Coletânea escrita por Luana Santiago


Capítulo 6
Quinto - Parte 2


Notas iniciais do capítulo

É, as coisas andam complicadas para mim nos últimos meses. Felizmente, com minha ligeira melhora e as palavras de apoio de muitos de vocês, um fogo surgiu dentro de mim e - mesmo burlando algumas recomendações... - comecei a escrever loucamente para vocês! Saibam que, na minha opinião, este não é o melhor capítulo, mas tentei manter - como sempre - a fidelidade aos personagens (Apesar de achar que a Katniss ficou um pouco Mary Sue demais...)

Ah, e me perdoem por qualquer erro de português (Só tive oportunidade de escrever, mas não de revisar) e, se vocês verem alguma coisa, por favor, avisem e eu virei aqui editar, sim?

Enfim, divirtam-se!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/232641/chapter/6

O passado da caçadora – Parte 2

Queria ter preparado uma reação melhor para quando visse Gale novamente, mas nunca considerei que ele voltaria ao Distrito 12. Não depois de tudo que aconteceu.

É claro que – apesar de ter pensado muito nele nos últimos dias – eu não estava pronta para revê-lo. Por isso, não pude evitar quando meu arco e minha flecha escorregaram para o chão e minha boca se escancarou, deixando claro meu estado de choque.

Parte da minha mente registrou o sorriso convencido que ele deu quando reparou na minha surpresa, mas a grande parte ainda estava ocupada em assimilar que ele estava realmente ali. 

O que exatamente eu devo dizer? Não posso mentir e me jogar em seus braços, agindo como qualquer melhor amiga normal agiria. Todavia, também não posso expor minhas mágoas assim, tão facilmente. Isto só faria Gale se sentir ainda mais superior e ele logo suporia que conseguiu amadurecer e eu – a estúpida amiga que ele abandonou – continuo a mesma.

Isso seria humilhante. 

- O que você está fazendo aqui? - Sussurro atônita.

Gale dá passos rápidos em minha direção e – felizmente – não tenta me tocar. Ele abaixa para pegar as armas que joguei na relva e as guarda consigo. Imagino se – ironicamente – ele teria medo que eu explodisse e tentasse matá-lo.

É uma possibilidade. Uma boa opção, na verdade. 

- Eu tenho uma família aqui, lembra? - Murmura calmamente, parado há menos de um metro de mim.

- Eu sei – Franzo o cenho e tento dar um sorriso. A verdade é que esqueci completamente da existência dos outros Hawthorne – O que você está fazendo aqui na floresta? - Dou ênfase na última palavra para esclarecer o mal entendido.

- Desde quando você é tão possessiva com a floresta, Catnip? - Pergunta zombeteiro.

- Eu não sou – Recuo um passo, ainda na defensiva – Só não esperava um... - Hesito, procurando a forma certa de classificá-lo – Visitante?

- Ah, claro! - Dá de ombros e ri brevemente.

Gale ainda é como eu me lembro. No entanto, o tempo também não o deixou para trás. Ele parece mais forte e sua postura é mais imponente, como a de um soldado. Pergunto-me se é isto que ele está fazendo no 2: Servindo o novo exército.

Bom, eu não me surpreenderia. Posso até arriscar dizer que ele está ligeiramente parecido com Boggs. 

Tento não pensar em meu antigo comandante e na forma trágica e horrenda que morreu. Infelizmente, meus pensamentos já estão escapando para os dias escuros.

- Você mudou – Confessa. Seus olhos cinzentos descem por meu corpo, mas não da maneira que você está imaginando. Ele está me analisando.

- Isto é ruim? - Rebato rispidamente.

- Não – Explica deslocado e seu olhar afetado finalmente para no meu rosto – Eu só não esperava que você estivesse tão...

- Mulher? - Completo em seu lugar – Hazelle disse a mesma coisa.

Gale dá um sorriso contido e acena com a cabeça. Meu rosto se contrai em uma careta e faço uma ligeira autoanálise, tentando enxergar o que os outros veem de tão extraordinário e diferente em mim. Exceto o cabelo atipicamente solto, não há nada fora do normal aqui.

Recordo-me da célebre frase que Peeta sempre faz questão de repetir para mim, algo que comentou ainda nos primeiros Jogos: “Você não faz ideia do efeito que causa.”

Será mesmo? Afinal, ele é suspeito para falar qualquer coisa sobre mim.

- Você também está diferente – Acrescento indiferente, estendendo a mão para pegar minhas coisas de volta.

Gale é inteligente. Tenho certeza que ele entende que não há como criar uma conversa entre nós, principalmente quando o silêncio está claramente pesado, lembrando-nos – entrelinhas – dos assuntos mal resolvidos que decidimos ignorar.

Nossa amizade nunca mais será como era antes. Esta é a primeira vez que sinto como se estivesse ao redor de um estranho e não de Gale – que conheci por tempo o suficiente para confiar a ele o bem estar da minha família.

- Esta não é a recepção que eu esperava – Comenta quando entrega meu arco.

- O que você esperava?

- Bom – E, inesperadamente, atira uma pedra em uma árvore próxima, agitando os pássaros escondidos. Demoro algum tempo para perceber o que está fazendo, mas não decepciono quando a ave mais lenta não escapa da minha flecha. - Eu esperava que você ficasse furiosa – Explica após uma rodada de sorrisos satisfeitos de ambas as partes.

- Furiosa? - Não controlo o riso com a expressão temerosa de Gale.

- Você sempre foi meio instável, Katniss.

Não culpo Gale por achar isto de mim. Ele não está mentindo. Sempre fui meio difícil de lidar, pelo menos é o que dizem Peeta e Haymitch – o tempo todo, devo acrescentar. É engraçado vê-los reclamar das minhas mudanças de humor, mas ás vezes tenho vontade de chutá-los pelo exagero.

- Eu sei – Escondo um sorriso, lembrando da última vez que tive um ataque de raiva perto dos dois.

- Sabe? - Gale arregala os olhos, pasmo com a minha complacência.

- Sei, sim – Ajeito o arco no ombro e continuo minha caminhada, sem esperar que Gale me siga. É claro que ele continua no meu enlaço, provavelmente matando as saudades que sentiu deste lugar.

- O que aconteceu com você, Katniss? - Ouço seu sussurro atrás de mim, mas não tenho certeza se tenho que respondê-lo.

Não sei exatamente como isto aconteceu, mas acabamos voltando aos velhos tempo, agindo quase da mesma forma que costumávamos agir antes do nome de Prim ser sorteado na Colheita.

É claro que não somos os mesmos, mas ainda temos o mesmo espírito destemido de antes: A única coisa que sei nunca irá morrer. Não é uma sensação que eu conseguiria com Peeta. O sentimento genuíno de rebeldia, a faísca inicial que acabou com a Panem de Snow começou aqui, nesta floresta, ao lado de Gale.

- Então... - Raspo a ponta de uma flecha em uma pedra, afiando-a. Entrego-a para Gale, que ainda se lembra como se atira com um arco – Você é um comandante no Distrito 2? Meus sinceros parabéns, combina com você.

Gale vira-se para mim por alguns instantes, tentando identificar mágoa ou cinismo na minha voz. Não há nada.

- Obrigado – E ele atira, acertando um esquilo. É imprudente matarmos sem limites como estamos fazendo, mais por diversão do que por qualquer outro motivo. Nossas famílias não passam mais fome e temos dinheiro o suficiente para ostentar luxos dignos de moradores da Capital.

- Então – Senta em uma pedra e seus intensos orbes pousam em mim. Não tenho tempo para pará-lo, pois ele está fazendo as perguntas que imaginava que não teria coragem de fazer. - Agora você é uma mulher casada? Isto continua meio estranho para mim.

Mais cedo ou mais tarde chegaríamos nesta pauta, não é mesmo? 

- É – Suspiro profundamente e estico os braços – Meio difícil de acreditar, não?

Gale deve se lembrar das minhas queixas sobre casamento e filhos, a minha opinião sobre o assunto não mudou sobre crianças, mas Peeta me convenceu sobre a primeira parte. Não é tão ruim quanto eu imaginava. 

Aliais, não é nada ruim. Além do meu sobrenome e a aliança que tenho que usar quando Plutarch manda alguma equipe de televisão atrás de nós, nada mais mudou. Peeta e eu já morávamos juntos quando decidimos oficializar a união e – finalmente – torrar os pães que nos declarariam marido e mulher.

- Achei que não quisesse nada disso – Raspa os dedos no cabelo e desvia o olhar. Diferente de mim, Gale ainda guarda mágoa por eu ter escolhido outro ao invés dele.

- É diferente agora – Mordo os lábios, um pouco nervosa com o rumo do assunto.

- O que é diferente, Katniss? - Ele se levanta, alterado. Não há chance no mundo de eu sentir medo de Gale, conheço-o muito bem para saber que é apenas uma irritação momentânea – E se fôssemos nós dois?

- Sério, Gale? - Replico entediada – Estamos um pouco atrasados para esta conversa. Cinco anos atrasados, mais precisamente.

Sua expressão fica ainda mais enlouquecida com meu tom sarcástico. Não é um hábito meu, foi algo que adquiri após conviver anos com meu velho mentor. 

- Se a Capital não tivesse... - Torna a falar, mas corto-o friamente.

- Se o quê Gale? - Aumento minha voz, beirando aos gritos – Se eu não tivesse ido para os Jogos? Bom, eu estive lá! Duas malditas vezes! - Trinco os dentes, recordando-me com clareza das duas arenas e tudo que sofri lá dentro. Mesmo tendo participado da guerra, ele nunca entenderá o que é estar nos Jogos.

- Me apaixonar por Peeta foi uma consequência disto tudo, eu sei disso! - Suspiro, tendo que concordar que, se eu não tivesse me voluntariado no lugar da minha irmã, eu estaria com o caçador a minha frente e não com o doce garoto louro que me espera em casa – Mas tudo o que eu precisava fazer era parecer estar apaixonada por ele, ninguém me forçou à amá-lo de verdade!

- Esta é a questão, Katniss! - Grita e suas mãos se fecham em punhos – Você não teria sequer falado com ele se não tivesse ido para os Jogos!

- O que você queria?! - Resolvo levantar para sustentar a discussão. Fico cara a cara com Gale, por mais que ele seja muitos centímetros mais alto do que eu – Que eu deixasse minha irmã morrer?! No fim, Gale, estar apaixonada por você não fez diferença nenhuma! Eu já amava Peeta!

- Você está com ele porque não consegue viver sem ele! - Declara.

- Não – Abaixo a voz, não vendo sentido em continuar gritando – Estou com ele porque descobri a tempo que o amava mais do que jamais amei você.

Não sinto pena quando assisto Gale recuar como se tivesse levado um tapa na cara. Fui um pouco dura, mas só assim eu o faria desistir. Meu amigo merece esta explicação, é assim que ele conseguirá seguir em frente e esquecer a caçadora rebelde pela qual se apaixonou. Ambos sabemos que ela está aqui, adormecida em algum canto do meu coração, mas verdadeira Katniss nunca quis viver disto, de rebeldia, de fogo.

Ele pisca algumas vezes antes de desabar sentado novamente, com um sorriso amargurado enfincado no rosto rígido.

- Eu estou feliz agora, Gale – Sussurro e caio de joelhos ao seu lado, repousando uma mão em seu ombro. Este é um novo lado meu, que cresceu após a convivência com Peeta, que esbanja compaixão e humanidade. Sentimentos que imaginava que estavam perdidos em mim para sempre.

- Você está? - Pergunta tristemente, deslizando carinhosamente o polegar no meu rosto.

- Muito feliz – Ratifico com um sorriso modesto – Eu estou quase curada.

Se eu não fosse uma adulta agora, eu nunca teria entendido o que está acontecendo aqui. Eu também nunca teria tomado a iniciativa de consolar Gale por um sofrimento que eu mesma causei. Ainda é novo para mim ser benevolente desta forma, mas faz parte do meu próprio amadurecimento.

Quando a tempestade passou e eu finalmente resolvi que estava na hora de voltar a viver, mal tinha notado que minha maneira de pensar havia mudado. Uma série de fatos contribuíram para esta notável mudança: Peeta, Haymitch, Gale, a responsabilidade de ser o Tordo, a morte de Cinna, Boggs, Finnick e Prim, o abandono da minha mãe e todas as outras coisas que nunca deveriam ter acontecido comigo – apenas uma pobre alma faminta da Costura – me mudaram por completo. No fim, eu só queria seguir para um rumo diferente de toda a crueldade que presenciei.

Sinceramente? Cinco anos não é tempo o suficiente, reconheço que ainda estou no meio do processo.

É por isso que – se a antiga Katniss pudesse ver o que estou fazendo agora – ela gritaria e xingaria, mas não há nada de errado em oferecer um ombro amigo para Gale. Não há nada de errado em demonstrar compaixão por alguém, principalmente se você amou esta pessoa algum dia.

Não posso fazer este tipo de promessa, mas, se pudesse, prometeria nunca mais cometer os erros que as pessoas cometeram comigo. Que cometi comigo mesma. 

- Você está realmente diferente, Catnip – Gale murmura mais uma vez.

Eventualmente, entretanto, cansaríamos de sentimentalismo e voltaríamos para o mundo real. Não demorou muito para percebemos a situação constrangedora em que nos enfiamos e eu ainda não sou uma grande apreciadora de demonstração de afeto. 

Gale também não tocou mais no assunto nós. Fico feliz em saber que ele respeita minha decisão. Foi até engraçado vê-lo perguntar sobre Peeta.

- E... - Enfia algumas amoras que encontramos ocasionalmente na boca – Ele não tenta mais te matar?

Reviro os olhos, achando a pergunta pessoal demais. Gale é a última pessoa do mundo que precisa saber sobre o que acontece no meu relacionamento com Peeta.

- Não – Digo – Ele é exatamente o mesmo de antes.

Omiti a parte que – esporadicamente – meu marido me pede para fugir para a floresta porque talvez possa ter vontade de me matar. Como eu disse antes, Gale não precisa saber de tudo.

- E quando vocês terão filhos?

Engasgo com a pergunta, mas disfarço e finjo ter criado problemas com as pequenas frutas.

- Nunca – Anuncio com frieza.

- Ah, Catnip! - Gale ri alto, agitando a fauna que nos cerca – Você não mudou nada!

- Eu disse que não tinha mudado – Cruzo os braços e bufo. É normal que eu fique assim quando o assunto crianças vem à tona. Peeta ainda não pediu nada, ele também concorda que estamos muito novos, mas sei que começará a pedir por filhos em alguns anos.

Por enquanto, só o velho bêbado e enfadonho me aporrinha com esses temas inúteis e indiscutíveis. Claro! Porque Haymitch precisa de algo que me faça ficar brava, é o seu passatempo predileto. 

- Você deveria passar lá em casa se for ficar por mais tempo – Faço o convite, incerta de como Peeta reagiria se encontrasse Gale comigo. - Você pode levar sua mãe e as crianças também.

Certo – penso – Assim Peeta não se incomodaria tanto. 

- Seu marido não se incomodaria? - Arqueia a sobrancelha, divertindo-se às minhas custas quando lanço-lhe um olhar mortífero com a palavra marido. 

- Acho que não – Franzo o cenho, tentando prever a possível reação de Peeta – Você sabe que ele não faz esse tipo.

- Bom, é o que veremos – Gale provoca.

[…]

- Katniss! - Meu mentor abre a porta com um sorriso atípico. Não é preciso ser muito inteligente para notar que é uma recepção falsa e forçada, quase posso ouvi-lo gritar para que eu suma da sua frente. 

- Quero conversar – Levanto as mãos, sinalizando rendição. Se estou o procurando, significa que estou com problemas. E ele sabe disto. Peeta e eu sempre corremos para cá após uma briga.

- Claro! - Abre espaço para que eu entre e me segue em silêncio até o sofá. - Eu estava prestes a ter meu chá da tarde, quer me acompanhar?

Cerro os olhos quando vejo o que Haymitch está me oferecendo: Uma garrafa de conhaque e um copo estão sobre a mesa de centro. Ah, claro – penso com asco e reviro os olhos – Isto é o chá da tarde. 

- E então? - Ele se acomoda no sofá e leva o líquido a boca. - Que drama você quer que eu resolva hoje, queridinha?

Eu não chamaria isto de drama. Na verdade, não é nada demais. Só estou um pouco confusa e perdida nesta situação improvável, precisando de alguém que não seja Peeta para me ajudar e Haymitch é perfeito para isto, já que – geralmente – segue a mesma linha de raciocínio que eu.

Respiro fundo e conto quem encontrei na floresta hoje. Menciono a breve discussão que tivemos e também comento sobre a carta que recebi há alguns dias. Os olhos cinzas de Haymitch se arregalam, ele também está surpreso com a súbita aparição de Gale.

Após um tempo refletindo, os perigosos olhos voltam-se para mim e ele diz:

- Então – Respira fundo e continua – Você está me dizendo que convidou o caçador bonitão para jantar com vocês? E que Peeta ainda não sabe disso?

- Sim – Franzo o cenho, imaginando aonde ele quer chegar – É o que estou dizendo.

Pouco antes de eu terminar a frase, Haymitch tem um forte ataque de riso. Ele não parece se importar quando um pouco da sua bebida derrama sobre sua roupa. Não é natural vê-lo rir tanto e tão espontaneamente, ele só o faz quando eu faço algo tão estúpido e absurdo, que acaba por diverti-lo.

- Ótimo! - Fecho a cara e cruzo os braços, ficando incomodada com seu exagero. Não há nada de errado no que eu fiz, certo? - Já chega!

O homem limpa algumas lágrimas nos cantos dos olhos e, subitamente, sua expressão fica drasticamente séria e afetada, como se ele dominado pelo cólera. 

- O que você tem na cabeça, Katniss? - Suas narinas inflam e suas palavras são afiadas, ditas entredentes – As pancadas que você levou afetaram seu bom senso?

- Discutir sobre bom senso não é um campo seguro para você, Haymitch – Replico presunçosamente, arqueando uma sobrancelha. 

Ele me ignora e continua com seus insultos:

- Eu sempre duvidei da sua inteligência, mas... - Apoia o queixo em uma das mãos e dá uma risada inesperada – Você é mais burra do que eu imaginava!

- Obrigado – Murmuro.

- Você quer que o garoto tenha um colapso?! - Ele pergunta.

- Por que Peeta teria um colapso? - Rebato um pouco ofendida. Eu nunca faria nada que fosse fazer Peeta ficar pior, você não faz isso com as pessoas que ama. Aliais, por que diabos ele teria um ataque com a presença de Gale?

- Eu não sei! - Ele sorri falsamente e esfrega as têmporas – Talvez porque ele foi telessequestrado? Já pensou que Peeta pode achar que você é uma bestante maluca e mentirosa e que Gale está aqui para te ajudar a matá-lo?

Mesmo com uma explicação clara e objetiva, eu ainda não entendo o ponto de vista de Haymitch. No início, quando Peeta ainda agia estranhamente e ficava claramente desconfortável com a minha presença como se eu fosse uma ameaça, eu realmente o temia.

Os anos passaram e embora Peeta ainda esteja fazendo seu tratamento com o Dr. Aurelius, ele ainda tem episódios. São raros, acontecem pelo menos cinco vezes em um ano e nunca são mais que suas mãos agarrando-se nas costas de uma cadeira ou uma súplica inaudível para que eu corra para a floresta. Ele é quase o mesmo garoto com o pão com o qual convivi por pouco tempo.

Ele é quase o meu Peeta. 

- Você está sendo absurdo – Digo – Peeta não é mais assim.

- Como você sabe? - O homem rebate com humor na voz, me desafiando discretamente – Quando foi a última vez que ele tentou te matar mesmo? - Finge pensar, mas ambos sabemos a resposta. Ainda está fresca em nossa memória.

- Há um mês atrás – Encolho os ombros e sussurro, pensando em uma forma de defender seu lado – Mas ele só está cumprindo a cota de episódios dele – Dou de ombros, levando na esportiva.

- Agora isso é normal? - Haymitch arregala os olhos e ri.

- Desde quando você se preocupa tanto comigo? - Respondo com outra pergunta, sustentando sua expressão orgulhosa com os olhos semicerrados.

- Eu não ligo para você – Gesticula com desprezo – Eu me preocupo com o garoto. Você sabe como ele ficaria mal se algo ruim acontecesse. Bem, estou apenas cumprindo nosso trato.

Nosso trato – penso – que foi quebrado por ele apenas uma vez, por um bem maior.

Proteger Peeta: O acordo que fizemos antes do Massacre Quaternário. E ele ainda está de pé; Nós dois concordamos que, no geral, Peeta é o que tem mais motivos para sentir raiva por tudo o que lhe aconteceu. É claro que é um pouco ridículo comparar as dores, mas, no final, ele foi quem perdeu tudo, inclusive a própria identidade.

Uma vez comentei sobre este pacto com ele e isto o fez revirar os olhos. Ele também reclamou e disse que estávamos sendo ridículos e que sabia muito bem se cuidar sozinho. Finalmente, Peeta envolveu seus fortes braços em minha cintura e sussurrou com sua voz amável:

“Eu não perdi tudo, Katniss. Eu ainda tenho você.”

Sorrio com a lembrança e Haymitch passa a mão em frente aos meus olhos, checando se ainda estou prestando atenção. Pisco atônita e volto-me para ele:

- O quê?!

- Eu realmente não quero saber o que está te fazendo sorrir – O alcoólatra faz uma careta – Imagino o que deve ser, a julgar pela sua cara.

- Não é o que está pensando – Corto-o rapidamente antes que ele comece a rodada de piadinhas maldosas.

- Não me interessa – Dá de ombros. Passamos os próximos minutos discutindo sobre como eu deveria falar com Peeta sobre o assunto. Haymitch mal ajuda, ele só espera que a boa nova não mate meu marido do coração. Aposto que ele está torcendo para tudo dar errado para mim, isso com certeza agitaria sua rotina entediante.

- Eu escuto passos – Arqueia as sobrancelhas e aponta para a porta. O chacoalhar de chaves me desperta e praticamente voo para a saída. Nem mesmo me despeço de Haymitch, mas ele avisa com a voz embargada que estará nesse almoço. 

Ótimo, penso.

- Peeta! - Chamo-o quando ele passa por mim e sequer me nota. Ele parece cansado, mais devagar que o habitual.

- Katniss! - Murmura e olha para trás, procurando por mim. Seus olhos piscam algumas vezes quando ele me encontra na varanda de Haymitch. - O que você está fazendo aí?

- Haymitch precisa de uma babá, lembra? - Corro para ele e me inclino minimamente para lhe dar um beijo.

- Sim – Franze o cenho e segura minha cintura – Mas você é a última pessoa que seria a babá dele.

Nem mesmo começamos o assunto Gale e Peeta já está desconfiado. Por que é tão difícil esconder as coisas dele? 

- Devo isso a ele – Desconverso e pego sua mão, guiando-nos para casa.

Não entendo o motivo do silêncio entre nós, mas sei que algo está muito errado. Peeta sempre chega falante e animado, revigorado e ao mesmo tempo cansado após um dia de trabalho. Ele sempre gosta de comentar algumas coisas que fez na padaria e sempre pergunta como foi meu dia na floresta.

Não hoje. 

Vejo-o subir as escadas com passos desanimados e escuto o som do chuveiro. Sua ausência me deixa livre para pensar e logo chego à duas conclusões óbvias: Ou eu fiz algo de errado ou ele está prestes à ter outro episódio.

- Katniss? - Ele me chama depois de algum tempo. Seus cabelos estão molhados e sua pele está quente. Se eu não soubesse que gosta de banhos quentes, acabaria achando que está com febre.

- Sim? - Ele senta no sofá e me puxa para o meio das suas pernas, me abraçando.

- Quando você vai me contar que encontrou Gale hoje?

Levo meio minuto para processar que Peeta sabe quem voltou ao Distrito 12. Tento desfaçar minha cara de surpresa quando viro o rosto para ele:

- Estava apenas esperando um bom momento – Me apoio em seu peito e sinto o cheiro de loção pós barba. - Como você soube?

- O Distrito não fala de outra coisa – Dá um suspiro e seus braços tornam-se quase sufocantes.

Ficamos quietos por algum tempo, tento até assistir a algum programa fútil da Capital, mas eu posso sentir os músculos tensionados de Peeta e sei que nossa conversa ainda não terminou. Por fim, viro-me para ele:

- Isto é mesmo importante?

Ele franze a testa e sua mão desliza pela minha bochecha.

- O quê?

- Gale – Fico de joelhos no sofá, o afastando de mim – Não faz diferença se ele está aqui ou não.

- Eu não sei, Katniss – Passa as mãos pelos cabelos claros – Me diga você.

O tom de Peeta parece descrente e isto realmente me incomoda; Nunca passamos por uma situação que colocasse nossa relação à prova, quando eu tive um surto de ciúmes de Delly Cartwright, ainda não confiávamos plenamente um no outro, mas imaginei que, com o passar do tempo, esta barreira seria derrubada.

No final das contas, acho que estava enganada.

- Você está duvidando de mim?

- Não! – Ele tenta se corrigir, mas seu semblante o entrega. Peeta confia em mim, sim, porém, assim como eu, ele não sabe o que esperar.

Não o culpo por isso. Se ele não confia em mim às cegas, é porque lhe dei motivos para isto.

- É em mim que eu não confio – Confessa após alguns minutos.

Por que ele não confiaria nele mesmo? Alguém como Peeta – justamente ele! – não deveria pensar como Haymitch; Diferente dos dois, tenho certeza que ele conseguirá lidar com essa situação muito bem, exatamente como fazia antes de ser telessequestrado.

Por mais ainda tenha episódios, não o considero como uma ameaça para nenhum de nós. Peeta sabe se controlar.

- Isto é ridículo! – Digo.

- O que?! Você realmente acha que eu consigo fazer isso, Katniss? – Sua expressão é auto piedosa, mas não me abalo com nada disto.

- Acho, sim – Cruzo os braços firmemente e tento olhar no fundo dos seus olhos, pensando em, de alguma forma, espantar o medo que se propagaram por eles em questão de segundos. – E é melhor que você faça minha confiança valer, Peeta, porque eu chamei os Hawthorne para almoçar aqui.

- O que?! – O segundo é surpreso e engasgado, exatamente como eu esperava que fosse. Haymitch daria gargalhadas com a minha sutileza, provavelmente.                                               

“Você quer que o garoto tenha um colapso?!”

Não vejo o por que meu marido teria um ataque com uma coisa tão... Insignificante. É apenas Gale, um velho amigo que foi devidamente guardado na memória, junto com o passado.

De qualquer forma, é bom que nosso mentor venha para a pequena reunião, eu rirei na cara dura quando ele – e Peeta – concluírem que a mente do último está devidamente segura e sã.

É isto que eles ganham por não acreditarem em mim.

- Katniss... – O garoto com o pão cutuca o meio braço, parecendo distante.

- Sim?

- O que você acha que eles vão querer para o almoço? Eu estou realmente em dúvidas sobre ganso assado ou ensopado de carneiro.

[…]

- Olá Katniss! - Encontro os grandes olhos de Hazelle Hawthorne e dou um leve pulo, despreparada para sua chegada. Gale está logo atrás, trazendo Posy pela mão. Reparo que Vick e Rory não estão presentes e a mulher se antecipa para explicar a ausência dos outros filhos:

- Rory está trabalhando e Vick fica até mais tarde na escola.

- Ah, claro – Murmuro desconcertada e lhes dou passagem. Gale não continua até a sala, para onde sua mãe está indo, ele para em frente a mim e me estende uma garrafa de vinho. Franzo o cenho, confusa.

- É o que costumamos fazer no Distrito 2 – Diz – Quando somos convidados para um almoço ou um jantar.

Franzo o cenho e imagino se Gale já age como um nativo do Distrito 2 ou se está apenas sendo educado. Bem, para mim ele não mudou em nada.

Posy, sua irmãzinha de 10 anos, me cumprimenta com um doce sorriso banguela – ela perdeu os caninos na semana passada – e pergunta por Peeta. Como toda criança, ela também é encantada com meu marido. É adorável e estranho ao mesmo tempo, principalmente quando ambos sabemos que nunca poderei lhe conceder crianças. Mesmo sabendo que ele as adora.

- Ela deve gostar mais dele do que gosta de mim – Comenta quando a menina corre para a cozinha. Concordo com uma risada contida e seguimos para a cozinha com passos lentos.

Todos estão conversando alegremente na cozinha, esperando por nós. O almoço está pronto, é claro. Greasy Sae passou aqui pela manhã para ajudar Peeta, nós insistimos para que ela ficasse, mas ela declarou categoricamente que, daquela vez, seria uma intrusa.

Quando Peeta desvia sua atenção de Hazelle e Posy e levanta os olhos para Gale, prendo a respiração, mesmo sabendo que é irracional agir desta forma. Eu não sou o tipo de pessoa definida como insegura, mas, não consigo ignorar a sensação de tontura e nervosismo que se instalam em meu estômago.

Pode ser a fome, penso otimista.

- Gale – Peeta se aproxima com um sorriso educado e estende a mão para Gale. Observo a cena com os olhos arregalados, não esperando que ele fosse tão amistoso assim.

O que mais me surpreende, porém, é que Gale dá um sorriso em resposta e eles balançam as mãos e se cumprimentam, como se fossem velhos amigos. Não nenhum assunto mal resolvido entre eles: Peeta conseguiu a garota, Gale se mudou para não importuná-los, fim da história.

- Relaxe, docinho – Haymitch – que não estava em nenhum lugar próximo – aconselha discretamente atrás de mim, sustentando um sorriso divertido – Não queremos que você tenha um colapso, certo?

Pensando no papel que meu mentor desempenha, estou grata que ele esteja aqui.

- Não – Respondo e respiro fundo.

- Bem – Haymitch pondera – Eu quero.

- O quê?! - Sussurro pasma. É claro que o velho quer que eu tenha um ataque de nervos, isto valeria seu tempo e ele poderia dar boas risadas da minha desgraça. 

- Vai me culpar por isto? - E ele desce os olhos para a garrafa de vinho e a toma de mim, caminhando para onde os outros estão.

- Vinho? Muito gentil da sua parte – Gale vira-se para nós e parece um pouco surpreso com Haymitch. De qualquer forma, ele o cumprimenta e diz o mesmo que falou para mim quando chegou.

- É – Meu mentor dá de ombros – O povo do Distrito 2 é um povo muito gentil – Acho que a até a pequena Posy notou o tom irônico dele nesta frase. O Distrito 2 sempre foi o distrito dos carreiristas, logo, o mais superior e arrogante, então, gentileza não é uma qualidade que você usaria para eles, mesmo hoje, cinco anos após a rebelião.

- Peeta, querido – Hazelle começa depois de um bom tempo após nos sentarmos à mesa. A comida já está quase no fim, e agora que estamos saciados, podemos conversar – Ainda fazendo o trabalho de Katniss?

- Sempre – Haymitch murmura ao meu lado.

- Bem – Peeta evita meu olhar e parece constrangido – Ela ainda não tem muito jeito, então...

- Catnip nunca teve jeito para essas coisas, Peeta – Gale acrescenta com olhos colados em mim. Seu sorriso é presunçoso e enorme, ele parece zombar de mim – Ela só sabe lidar com esquilos.

- Bom – Peeta junta as sobrancelhas e pensa por breves segundos – Isso é verdade.

- Catnip? - Haymitch segura um sorriso com os dentes e vira-se para mim, me provocando.

- Cala a boca! - Ralho baixinho.

- Mas ela está melhorando aos poucos – Peeta tenta defender o meu lado e suspiro aliviada por isto – Ela já pode fazer um bolo sem queimá-lo.

- Até eu consigo fazer um bolo – Posy comenta distraída. Seus olhos estão longe daqui, nos quadros de Peeta espalhados pelas paredes.

- Este é o problema – Peeta sussurra e ri discretamente.

Assisto-os se entreolharem e rirem estrondosamente de mim. De mim; Fecho a cara para todos e tenho quase certeza que estou vermelha de raiva.

- Você poderia ter escolhido uma esposa mais prendada, garoto – Haymitch comenta enquanto vira um taça inteira do vinho que Gale trouxe.

- Estou bem assim – Diz.

Levanto-me bruscamente, cansada de vê-los rirem de mim. Isto me fez lembrar de outra ocasião, onde Gale, Hazelle e Posy não estavam presentes, mas Peeta e Haymitch sim. Onde todos os vitoriosos uniram-se para caçoar da minha inocência.

Parece que foi ontem que fui obrigada à olhar os seios de Johanna Mason – Reviro os olhos  e começo a recolher os pratos, em silêncio. Vou para a cozinha e começo a limpá-los, ouvindo-os rirem de alguma outra coisa.

- Você está chateada? - Mãos quentes e familiares envolvem meu dorso e me puxam para trás. Peeta apoia o queixo em meu ombro e suas íris azuis se prendem em mim, brilhando preocupadas.

- Não – Minto.

- Você sabe que não precisa ficar chateada – Diz em um tom amável – Só falamos essas coisas porque amamos você.

Reviro os olhos e continuo lavando os pratos. Peeta, como sempre, não desiste e começa a me persuadir a não ficar emburrada com uma brincadeira boba.

- Katniss... - Ele beija meu pescoço e suas mãos cobrem as minhas, que estão molhadas e cheias de sabão.

- O que é? - Retruco com má vontade.

- Não é bom ficar assim, você sabe.

- Como eu deveria ficar, Peeta? - Tento me livrar de seu aperto, mas ele não está disposto a me deixar ir. - Você está me atrapalhando, estou tentando ser uma esposa prendada aqui – Acrescento, debochada.

- Por que você sempre fica irritada com coisas tão bobas? – Estala um beijo na minha bochecha e me larga, fazendo seu caminho para a sala.

- Eu não fico – Viro-me para ele e cruzo os braços. Não é que eu seja uma péssima mentirosa, eu consigo fazer isto muito bem quando é necessário, mas Peeta não deixa nada escapar diante dos seus olhos. Ele sabe de tudo.

- Não? – Arqueia uma sobrancelha e volta para mim lentamente – Sério, Katniss.

- Eu não estou irritada – Levanto o queixo, tentando dar um pouco de veracidade a minha encenação.

- Katniss... – E ele faz de novo, começa a me tentar com pequenos beijos e seus braços estão em mim novamente. É uma sensação tão boa que quase peço para que não me largue nunca mais.

No entanto, por mais que estejamos compartilhando um bom momento, eu sei o que está fazendo: Peeta está tentando me acalmar. É claro que ele perceberia como estou tensa desde que os Hawthorne chegaram, é por isso que ele está aqui, aproveitando esta única ocasião de privacidade para me deixar mais tranquila.

Quando seus lábios tocam os meus, sei que está funcionando.

- Desculpe!

Nos separamos abruptamente, olhamos para a porta e é Gale quem está lá com alguns copos que esquecemos na sala. Tento ler sua expressão, mas ele dá um pequeno sorriso e deixa a louça em cima da bancada, há poucos metros de nós.

Não é como se eu precisasse me explicar, afinal, Peeta é meu marido. Ainda assim, é impossível não ficar constrangida sabendo que Gale ainda sofre por ter me perdido para o garoto que foi para os Jogos Vorazes duas vezes comigo.

Entretanto, ele tem ainda tem razão. Se Prim não tivesse sido sorteada, eu não estaria aqui com Peeta e sim com ele.

Mas aconteceu e, graças a isto, estamos caminhando para um futuro em uma nação livre.

Meu marido suspira e, agindo como se nada tivesse acontecido, me larga e vai buscar os copos que o visitante deixou aqui.

- Peeta?

- Sim? - Ele se vira para mim com um sorriso suave. Não é verdadeiro, posso ver que ele está começando a se incomodar com a presença de Gale.

- Você está bem... - Encaro o chão, aproximando-me timidamente – Com ele estando aqui?  

Ouço outro suspiro pesado de Peeta e logo suas mãos estão no meu rosto, acariciando-o calmamente:

- Por que eu não estaria? - Tento enxergar a mentira em seus olhos claros, mas Peeta é bom demais em esconder as emoções, principalmente quando está fazendo isto para que eu não me sinta desconfortável.

- Eu não tenho nada contra o Gale – Continua enquanto seu polegar desliza pelo meu rosto – As minhas rixas com ele já foram resolvidas.

Peeta pensa exatamente como eu: Uma vez que ele conseguiu a garota, não há nada que o faça temer Gale. Eu sou dele, eu carrego o seu nome agora.

- Você está bem, Katniss? - Pergunta cheio de preocupação.

- Por que você está perguntando isto para mim? - Arqueio uma sobrancelha, confusa.

- Bom... - Ele coloca uma mecha solta atrás da minha orelha e me puxa contra seu corpo mais uma vez – Não é comigo que Gale têm assuntos mal resolvidos.

Ah! É verdade! 

Ás vezes fico surpresa com a capacidade Peeta enxergar tudo por uma perspectiva diferente da minha. Talvez seja isto que nos faça tão bons um para o outro. Ele é otimista e altruísta, enquanto eu sou reservada e desconfiada.

Fiquei tão preocupada com sua reação sobre Gale, que acabei esquecendo de mim mesma. Eu estou abalada com a presença de meu antigo melhor amigo, não é somente sobre Peeta e a possibilidade dele ter um episódio.

É sobre mim também. É sobre a garota que ficou no passado, sofrendo com o abandono, magoada por alguém em quem confiava. 

- Eu estou bem – Sussurro convicta, mais para mim do que para ele.

E é verdade: Estou realmente bem. Graças a ele, a Haymitch, Greasy Sae e até mesmo Delly. Eu perdi Gale, mas ganhei outros amigos. Peeta é muito mais que um amigo, é claro.

Ele é o único motivo de eu não ter padecido. Eu devia isto a ele: Ficar viva, pagando minha eterna dívida por ter destruído sua vida.

- Mesmo?

- Sim – Pisco os olhos, um pouco atônita com minha descoberta.

- Katniss, você não está dizendo só para... - Começa a reclamar, mas meu indicador voa para sua boca, fazendo-o se calar. Cerro os olhos, forçando uma irritação que não existe.

- Eu já disse que estou bem, Peeta – Repito um pouco ríspida. Deixo-o livre para falar e o contorno, voltando para a sala. Antes de fugir dali, me viro e falo:

- Não me pergunte o porquê.

O almoço se arrasta por mais uma hora, até que Hazelle decide que é hora de nos deixar em paz. Gale, obviamente, a segue sem protestar, mas há uma certa relutância em seus olhos tempestuosos.

- Sinta-se feliz por não ser o vizinho deles – Haymitch dá tapas modestos no ombro de Gale, já tomando seu próprio rumo.

- Por que? - Levanta as sobrancelhas, intrigado.

Meu mentor não me dá tempo para impedi-lo, ele apenas abre um grande sorriso malicioso e cospe com vigor:

- Acredite em mim quando eu digo que eles não são silenciosos como eu queria que fossem, rapaz. 

Leva algum tempo para que entenda do que Haymitch está falando, entretanto, quando se dá conta, começa a tossir e seus olhos se arregalam; É um momento raro, mas posso sentir meu rosto esquentando, mas não posso definir se é por vergonha ou por raiva.

- Ah, entendo.

- Eu vou matá-lo – Falo para Peeta por trás do sorriso forçado. Hazelle, Haymitch e até meu próprio marido estão rindo. Felizmente, este toma o cuidado de não ser descarado e ri educadamente, mas sei que, no fundo, ele está feliz com a brincadeira de mal gosto do maldito velho bêbado. 

Não dá para estender a conversa muito além disso, Haymitch – que deveria estar aqui para tornar o ambiente mais leve – acabou fazendo o contrário. De propósito, imagino.

- Foi bom te ver, Catnip – O caçador diz após se despedir de Peeta. Ele não tenta me abraçar, ele sequer aperta minha mão, mas seu aceno de cabeça é o suficiente.

Irracionalmente, assemelho esta situação à outra completamente diferente: Quando eu tinha que convencer o presidente Snow de que meu amor por Peeta era real. Uma missão na qual falhei, a julgar pelo nosso destino.

Talvez Gale precisasse disto: De uma prova de que fez certo em ter me deixado para trás. Talvez, quando me deixou há cinco anos, ele não estivesse pensando apenas nele, mas também em mim e quem seria melhor para mim.

Ah, nisto ele pensou. Afinal, não foi isto que ele falou para Peeta uma vez? Que eu escolheria aquele que acharia impossível viver sem?

- Eu posso perguntar agora, não posso?

- O quê?! - Olho para Peeta, perdida.

- O motivo para você estar bem – Revela. Sua expressão ingênua é uma velha conhecida, ele sempre faz isto, sabendo que é o meu ponto fraco.

- Achei que tivesse esquecido – Reviro os olhos e fecho a porta.

- Não esqueci, não – Diz.

- É claro que não – Balbucio enquanto caminho para a sala. Desabo no sofá e Peeta desaba ao meu lado, ainda esperando por sua resposta.

- Sabe... - Começa – Você me deixou muito confuso quando falou aquilo.

Tento ignorá-lo, mas Peeta é persistente demais. Ele fica – irritantemente, devo adicionar – implorando para que eu explique o que aconteceu. Quando não consegue nem uma palavra sequer, ele apela para os toques e então os beijos.

Não posso falar, mas, posso corresponder, certo?

Certo. E quando abro os olhos para admirar seu rosto, ele está em cima de mim, me prendendo com seus braços e pernas. É uma ótima prisão, na verdade. Eu nunca reclamei dela. Ainda. 

- Vai me contar? - Tenta novamente quando liberta meus lábios. Não estou disposta à bater papo, então puxo-o pelos cabelos para que me beije de novo. Ele sabe que me provocou mais cedo, na cozinha.

Ele só resolve perguntar de novo quando estamos bagunçados: Sua camiseta já está longe, em algum canto desta sala. Minha trança está desfeita, meu cabelo parece um ninho e minha blusa está por um fio; Bufo, frustrada com a interrupção.

- Você já sabe a resposta – Respondo com a voz embargada.

Peeta para, pensando nas únicas palavras que cedi. Para meu desespero, ele se afasta e se senta no sofá, longe demais de mim. Depois de franzir o cenho e juntar as sobrancelhas diversas vezes, ele vira o rosto para mim, um pouco surpreso:

- O que eu tenho haver com isso?

- Tudo – Dou de ombros e começo a ajeitar minha roupa, mas ele me lança um olhar de ameaça, o que me deixa feliz e animada por dentro. Então ele pretende continuar, uh? 

- Certo – Murmura, descrente – Você está dizendo que está bem com Gale por minha causa?

Por mais ingênuo que seja, Peeta é inteligente. Não foi preciso de muitas pistas, afinal. 

- Eu estou dizendo que estou bem por sua causa, sim – Afirmo.

- Você não existe, Katniss – Balança a cabeça e levanta, me puxando pela mão. Seu corpo está tremendo com as pequenas risadas que deixa escapar.

- Para onde vamos? – Pergunto.

- Para onde mais? – Vira seu rosto, que está com um sorriso engraçado, para que eu possa vê-lo – Temos uma bagunça para arrumar por causa de um almoço que você inventou, esposa prendada.

- Eu não sou uma esposa prendada – Admito com o cenho franzido.

- Eu sei – Dá de ombros e leva algumas coisas para o armário, guardando-as perfeitamente organizadas.

 Reviro os olhos para o excesso de zelo pelas coisas. Por que ele simplesmente não as joga ali?

- Você quer que eu seja prendada? – Olho para trás e encontro a carta de Gale, escondida pelo papel pardo. Respiro fundo, mas a ansiedade começa a partir do momento que começo a imaginar o que pode estar escrito ali.

- Não – Diz – Você está bem assim.

- Ótimo – Murmuro e a empurro para o lado, pegando um pano seco – Porque acho que não conseguiria mudar, de qualquer forma.

[...]

Uma série de chuvas torrenciais está assolando o Distrito 12 e, diretamente, a mim também, que não posso ir para a floresta no meio de um temporal. Para piorar, Peeta teve alguns problemas na padaria e foi obrigado a ir mesmo assim.

E eu, como sempre, fiquei sozinha.

Sem muitas opções, decido explorar o estúdio de Peeta – que anda muito produtivo ultimamente – e encontro todo o tipo de pintura: Desde cenários e pessoas. Rostos que, por mais que eu não queria ver, consigo encarar com um pouco de esforço.

Antes do meio-dia, porém, alguém bate na porta dos fundos e espero ansiosamente que seja Peeta.

Mas não é.  

Ficamos nos encarando por um tempo, na verdade, estou esperando que diga algo, afinal, Gale é quem veio aqui.

- Eu estou indo... - Ele murmura com os olhos fixos nas toras de madeira.

- Eu sei – Abro passagem e Gale passa por mim sem cerimônias. Sua roupa está toda molhada, combinando com sua expressão cabisbaixa. Ofereço uma toalha, mas ele recusa educadamente e avisa que não ficará por muito tempo.

- Eu vou voltar logo – Gale acrescenta. Ambos sabemos que são palavras mentirosas, ele evitará o Distrito 12 enquanto puder.

- Eu sei – Murmuro.

Há uma grande diferença entre nossa relação na floresta e nossa relação aqui, onde a realidade nos consome. Lá nós não precisamos de palavras: Basta pular, correr e atirar em coisas para o clima de cumplicidade e alegria se instalar.

Não aqui. 

- Eu queria falar algumas coisas antes de partir – Anuncia. Seu semblante é conflituoso: Ora hesitante, ora confiante. E eu sei exatamente sobre o que vamos falar nos próximos minutos.

- Tudo bem – Dou de ombros e puxo uma cadeira da mesa da cozinha. Gale segue meus passos, sentando-se de frente para mim.

Recolho os braços, cruzando-os firmemente contra o peito. As mãos de Gale pairam sozinhas na mesa, com os fantasmas das minhas, que deveriam estar ali. Não estou disposta à ser uma boa pessoa hoje, principalmente quando vamos falar do assunto que tento esquecer a cada minuto.

- Katniss, eu sin... - Levanto o indicador, interrompendo-o.

- Você não precisa pedir desculpas, Gale – Volto a minha postura inicial e respiro fundo. - Não mudaria nada, de qualquer forma – Dou de ombros e me levanto, buscando um copo d'água.

Ainda é difícil não colocar a culpa em Gale por tudo o que ele fez, alguém precisa levar a culpa. Talvez o Dr. Aurelius esteja certo com o que me explicou uma vez, em uma de suas consultas pelo telefone. 

Ele se afastou primeiro, é normal colocarmos a culpa naquele em que sabemos que nunca mais teremos que encarar de novo. Evita um conflito e alivia a consciência.”

- Eu nunca pensei que fosse ser tão difícil conversar com você – Gale dá um riso amargo atrás de mim.

- O quê? - Rebato ríspida – Só por que estou um pouco mais inteligente agora?

Gale não responde, ele não se atreveria. Não este Gale, que não é nada além de um completo estranho.

Os segundos se arrastam, posso ouvir os ponteiros da sala contando cada um deles daqui, relembrando-nos do pouco tempo que nos resta para reparar assuntos mal resolvidos do passado.

- Katniss, eu não matei a Prim. 

Meu corpo se contrai com o nome dela. É claro que Gale chegaria a esta conclusão, ele colocaria a culpa toda em si próprio e definiria que eu nunca mais gostaria de olhar em seu rosto novamente.

Não é verdade. 

O que me magoou em relação a ele foi, basicamente, o abandono. Ele não atirou uma flecha em mim quando eu pedi para fazê-lo, ele sequer se preocupou em saber como eu estava após tudo ter acontecido. Ele tampouco deixou  um bilhete ou deu um telefonema, como minha mãe se prestou a fazer.

É desta parte que sinto raiva. 

- Não – Dou uma risada curta, achando tudo muito absurdo – É claro que não.

- Então...

- Você acha que eu sou estúpida? Como você e Beetee saberiam dos planos de Coin? Ninguém sabia. Vocês criaram aqueles paraquedas para matar os inimigos, não crianças inocentes, não Prim... - Deixo minha voz morrer no final, segurando um soluço ao falar disto, a pior memória da minha vida, tão abertamente.

- Eu achei que você me culpava pela morte dela – Sussurra.

- Então minha flecha teria acertado o seu coração, não o de Coin – Digo de uma vez, pegando-o de surpresa.

- Bom – Ele suspira – Então eu sinto muito...

- Pelo que desta vez?

- Por ter te deixado.

Algo me diz que eu deveria me sentir emocionada, um pouco alegre até. Todavia, não estou sentindo absolutamente nada. Viro-me para Gale com meu melhor sorriso – aqueles que uso com Peeta quando quero mentir sobre meu verdadeiro estado – e digo calmamente as palavras que o libertarão da dívida que o manteve preso a mim nos últimos cinco anos:

- Isso é passado, Gale – Dou de ombros – Você não deveria se preocupar.

Para mim, não é nada disso. O passado ainda rege grande parte da minha vida, seja em lembranças, pesadelos, cicatrizes ou rastros novos de personalidade que os baques deixaram em mim. Para Gale, porém, parece ser diferente.

Ele deve ter seus próprios problemas, muitas recordações para se lidar, portanto, cabe a mim livrá-lo de mais um fardo. Não seria justo com ele.

Talvez fosse, por ele ter me abandonado também. Eu não deveria ser tão benevolente com alguém que virou as costas para mim e agiu como se eu não existisse.

Mas eu sei como é lidar com a guerra e as feridas – internas e externas – que ela deixa em você. Eu sinto isso, todos os dias. Eu vejo nos olhos de Peeta, na garrafa de uísque de Haymitch, no sorriso perdido de Delly, eu vejo isso no espelho.

E eu não desejo isto para mais ninguém. Nem mesmo para alguém como Gale.

- Você mudou, Catnip – Gale confessa mais uma vez, parecendo admirado. - Você mudou muito.

Me limito a sorrir educadamente, o que faz o sorriso de Gale aumentar ainda mais.

- Peeta merece um pouco de crédito por isso – Acrescenta zombeteiro – A bondade dele está passando para você.

- Espero que sim – Digo com um aceno.

- Bom – As íris cinzas caem no relógio de pulso e Gale firma suas malas nas mãos, pronto para seguir para a estação, onde voltará para o Distrito 2. - Vou indo.

- Tenha uma boa viagem – Desejo forçadamente, caminhando para a porta dos fundos para abri-la. Entretanto, algo acontece no breve percurso: Gale passa pela bancada e vê a carta que Hazelle me entregou há um tempo. Eu ainda não fiz menção de abri-la, é claro.

- Você ainda não a leu... - Aponta para o envelope amarelado, com um tom entristecido.

- Não – Sustento seus olhos e vejo-o dar um sorriso contido, porém, autêntico.

- Tem razão – Sussurra para si – Você não mudou em nada. Continua teimosa.

Deixo o comentário passar, mas Gale não demora muito mais tempo. Ele pisa fora da minha casa e vira-se uma última vez, imaginava que parar dizer um 'adeus' definitivo.

Não foi como eu imaginei. Eu deveria esperar isto de Gale. 

- Leia – Seu indicador desenha meu queixo superficialmente e é só isto: O homem que um dia já amei se vai, tão subitamente quanto chegou.

Fico acompanhando sua figura sumir no horizonte, logo não há mais nada além da paisagem da Vila dos Vitoriosos que já estou acostumada a ver.

Respiro fundo e tranco a porta, espiando uma última vez o lado de fora, identificando o pôr-do-sol. Volto calmamente para a bancada, onde a carta do meu antigo melhor amigo repousa, esperando por seu leitor.

Com as mãos trêmulas e a respiração ofegante, vou rasgando vagarosamente o papel poroso, ainda hesitante sobre a ideia de ler as palavras que Gale me aconselhou a ler. Deve ser importante, se ele achou melhor me avisar para lê-la.

Eu só espero que estas palavras não me quebrem. Desta vez, não acho que conseguiria me recuperar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Sinceramente? Eu não acho que a Katniss tenha visto o Gale depois de Mockingjay, mas, se acontecesse, ficaria algo parecido com isso (É claro que a Suzanne faria algo muito melhor que isso, né!)

Bom, acho que é só! Espero que tenham gostado e vou aproveitar o feriado para tentar escrever mais alguma coisa ;) Caso eu não volte, Feliz Páscoa para todos!

Comam chocolates por mim, já que não posso fazer isso T_T

E muito obrigado pelo apoio de vocês, isto é muito importante para mim!