Santuário escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 23
A hora da colheita


Notas iniciais do capítulo

Um lado da D. Morte que poucos conhecem.



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- Por favor, me ajudem! Eu não podia ter morrido agora!

A alma de Vladmir choramingava andando atrás de um para outro, pedindo por ajuda ou esbravejando sua má sorte. Toda vez que o viam, Penadinho arranjava um jeito de se esconder na tumba mais próxima enquanto Zé Vampir virava morcego e saia voando. Muminho tinha se fechado em seu sarcófago e Lobi chegou até a cavar um buraco bem grande para se esconder dentro dele. Será que eles iam ter que aturar aquele chato no cemitério?

A noite estava chegando quando D. Morte apareceu e todos vieram ao seu encontro.

- D. Morte, você tem que dar um jeito nesse cara! Ninguém aqui tá podendo descansar em paz porque ele fala mais que papagaio na chuva! – Penadinho implorou, sendo apoiado pelos demais.

- Calma, pessoal. Eu só o deixei aqui um pouco porque tinha outras coisas pra fazer. Agora eu vou levá-lo para o lugar dele.

- Que bom! – todos falaram ao mesmo tempo.

Ela foi até Vladmir, que ainda falava sem parar no ouvido do pobre Cranícola e o chamou.

- Venha, está na hora.

- Hora de quê? Você vai me levar de volta?

- Não. Está na hora da colheita.

- Que colheita? Eu não sou agricultor!

- Não, mas ao longo da sua vida, você semeou muita coisa. Agora está na hora de colher os frutos das suas ações na Terra. Venha comigo e bico calado.

Ele a seguiu para fora do cemitério, deixando todos ali felizes e aliviados por terem se livrado daquela alma penada. Quando ela levantou vôo, foi levando-o segurando pelo seu braço. Ela não estava com nenhuma paciência para ensiná-lo a voar.

- Para onde você está me levando?

- Você precisa ver uma coisa.

Eles voaram até chegarem a sua mansão, deixando-o esperançoso.

- Quer dizer que eu vou poder voltar para casa?

- Não. Você só está aqui para ver alguém pela última vez.

- Quem?

Ao entrar em um quarto, ele viu sua filha brincando no chão com algumas bonecas enquanto a avó dela, mãe de sua esposa, estava sentada em uma pequena poltrona lendo um livro. A menina brincava alegremente, ignorando o que estava acontecendo ao seu redor.

- Vovó, cadê o papai?

- Hã... bem... depois sua mãe vai te falar onde ele está...

- Será que ele vai brincar comigo hoje?

- Acho que não, querida... acho que não.

- Ele nunca brincou comigo... – ela levantou-se do chão e foi até uma gaveta buscar alguma coisa. Quando voltou, mostrou uma folha de papel para sua avó. – Aqui o desenho que eu fiz dele!

A mulher ficou examinando o desenho, sentindo a garganta apertar de tristeza. Vladmir também olhou e pela primeira vez em muitos anos, sentiu lágrimas brotarem dos seus olhos. Era um desenho dele, típico de uma criança de cinco anos. Ele segurava uma mala e tinha vários quadrados ao seu lado que pareciam prédios.

- Papai sempre faz prédios bonitos!

- Faz sim, querida.

- Tô com saudade dele...

Ele abaixou a cabeça, sentindo o coração em pedaços.

- Por favor, me dê mais uma chance, só mais uma chance! Eu prometo que farei diferente!

- Agora é tarde. Quando você teve sua chance, não quis aproveitar. Vamos embora. Ainda temos outro lugar para ir.

Após mais alguns minutos de vôo, eles chegaram a um cemitério onde ocorria um velório. Ele entrou em choque e começou a gritar sem parar quando viu o próprio corpo dentro do caixão. Seu corpo estava pálido, havia algodão em seu nariz e cravos no seu caixão cobrindo-o quase até o peito.

Sua esposa estava do lado do caixão e não demonstrava muita tristeza. Seus irmãos também estavam no velório, assim como seus sócios, alguns parentes e outros conhecidos. Não havia muitas pessoas e nem mesmo seus três seguranças tinham comparecido.

Ao ver Andréia sentada do lado do caixão, ele lembrou-se de que como viúva ela ia herdar grande parte da sua fortuna e uma raiva surda o acometeu. Tudo aquilo tinha acontecido por culpa dela, que entregou os documentos aos ambientalistas. Sem pensar em mais nada, ele tentou investir contra ela, dando socos e gritando como um louco.

- Sua vaca, desgraçada, vagabunda! Tudo isso é culpa sua! Estou morto por sua causa!

- Pare com isso, seu burro! Você está morto por sua culpa, não culpa dela! Se você tivesse se cuidado antes, nada disso teria acontecido!

- Eu estava trabalhando!

- Sim, sim... ocupado demais ganhando dinheiro e passando por cima das pessoas, não é?

Eles ficaram ali até o corpo ser enterrado. Quando os coveiros terminaram de fechar a cova e foram embora, ele ficou ali ajoelhado perto do próprio tumulo remoendo sua raiva de todos. Raiva da esposa, dos ambientalistas, de todo mundo.

- Por que você ainda carrega tanta raiva dentro de si?

- Eu perdi tudo! Perdi minha vida, meu dinheiro, minha empresa! Como você quer que eu não fique com raiva?

- Curioso que em momento algum você lamentou ter perdido sua família.

- Aquela vadia não vai me fazer falta nenhuma!

- E sua filha?

O rosto dele abrandou um pouco, mas mesmo assim ele falou.

- É por causa daquela mulher que minha filha vai ficar sem pai!

D. Morte balançou a cabeça tristemente.

- Vladmir, durante sua vida você sempre pisou nas pessoas que entravam em seu caminho para chegar ao topo. Você mentiu, manipulou, enganou e até deixou várias pessoas boas e honestas na miséria. Muitas vidas foram prejudicadas por causa da sua ambição e muitas outras teriam sido se você tivesse vivido mais. Por acaso você não se arrepende?

- Me arrepender de quê? De ter feito o que era necessário para ficar rico? Claro que não! Eu vivi minha infância inteira na pobreza, onde mal tinha o necessário! Enquanto outras pessoas se esbaldavam, eu passava necessidade! Eu apenas peguei o que era meu de direito!

- Mesmo passando por cima dos outros?

- Quem mandou ficarem no meu caminho?

- Então você não se arrepende de nada? Nem mesmo de não ter passado mais tempo com sua filha?

- Eu dava a ela o melhor e teria dado muito mais se não fosse aquela vaca!

- Então acho que você não tem mais concerto.

- Por que me julga desse jeito? Você não sabe pelo que eu passei na minha infância!

- O problema nem sempre é o que nos acontece e sim como reagimos ao que nos aconteceu. Outras pessoas já passaram por coisas muito piores e nem por isso se tornaram frias e cruéis como você!

- Azar o delas, eu só me importo com os MEUS problemas, não com os problemas dos outros!

Ela o olhou bem e viu que aquele homem tinha o coração endurecido. Por instantes, ao ver como ele chorou ao ver sua filha, ela pensou que ele tinha amolecido um pouco. Foi um engano. Ele não tinha mudado em nada, não se arrependia do mal que tinha causado e insistia em culpar as outras pessoas por algo que foi responsabilidade sua. Diante disso, ela não teve outra escolha.

As nuvens do céu cobriram a lua, deixando o cemitério escuro. O vento começou a soprar e mesmo sendo um fantasma, ele sentiu um frio cortante lhe atravessando. Uivos, gritos e assovios foram ouvidos de toda parte e um medo irracional começou a invadir seu coração.

- O q-que e-está acontecendo? – ele perguntou tremendo de medo.

D. Morte não respondeu nada e ele viu que sua fisionomia tinha endurecido de uma maneira assustadora. Seu olhar adquiriu um brilho cruel e ela levantou um dos braços. Sombras se formaram ao redor da sua mão e ao redor do pescoço e das mãos de Vladmir. Aos poucos, as sombras foram se solidificando até se transformarem em uma grossa corrente.

- Não, espere! O que você vai fazer? Me solta agora mesmo!

- Te soltar? – ela deu uma risada sinistra, enrolou a corrente em sua mão dando uma volta e com um puxão forte e brusco, fez com que o rosto dele se aproximasse do seu.

Ele se encheu de terror quando olhou nos olhos dela, que tinham se tornado cruéis e demoníacos.

- Agora, seu tolo, está na hora da sua colheita!

- M-minha colheita? Como assim?

Sombras foram surgindo de todos os lugares e rodeavam os dois gritando e rindo de maneira insana, parecendo lobos famintos em volta de uma caça. E Vladmir era a sua caça. Com outro puxão forte, que o fez gritar de dor, ela estendeu a corrente para as sombras e falou com a voz baixa e num tom frio e cruel.

- Aqui está. Divirtam-se!

As sombras agarraram a corrente e saíram arrastando Vladmir, que gritava e de debatia implorando por misericórdia.

- Por favor, isso não! Me ajude, eu faço qualquer coisa!

- Tarde de mais. Agora você terá que colher tudo o que plantou.

Ele foi arrastado até desaparecer debaixo da terra, sendo seguido pelas sombras. A nuvem que cobria a lua desapareceu e o local ficou iluminado de novo. D. Morte colocou sua foice sobre o ombro, saiu dali assoviando como se nada demais tivesse acontecido e voltou para o seu cemitério. Chegando lá, ela viu seus amigos ao redor de uma fogueira assando marshmallows.

- Ô D. Morte, chega aí! – Penadinho chamou estendendo para ela um graveto com dois marshmallows.

- Hum... delícia! - Ela sentou-se junto com os amigos para assar seus doces. Sua fisionomia estava serena e um leve sorriso enfeitava seus lábios.

(Lobi) – E aquele chato, o que foi feito dele?

- Eu o levei para um lugar onde terá algum tempo para refletir sobre a vida dele. Não se preocupem, um dia ele vai aprender e aí terá outra chance para viver na Terra.

Eles não perguntaram mais nada e o assunto se desviou para algo mais divertido e interessante. Ninguém notou que um último brilho cruel tinha passado por seus olhos antes de seu olhar ficar tranqüilo novamente. Ela colocou seus marshmallows sobre as chamas para assá-los enquanto conversava com os amigos contando histórias engraçadas sobre suas tentativas de levar as pessoas.

Ninguém ali conhecia aquele outro lado do seu trabalho e ela não fazia questão falar nada sobre aquilo. Era algo que ela guardava somente para si.  


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