Coletânea escrita por Luana Santiago


Capítulo 4
Quarto


Notas iniciais do capítulo

Não me matem, por favor.
Se querem culpar alguém pela eterna demora, bem, meus pais me colocaram em um longo e árduo castigo, pois é.
Enfim, estava com saudades de todas vocês, então espero que alguém ainda leia isto aqui, né...
Bom, só peço - com todo meu coração - que me perdoem por fazê-las esperarem tanto tempo.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/232641/chapter/4

Uma ação singela

O telefone toca e meu mentor o pega aparentemente torcendo por aquela ligação. Tento ver sua expressão, mas parece que meus olhos estão com problemas, deixando tudo embaçado. O que está acontecendo?

- Está tudo indo bem, garoto. – Acho que Haymitch está rindo, pois além de ouvir risadas, consigo enxergar a cor branca no lugar onde está sua boca. – É claro que ela mordeu a isca.

Mesmo em um estado avançado de embriaguez, sei com quem meu mentor está falando. Só há uma pessoa no mundo que ele chamaria de garoto: Peeta Mellark.

O que Peeta tem haver com isso? O que Haymitch quis dizer com "ela mordeu a isca"? O que eles planejam? Principalmente Peeta, que ficou tão irado quando me embebedei com nosso mentor antes do Massacre Quaternário e agora está aprovando, pior ainda, incentivando o velho alcoólatra para que faça isto; Pavor percorre meu corpo, imaginando que o garoto deve estar sob o efeito dos venenos das teleguiadas e Haymitch, que nunca pareceu gostar realmente de mim, está o ajudando.

Eles estão sendo controlados pela Capital. Eu posso sentir que Snow está envolvido nisto, ele não desistiu de destruir o tordo.

Levanto com dificuldade, alcançando a faca que é a companhia de Haymitch todas as noites. Muito descuido de sua parte deixá-la exposta assim.

- Tenho um probleminha aqui, rapaz – E ele desliga o telefone. Queria que Peeta não tivesse insistido para consertá-lo meses atrás.

Haymitch coça a barriga e depois cruza os braços, esperando que eu o ataque.

- Acho que você não está em condições de brincar com essa faca, docinho.

- Quem disse que eu vou brincar? – Para minha surpresa e divertimento de Haymitch, minha voz sai arrastada e confusa – Seu velho maldito!

Sem mais conversas, avanço para o homem de meia idade e, como esperado, saio perdendo por causa dos meus reflexos lentos. A arma prateada reflete na mão de Haymitch em menos de um minuto. Ele sabe como se defender, de fato. Eu sempre soube que suas experiências como tributo não foram perdidas ao longo dos anos.

- Velho maldito! – Grito contra ele.

- Certo, certo. Acho que já ouvi essa hoje, queridinha. Está ficando sem ideias ou é o efeito da bebida? – Rebate munido da típica ironia. Reviro os olhos e tento acertá-lo com os punhos, ao invés de desviar, ele segura meus pulsos e os gira, arrancando um gemido de dor vindo de mim.

- Estou te fazendo um favor, é assim que me retribui? Deixe as indelicadezas para o seu namoradinho.

Fecho a cara por dois motivos: Primeiro porque agora tenho a confirmação que Peeta está envolvido nesta conspiração e segundo porque ele não é meu namoradinho. Evoluímos em um ano? Sim, mas acho que não a este é ponto. Nossa relação está bastante similar ao que tínhamos antes de seu telessequestro, algo além de amigos, porém, sem rótulos, a não ser o que tínhamos que encenar para a Capital.

- Eu vou acabar com vocês dois, vou pegar meu arco e vou flechar a... – Haymitch me cala antes que eu fale algo que vá me arrepender depois. Com um pouco de sorte, esquecerei o vexame de hoje logo pela manhã.

- Acho que está na hora da docinho dormir... – Sinto seus dedos pressionados em um ponto específico do meu pescoço. Quando estou abrindo a boca para resmungar, tudo escurece.

[...]

Eu teria acordado irada se estivesse jogada em um sofá ou no chão. Levantaria de uma vez, pronta para chutar Haymitch e Peeta pelo que fizeram comigo na noite passada.

Bom, não é bem assim.

Eu acordo em um lugar escuro, sufocante e minúsculo. A compreensão cai sobre mim e meu coração falha: Fui capturada. E desta vez, sei que foi pela Capital. Eu sabia que Snow estava vivo e agora irei ser morta em alguma cerimônia em uma praça pública da cidade, enquanto o homem que atormenta meus sonhos com suas rosas e odor de sangue de inocentes gargalha da mesma forma que fez quando minha flecha acertou Coin e não ele.

Minhas mãos e pés estão amarrados com grossas cordas - ou parecem ser cordas - que machucam mais quando tento tirá-las, é um daqueles nós sofisticados que Finnick me ensinou a fazer. Não há como sair deste cativeiro por enquanto.

Tento organizar meus pensamentos, ignorando o medo que faz meus lábios tremerem. Todos os traumas causados pelos Jogos e pela guerra bombardeando minha mente. Tarde demais, percebo minha má escolha de palavras: Bombardeio. Prim. Morta. Chamas.

Minhas narinas ficam infladas e luto arduamente contra as lágrimas e a onda de más lembranças que tenta me abater. Eu melhorei um pouco, mas nunca serei capaz de ignorar por completo o que sofri ou esquecer a imagem de minha pequena irmã desaparecendo no fogo causado por aqueles paraquedas prateados. Um vitorioso carrega as cicatrizes da crueldade para sempre: Haymitch com sua faca todas as noites, esperando por uma ameaça que foi extinta, Peeta e suas mãos que fecham-se como garras nas costas de uma cadeira quando me transformo em um bestante e por fim eu, que acordo banhada de suor, lágrimas e gritos quase todas as noites.

Tal pensamento lembra-me de outro detalhe nítido: Não tive pesadelos esta noite, e não foi porque Peeta estava me segurando com firmeza. Eu é que estava bêbada demais para sonhar.

Tão óbvio! Como pude ignorar o cheiro de aguardente branca e uísque que exala de mim e do espaço apertado? Recordo-me com dificuldade de alguns fatos: Declarações vergonhosas, lágrimas desnecessárias, cantorias desafinadas, uma conversa ao telefone, uma faca e escuridão.

Alívio se apossa de mim, não por muito tempo. Estar nas mãos de Peeta e Haymitch é só um pouco melhor que estar nas mãos da Capital e de Snow. Ainda assim, preciso saber o que os dois pretendem comigo.

Mais uma vez, tento pensar, por mais difícil que seja quando os primeiros sinais da ressaca começam a aparecer. Não tarda muito até minha cabeça estar explodindo e implorando por descanso.

Sem noção do tempo, chego a uma conclusão apenas: Eles não querem que eu saiba de alguma coisa. A ideia de quererem me matar foi descartada de início, eu estava fora de mim ontem e foi estúpido sequer considerar uma possibilidade como esta. Segredo é uma motivação plausível, algo que sabem, mas precisa de sigilo sem que eu vá atrapalhar. Bom, ambos sabem que a única forma de me manter longe é me prendendo aqui, em um armário, imagino. Na casa de Haymitch, adiciono, a não ser que Peeta tenha um estoque bebida e está escondendo isso de mim também.

Quando estou preparada para gritar e bater contra a porta de madeira, uma conversa começa. O primeiro a falar é Peeta, precavido o suficiente para sussurrar:

- Ela está bem? – A risada de Haymitch indica que ele está achando a situação um pouco hilária demais. Sinto raiva dos dois, que estão preocupados demais com meu bem estar trancando-me em um guarda-roupa.

- Melhor impossível... – Como sempre, só pela voz consigo identificar se meu mentor está ou não embriagado. Ele não está totalmente sóbrio, mas não está tão mal quanto eu estava ontem.

- Onde ela está?

A falta de resposta de Haymitch me deixa ciente de outro fato: Peeta não sabe o que está realmente acontecendo comigo. Me sinto um pouco envergonhada por tê-lo culpado, acho que ele não imaginava que nosso adorável vizinho fosse chegar a este extremo. É por isso que não confio mais em Haymitch desde o fim repentino da segunda arena. Ele continua em silêncio, mas Peeta solta um som estranho, como se estivesse surpreso e apavorado ao mesmo tempo.

- Relaxe, garoto – Ouço tapinhas, provavelmente nos ombros de Peeta – Ela está muito bem apagada lá dentro.

- O que você fez?

- Você conhece a técnica da veia no pescoço, não conhece? – Tratando-se de Peeta Mellark, não, aposto eu não sabe que técnica é essa. Bom, ouvi algo no treinamento do Distrito 13, porém, não liguei muito, uma vez que minha arma é um arco e combate direto não é necessário. – Só um truquezinho que nocauteia a pessoa por algumas... – Hesita – Horinhas... Katniss me agradecerá por ter lhe dado uma boa noite de sono – E por fim, sua típica risada zombeteira.

- Haymitch! – Peeta reclama, sempre a meu favor – Não era para exagerar!

- Oh, não? Nós conhecemos Katniss, sabemos como ela é difícil. – Agora eu tenho motivos para estar com raiva de Peeta, pois ele suspira, simplesmente concordando. – Ela está dormindo como um bebê.

Não estou, não.

- Bom, é o que parece – A voz de Peeta se aproxima e escuto seus passos, que param bem em frente a mim. – Ela vai ficar furiosa, não vai?

Mordo minha língua e esta sangra, tudo para conter a vontade de responder.

- Isto é problema seu – Haymitch deve estar dando de ombros, bebendo um pouco mais de álcool. – A ideia foi toda sua.

- Eu sei, eu sei... – Os dedos de Peeta tamborilam na madeira, ele abre minimamente uma das portas, deixando um fio de luz chegar até a mim. Espremo os olhos na fenda e vejo parte do seu cabelo louro e uma expressão que já vi antes: Quando está decidindo o que vai pintar ou que receita pode inventar. Sei que está tramando alguma coisa. – Você pode levá-la assim que eu sair. Está tudo pronto.

O que está pronto? Peeta não fala mais nada, nem Haymitch pergunta. Seja lá o que for, combinaram isso há muito tempo.

- Eu preciso mesmo ir? – O velho bêbado geme, implorando – Não quero ficar assistindo amor juvenil ao vivo.

Peeta ignora-o completamente, apenas lança um olhar gélido em sua direção e Haymitch suspira de algum canto do quarto, vendo que não tem escapatória.

- Sem atrasos – Adverte antes de deixar o cômodo e provavelmente a casa também. Fico refletindo, decidindo se é uma boa hora para dar um escândalo ou se continuar quieta é a melhor opção. Vou sair daqui em breve, gritar e bater só entregará que eu estava acordada o tempo todo.

Haymitch abre as portas duplas de uma vez e, com o susto, vou direto para o chão, sem chances de me segurar por causa das cordas. Viro-me direto para ele, o rosto vermelho e afetado.

- Dormiu bem, docinho?

- Você sabe que não, por que a pergunta? – Replico ríspida. Ele apenas se agacha com o sorrisinho divertido e começa a desatar os nós. Encaro minhas mãos e vejo gravatas amarrando-as – Peeta tem razão, não precisava disso tudo. Era só pedir e eu ficaria longe.

É claro que meu mentor não parece surpreso sobre eu ter ouvido a conversa. É claro também que ele não comprou a minha história.

- Péssima mentirosa, como sempre – Murmura quando liberta meus pés. Solto um suspiro de alívio, torcendo-os em todas as direções e estalando todos os nervos. Faço o mesmo com as mãos.

- O que Peeta está planejando?

- Sabe de uma coisa, queridinha? Estou surpreso por você não ter tentado quebrar o guarda-roupa assim que acordou. Eu podia jurar que você ficaria rouca de tanto gritar – Desconversa.

- O quê Peeta quer? – Pergunto novamente, entredentes.

- Não sei, docinho. Talvez hoje seja uma data importante... – Dá de ombros, como se não soubesse. Haymitch sabe, mas não quer me contar – Aniversário de casamento, talvez?

- Certo – Rosno. – Se eu fosse casada com Peeta – E então, finalmente, me ocorre o que está acontecendo. Meus músculos travam e meus olhos saltam das órbitas. Engasgada, volto-me para Haymitch – Q-que dia é hoje?

- Ah, a docinho descobriu. Eu sabia que não era assim tão burra...

Não sei exatamente que dia é hoje, mas, algo me diz que é oito de maio e isto significa uma coisa: Estou ficando mais velha.

É meu aniversário.

Não que eu me importe com eles, parei de comemorá-los desde que meu pai morreu nas minas, mais preocupada em arranjar comida do que contar os anos. Mas Peeta se importa, sendo filho de um padeiro, sempre teve um bolo com glacê para comer nestes dias.

- Pode me fazer um favor? – Haymitch me cutuca e pressiona a ponte do nariz – Finja que está surpresa, melhor, coloque um grande sorriso nesta cara amargurada.

- Haymitch... – Falo devagar, identificando o aviso entrelinhas – Não é apenas um bolo, é?

- Você sabe que não – Ele ri e vira mais alguns goles – Ele está trabalhando nisso há uma semana, tente não desvendar tudo daqui até o ninho de amor.

Viro a cara, incomodada com o que está dizendo. Suas piadinhas insinuantes sobre o que Peeta e eu fazemos em casa estão cada vez mais insuportáveis. Perdi a conta de quantas vezes quis virar um soco em seu rosto.

Sabe o que nós fazemos? É isso aí, absolutamente nada.

- Ótimo! – Cerro os punhos e trinco os dentes. – Vamos, então! – Eu estou agindo de má vontade, por mais que não queira. Comemorações me dão nos nervos, principalmente quando não há nada para se comemorar. O que Peeta está pensando? Sim, talvez seja uma maneira de fugir da rotina solitária, mas as pessoas que amamos e que deveriam estar celebrando conosco não estão aqui.

Eles estão mortos. Não há razão para celebrarmos mais um ano de vida quando a maioria de nós está esquecida no tempo, sem anos para acrescentar. A vida interrompida. Nada para comemorar.

Tento não pensar em como Prim adorava festas, mesmo que não tenha frequentado muitas. Para não reviver as cenas horríveis da Capital, penso em sua risada enquanto dançávamos no casamento de Finnick e Annie, no Distrito 13, a última festa dela e de muitos outros, inclusive do noivo. Imagino que Annie Cresta deve entender como me sinto.

- Você escutou, queridinha? – Haymitch coloca uma muda de roupas em meus braços estendidos – Não queremos a dona da festa fedendo à bebida. – Então ele aponta para o banheiro e me dá trinta minutos para ficar apresentável.

Tudo bem, eu posso fazer isso. Por Peeta.

- Quem escolheu isto? – Aponto para um dos vestidos que Cinna fez para a Turnê dos Vitoriosos. É o mais simples deles, renda preta até os joelhos. Acho que o usei no Distrito 6. Bom, não faz diferença.

- O seu namorado, é claro – Dá ombros e ri quando o fuzilo com os olhos. – Não tente negar, Katniss. Panem inteira sabe que vocês estão morando juntos.

- Porque nós precisamos um do outro! – Explico nervosa.

- Você não me deve explicações – Estende o braço, fazendo o papel de cavalheiro. Antes que eu o pegue com raiva, meu mentor me olha de cima a baixo e franze o cenho – Sem trança e com botas de caça? É por isso que aquela maluca reclamava tanto do seu senso de moda... – Pragueja, lembrando-se de Effie.

- Vamos ou não? – Bato o pé e pego seu braço com força. – Ele realmente mandou você fazer isso?

- E alguém consegue dizer não para o garoto? Acredite, não estou gostando disso mais do que você.

No breve trajeto até minha casa, Haymitch vai fazendo perguntas aleatórias e explode em gargalhadas quando admito que esqueci do meu próprio aniversário. Ele parece que vai fazer um comentário indecente, mas desiste, prometendo-o para mais tarde.

Por fim, tocamos a campainha e em menos de dez segundos, Peeta já está a abrindo, como se estivesse escondido por perto, ansioso com a nossa chegada. Suspiro profundamente e meu mentor mais uma vez lembra que preciso colocar um grande sorriso no rosto e fazer minha melhor encenação, tudo pelo garoto.

Tudo bem, concordo mais uma vez, por Peeta.

-Katniss! – Não é um bom começo. Ficamos nos encarando por algum tempo, suas íris azuis com medo de minha reação. Haymitch acotovela minhas costelas e um sorriso falsamente entusiasmado aparece no mesmo instante.

- Surpresa! - Quatro pessoas gritam atrás dele e batem palmas. Reconheço-as de imediato: Delly Cartwright, Thom Erwin, Greasy Sae e sua neta. Além de Haymitch e Peeta, nos tornamos muito próximos com a reconstrução do Distrito 12 e acho que posso chamá-los de amigos.

Eles me abraçam e, felizmente, não me dão nenhum presente. Ao que parece, Peeta não queria ultrapassar tanto assim os limites e imaginou que eu fosse ficar muito irritada caso recebesse alguma coisa. E ele está certo.

A casa está quase a mesma, a não ser pelo bolo não muito grande na mesa, perfeitamente decorado com a paisagem de uma floresta.

Eu nunca pensei que fosse ter um bolo de aniversário alguma vez na minha vida, Prim e eu sempre passávamos em frente a padaria para admirar algo que nunca teríamos, mas Peeta está oferecendo isto para mim agora e o pensamento faz meus olhos arderem.

Mas não é o bolo que me faz fechar os punhos e pressionar as unhas – que estão crescendo por si só – contra a palma das mãos. Um sorriso de expectativa está no rosto de todos, exceto Peeta, quando levanto os olhos e encontro a pintura mais linda que devo ter visto.

- Bom trabalho, criança – Haymitch murmura de algum canto.

É o lago. Tão perfeitamente detalhado que penso ser uma fotografia, mas são apenas os traços certeiros de Peeta em uma tela, o arco-íris de cores vivas totalmente fiéis à realidade.

Não tenho reação, porque Peeta conseguiu de novo a façanha de me arrancar da realidade, me levando para longe, para uma de suas criações, só que desta vez familiar. O reflexo do sol nas águas quentes do lago chega em mim e a brisa me envolve com o aroma de prímulas e gardênias.

Meu lugar favorito.

Está tudo bem? - Sussurra ao pé do meu ouvido, parecendo preocupado.

- Está, sim – respondo com a voz trêmula – Vou ficar bem.

- Você não está brava, está? - Aperta meu ombro e um sorriso acompanhado de lágrimas o consola. Peeta me abraça e tenta me acalmar, as outras pessoas, imagino, nos observam sem ter muito o que fazer.

Haymitch dá gargalhadas porque, bem, Haymitch continua sendo apenas Haymitch.

É com esta surpresa de Peeta que finalmente entendo como minha vida vai funcionar a partir de hoje. Com estes pequenos fragmentos de felicidade, até termos construído um local seguro para nos refugiarmos da realidade.

Então, não há como eu ficar brava e a ideia de destruir tudo o que ele fez com tanto zelo por mim se esvai.

Temos sim um motivo para comemorar. Se Peeta consegue encarar os fatos por uma perspectiva otimista, não deve ser tão difícil assim para mim fazer o mesmo, certo? Todos nós sofremos de alguma forma, dor é dor, não importa os motivos, a dor de ninguém é maior, cada um lida com ela do jeito que sabe.

E ao lado de Peeta, estou aprendendo a lidar com esta dor sem precisar me isolar do mundo, dar as costas para a vida e para os privilégios pelos quais eu e toda Panem lutou.

E que os outros dezenove anos valham mais a pena dos que o já vivi até agora,

penso com esperança.

[...]

- Faça um pedido, Katniss – Peeta sussurra e esfrega minhas costas enquanto meus olhar vagueia pelas dezenove velas acesas.

Um pedido? É irônico para mim ter a chance de fazer um pedido, quando já perdi toda e qualquer esperança que ainda residia no meu coração. Eu não posso mais ter esperanças, o sentimento tolo destruiu tudo quando achei que ficaríamos bem, e quando digo isso, me refiro a todos os que perderam suas vidas: Prim, Finnick, Cinna, Rue, Boggs. Esperança não é um luxo do qual possamos desfrutar, mas olhe onde estou, parada diante de um lindo bolo decorado por Peeta, tendo a chance de fazer um pedido.

Eu pediria para voltar no tempo. Para época antes do acidente nas minas, quando meu pai me levava para a floresta e quando a noite caía, voltávamos para casa e minha mãe nos recebia com um grande sorriso e Prim em um de seus braços.

Seria egoísta da minha parte pedir algo assim. Principalmente depois de salvarmos milhões de outras vidas em Panem, mesmo que os sacrifícios tenham sidos muitos.

Levanto a cabeça para encontrar os olhos profundos de Peeta, que espera por uma reação. Ficamos nos encarando por um algo tempo, até que desvio o foco para os outros que nos rondam. Haymitch, Greasy Sae, Delly e Thom. Pessoas pelas quais lutei na guerra.

Então, subitamente, o pedido que me vem à cabeça é fácil demais.

- Vocês – Murmuro com um sorriso contido e me inclino para o bolo, soprando cada uma das velas com calma. Sigo o conselho que Prim me dera há muito tempo, onde dizia que eles – os desejos - se tornam mais fortes quando os faz de olhos fechados.

Os reabro e vejo a confusão no rosto de todos, mas deixo isso para lá. Delly abre um grande sorriso e ovaciona, logo sendo acompanhada pelos outros. Quando está na hora de cortamos o bolo, Haymitch volta à tona e avisa:

- É melhor Peeta fazer isso, queridinha, ou você vai acabar com a obra de arte dele.

Para sua surpresa, concordo com uma risada baixa:

- Tem razão – Seus olhos saltam das órbitas e ele até engasga com a bebida. Peeta ri e tira a faca da minha mão, cortando a primeira fatia com habilidade.

Resolvemos pular a cerimônia do 'primeiro pedaço' pois todos sabem quem é o merecedor dele. Cada um pega sua parte e nos reunimos na frente da lareira, envoltos na animada atmosfera que Thom e Delly criaram com seu jogo de perguntas e respostas.

- E então – Começa após engolir um pedaço do bolo, que por sinal, está delicioso. O que é – claro – o esperado de Peeta e seu talento para criar – Qual foi a pessoa mais estranha que já conheceram?

- Effie Trinket – Eu, Peeta e Haymitch falamos em coro, sem planejarmos. Nos entreolhamos com uma expressão surpresa e rimos alto por algum tempo até Peeta se manisfestar:

- Hoje será um grande, grande dia! - Imita e Haymitch balança a cabeça, reprovando-o.

- Oh, Haymitch – Irrito-o com a voz arrastada – Sabemos que você sente falta dela, vamos lá, admita!

- Nunca! - Rosna para mim e cerra os olhos, quase irado por lembrar da enérgica mulher da Capital que foi nossa acompanhante por dois anos.

Pensar no passar dos anos e estar em um aniversário me faz lembrar de outra coisa.

- Quando é o seu aniversário, Haymitch? - Pergunto com o cenho franzido, sentindo-me estúpida por não ter me importado com este detalhe antes.

- Ah, queridinha, você sabe que parei de contar os anos há muito tempo. Não me encha com essas perguntinhas idiotas... - Gesticula e revira os olhos, dando um gole rápido em sua pequena garrafa. Não fico magoada com a resposta hostil de Haymitch, já estou mais que acostumada e esperava algo do tipo. Então, olho para Peeta, sentindo-me ainda pior, e refaço a pergunta:

- E você?

Ele dá um sorrisinho contido, mas é interrompido por Delly, que se intromete na conversa.

- É em novembro, não é? 9 de novembro?

- Sim, Delly – Peeta assente e ri de leve – Você estava lá me parabenizando nesse dia, lembra?

- Nem me lembre! Aquela tentativa frustrada de bolo! - Ela ri e se envolve na atmosfera de 'melhores amigos' que eles criaram sem perceber. Thom mal percebe o que está acontecendo aqui, mas meu mentor e Sae trocam um olhar preocupado e depois voltam-se para mim. Não sei que cara devo estar fazendo agora, mas não é uma muito boa.

- Não se preocupe, Katniss ainda é pior que você – Cerro os olhos com seu comentário e ele afaga minha mão por um breve momento.

- Oh! Falando em Katniss... – Greasy Sae, que está com sua neta adormecida no colo, lança um olhar malicioso para mim e Peeta – Quando vocês dois vão se casar?

- Eles já não tinham se casado? - Thom arqueia uma sobrancelha, confuso e Delly dá uma risada nervosa, satisfeita em nos ver em uma situação constrangedora. Não é muito comum, mas tenho a impressão que meu rosto está esquentando.

- Aquilo foi história – Haymitch explica e vira a cabeça para nós, interessado demais na resposta.

Peeta nem mesmo espera por minha permissão, ele coloca o braço nos meus ombros e me puxa para perto, falando tranquilamente:

- Nós já moramos juntos – Suspira e força um sorriso para nossos amigos – O que falta para isto ser casamento?

Automaticamente encaro Haymitch, chocada com as palavras de Peeta. Meu mentor mexe os lábios silenciosamente:

- Eu te disse.

Nunca tinha parado para pensar no que Peeta acha que somos, já que eu sempre fugi dos rótulos para nossa relação. Entretanto, pensando bem, por quê não admitir? Que tipo de relação seria esta, se não um casamento informal? Lembro-me com perfeição do meu pai chegando das minas e minha mãe indo recebê-lo com um sorriso e um beijo de boas vindas. É quase a mesma coisa que faço com Peeta todos os dias.

Tudo bem, respiro fundo e tento me acalmar, isso aconteceria mais cedo ou mais tarde.

E quando é que vocês vão lá no Edifício da Justiça? - Delly pergunta, ansiosa.

Peeta fica rígido ao meu lado, sem saber que resposta dar, com medo de ultrapassar algum limite entre nós. Olho-o com um sorrisinho tranquilo no rosto e volto-me para Delly:

- Não sei – Dou de ombros e entrelaço meus dedos nos de Peeta, que franze o cenho e tenta entender o que está acontecendo – Talvez em breve, quem sabe.

A resposta agrada a todos, ou melhor, quase todos, pois Haymitch cruza os braços, tentando decifrar minhas palavras e Peeta mantém o silêncio, tentando fazer o mesmo.

Eles vão voltando ao normal conforme a conversa continua, escapando para outros assuntos menos constrangedores. Quando passa das oito horas, nossos convidados se despedem e me parabenizam mais uma vez com um abraço apertado – Greasy Sae também belisca minha bochecha. Por fim, restamos eu, Peeta e Haymitch, lidando com a louça em um silêncio perturbador.

- Você mentiu muito bem hoje, queridinha – diz Haymitch quando me passa um prato molhado – E eu achando que você nunca iria melhorar na atuação.

Largo o prato na bancada com força, quase o quebrando e os dois pulam com o baque da porcelana no mármore. Encaro Peeta e sua expressão assustada, até que apoio os cotovelos e falo lentamente:

- Eu não estava mentindo.

Haymitch dá uma risada, provavelmente achando tudo muito engraçado. Fecho a cara para ele, controlando a vontade de socá-lo.

- Ah, é mesmo? - Me passa outro prato, despreocupado com meu iminente surto de fúria – Então está dizendo que vai se tornar a Senhora Mellark?

Para responder sua pergunta, não faço contato visual com nenhum dos dois, porém, meu tom de voz se torna ríspido, deixando claro meu desconforto.

- S-sim – Engasgo, mas tenho certeza que ambos ouviram muito bem – Por acaso existe alguma nova lei que proíba o Tordo de se casar, uh? Por que é tão complicado para você ver que talvez eu queira isso, Haymitch?

Não sei como ele está reagindo, mas o deixei sem palavras.

- Katniss... - Peeta toca minha cintura, sua voz está trêmula. Desço o olhar do teto e encontro seus orbes azuis, que estão apavorados e brilhantes com a esperança que acabo de lhe dar – Real?

Ele nem se atreveu a falar 'não real' desta vez, com medo de que eu me lembre que há esta opção.

- Real – Sustento a resposta com uma expressão séria e Peeta tensiona os lábios, contendo um sorriso. Não sei o que está se passando por sua cabeça, mas sei que acabo de quebrar mais uma barreira entre nós, que fora imposta por mim mesma.

- Conversamos sobre isto depois, tudo bem? - Segura meu queixo e me dedica um olhar de aviso. Só então noto que ele também não acreditou em mim.

Olhe a que ponto cheguei, tão convencida a não criar nenhum laço duradouro, que agora nem Peeta acredita mais em mim. Sei que fui difícil e me opus, e mesmo com a minha desconfiança em relação a tudo passar a dar certo daqui em diante, minha opinião pode sim ter mudado. Não é impossível.

- Eu adoraria ficar para assistir uma discussão – Haymitch anuncia sarcástico e dá tapinhas em nossos ombros – Mas preciso cuidar dos meus gansos.

- Você não cuida deles, Haymitch – Respondo com um tom morto, no modo automático.

Pelo canto dos olhos, vejo-o dar de ombros e se dirigir à porta dos fundos, localizada ali mesmo na cozinha. Peeta o cumprimenta novamente, mas logo está parado na minha frente, com uma expressão cautelosa e mãos vagando no ar, procurando algum lugar para se apoiarem. Por fim, elas encontram minha cintura.

- Katniss... - Ele começa lentamente, mas fecho a cara e cruzo os braços.

- Eu estou falando sério! - Bufo e respondo irritada – Eu quis dizer aquilo!

- Tem certeza que não falou aquilo só para me agradar pelo o que eu fiz hoje? - Arqueia uma sobrancelha, sua palavras me dão um tapa na cara com o excesso de sinceridade.

- Não... - Não cedo e isso o faz suspirar. Peeta se inclina e me dá um beijo superficial e então se afasta para terminar de arrumar as coisas.

- Vamos só esperar termos um pouco mais de idade, pode ser?

Sei que se dependesse de Peeta, estaríamos indo ao Edifício da Justiça neste exato momento desde que eu disse 'Real', mas ele ainda não acredita em mim e quer me dar todo o espaço possível para repensar minhas futuras ações.

Provavelmente não tocaremos mais neste assunto por um longo tempo, até que eu insista.

[…]

- O que você quis dizer com aquele pedido? - Sobressalto-me com sua voz e me viro para poder encarar seu rosto cansado. Seus olhos estão fechados, mas se abrem para me observarem também.

- Do que está falando?

- O pedido... - Explica devagar, tomado pela exaustão – Quando apagou as velas.

- Ah! - Faço uma expressão surpresa. Achei que tinha entendido o que eu quis dizer com aquilo. - Não é nada, é bobo.

- Bem... - Peeta dá um sorriso que me faz sorrir junto sem querer – Eu quero entender.

- Eu só... - Hesito e ele me incentiva, me apertando com mais força – Desejei que pudéssemos fazer isso mais vezes, reunir os amigos, ter momentos normais como esses, sem dor ou desespero. Eu desejei uma vida normal para cada um de nós, pedi para os fantasmas nos deixarem finalmente. – Estremeço com o flash da garota com uma trança loura caindo nas costas do uniforme branco dos médicos rebeldes. Eu não posso esquecer Prim, nunca conseguiria, mas ela se tornou uma espécie de assombração para a minha vida, assim como todas as outras mortes.

- Isto é lindo, Katniss – Afaga minhas costas e resgata uma lágrima que não percebi que estava caindo. Levanto a cabeça e vejo que não está mais com tanto sono. Minhas palavras inesperadas o despertaram.

Estamos muito perto agora, posso até sentir sua respiração quente tocando meu rosto. Sem mais delongas, o beijo.

A ânsia desta vez não toma conta apenas de mim, mas de nós. Peeta cuidadosamente se sobrepõe sobre meu corpo e agarro seus cabelos, trazendo-o mais para perto. Não é o beijo cândido, é algo mais agressivo e urgente, que vai nos levar para um caminho já conhecido.

Empeço-o por um único instante e sussurro:

Obrigado.

Não há mais nada a dizer, Peeta sabe que não me refiro apenas à surpresa de hoje. De alguma forma, sabe que estou falando da segunda chance que deu para mim, a chance de renascimento. Aquela mesma promessa em que penso todos os dias, de que a vida pode prosseguir, independente de como foi o seu passado. Para mim, para ele, para todos.

Finalmente, continuamos de onde paramos e este torna-se o melhor aniversário da minha vida, e não apenas isto, torna-se um dos melhores dias que vivi também.

É raro, mas só por hoje, sinto-me eternamente grata por estarmos vivos


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bem, uma de vocês pediu o capítulo do aniversário, não foi? Pois bem, aqui está! Espero que tenha gostado (Não sou boa em gravar nomes, desculpe) e as outras também.
Vou postar em breve, eu acho.
COMENTEM. Fico muito triste em ver que tem gente lendo, mas nem todas comentam. GENTE, NA BOA, OU É COMENTAR OU É FICAR SEM CAPÍTULO! É isso que vocês querem? Sem querer causar intriga, mas o povo do FF.net dá de 10 a 0 em vocês no quesito presença nos reviews! Só não sou má em postar só lá porque algumas leitoras aqui são muito-muito-muito fofas e sempre comentam, é.
MINHA INSPIRAÇÃO DEPENDE DE VOCÊS!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Coletânea" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.