiga quando se trata de hospitais, mas os frequentei por tempo o suficiente para saber o que significa a única nota estável que deveria estar sincronizada com as batidas do coração:

Significa que ele está parado.

– Haymitch? – Tento outra vez, mais por descrença do que por qualquer outra coisa. Alcanço sua mão e, sem surpresa, ela está gelada e rígida. Se antes eu tinha dúvidas de que ele estava morto, agora não tenho mais.

Eu queria ter um pouco menos de experiência com cadáveres.

Um déjà vu inesperado acontece e, mais uma vez, sou a criança desnorteada e machucada de onze anos que acaba de perder um pai. Não é a mesma situação, mas a intensidade e quantidade de dor são as mesmas. Assim como aquela garotinha órfã fez, irrompo em um choro descontrolado e miserável.

O sofrimento colossal é a prova daquilo que eu nunca admitiria para meu antigo mentor: que ele significava muito mais para mim que do que esperávamos. Apesar de lamentar ter percebido isto tarde demais, não acho que Haymitch fosse gostar de ouvir esse tipo de declaração sentimental que - convenhamos - nunca se encaixou em nossa relação.

No auge da incoerência, tenho certeza de apenas uma coisa:

A partir de hoje a Campina terá uma alma a mais.


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Notas finais do capítulo

Para situar vocês: Katniss está com seus 40 e poucos anos e já tem os dois filhos há um bom tempo. Ah, e o Haymitch, no caso, morreu de cirrose - porque o fígado dele não é de ferro.
Eu não gostei tanto deste capítulo quanto gostei dos anteriores, mas... É menos pior do que todos os outros incompletos que estão escondidos aqui. Acho que é a primeira vez que posto alguma coisa sem gostar totalmente dela.
Podem me xingar bastante nos comentários desta vez, acho que vocês estão no direito. Só, por favor, não xinguem a minha mãe.
Ah, como eu senti saudades disto aqui!