Carvão Em Pérolas escrita por Milady


Capítulo 15
15. “Lets me hear you say you're never far away"*


Notas iniciais do capítulo

Olá, galerinha.
Desculpem o atraso. Trabalho + cansaço + falta de inspiração. Por isso não respondi aos comentários, mas quero agradecer a todos. Fico tão feliz em lê-los... Vocês não tem ideia!
Peço desculpas aos que ficaram 'chocados' com os relacionamentos do Peeta, no capítulo anterior. Sobre ele ter tido um 'caso' com uma mulher mais velha, me inspirei no filme "O leitor" e na história de uma amigo meu. É que eu achei tão bonitas as cumplicidades entre as partes envolvidas nessas duas histórias, e sendo o Peeta tão do jeito que é, com uma figura materna não tão afetuosa (pelo menos, é o que nos é passado nos livros), pensei que um referencial feminino no lado sentimental seria interessante. Mas é isso, eu acho sim que ele teve relacionamentos antes, devido a sua maturidade diante das demonstrações de afeto... Sendo mais difícil para a Katniss, por não ter vivenciado esse aspecto em sua adolescência.
Agora, chega de lengo-lengo. Espero que gostem do capítulo =***



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Os cinco dias que se seguiram foram basicamente para iniciar nosso aprendizado acerca da nova política de Panem. Tínhamos muito o que conhecer: quem eram as pessoas de confiança, quem tomava conta do quê, como os Distritos estavam se reestruturando...


Effie organizou um cronograma de estudo de duas semanas, de forma a não prejudicar nossas atividades diárias (como se eu e Haymitch tivéssemos realmente alguma coisa para fazer... o único útil naquele grupo era Peeta!). Então, basicamente, acordávamos, Peeta corria até a padaria, verificava se estava tudo bem e, voltava para casa. Em meu escritório, nos reuníamos ao redor de livros, mapas, listas, fotos e uma coisa esquisita, que Effie chamava de ‘computador’.           

Fazíamos tudo devagar, para que não ficássemos sobrecarregados com tantas informações. De certa forma, eu preferia o treinamento para os Games, me permitia estar em movimento, e ficar sentada, só absorvendo tudo, me deixava extremamente impaciente. Então tínhamos uma pausa para o almoço. Peeta voltava à padaria e eu ia à floresta, ou à escola, ajudar novamente. Haymitch, certamente iria beber. No fim da tarde retomávamos nossa preparação e assim ficávamos até o jantar.   

Eu estava exausta. E isso ajudava a dormir à noite.

Peeta voltou para minha casa... para o meu quarto. Mas desde a nossa briga, ele não me tocou mais. A verdade é que eu me sentia frustrada. Beijos castos antes de dormir e abraços durante a madrugada. Mas eu simplesmente não conseguia demonstrar o quanto sentia falta dele. Ou talvez, não quisesse, afinal, ele havia jogado todas aquelas informações em cima de mim e ainda estava magoado?


Tudo bem, eu pedi por aquelas informações... Ele aceitou que eu tomasse o chá... Então eu realmente não tinha que ficar correndo atrás de sua atenção.

Tinha?

A verdade é que ele estava muito sério durante essa preparação. Muitas vezes eu podia perceber seus músculos tensos ao receber tantas notícias, ao saber sobre as pessoas torturadas e os métodos utilizados. Acredito até que ele teve alguns flashes do telessequestro, e isso também me assustava.       

Então eu pegava tudo o que eu podia. Seus braços ao meu redor, sua respiração tranqüila ao pegar no sono... seus beijos suaves de boa noite.    

Não estava sendo fácil para ele. Eu sabia disso.  E eu precisava me lembrar disso. O tempo todo para não me sentir mal ou raivosa.


O problema é que eu também estava triste, magoada, assustada. Então meio que estabelecemos um espaço pessoal durante o dia. Eu voltei à fase de não ter vontade de fazer nada. Eu fazia, não queria preocupar Effie ou piorar a situação de Peeta, mas voltou a ser muito difícil levantar da cama, comer e adormecer.

A noite passada tinha sido muito difícil. Demorei a dormir e pude perceber Peeta em um sono agitado. Antes do telessequestro eu mal podia saber quando ele estava tendo um pesadelo, agora ele já se mexia um pouco, respirava mais forte e pressionava os olhos, mesmo dormindo. Eu queria acordá-lo, mas não pude. Deslizei minha mão sobre seu peito até que sua respiração se acalmou. Então, adormeci, eu acho. No meu sonho, o som que dava início aos jogos se repetia, eu corria de encontro ao banho de sangue, mas quando entrava na Cornucópia, ela se transformava em um labirinto e aquilo me sufocava.         

Acordei e Peeta não estava comigo. Não o achei no quarto, no banheiro. Fui até as escadas e antes mesmo que pudesse chegar ao último degrau, o vi dormindo tranquilamente no sofá. Subi silenciosa e passei o resto da noite cochilando, sonhando, acordando...


Vi quando Peeta voltou ao quarto, tomou seu banho e se preparou para ir trabalhar. Esperei que ele saísse e me vesti. Corri para a floresta. Não queria caçar, eu só precisava sair de casa.


Mas quando ultrapassei a cerca desativada, e caminhei mata adentro senti um vazio inexplicável no peito, como se eu fosse a única pessoa viva em todo o mundo.  Todo aquele espaço e somente eu ali. Árvores e mais árvores. Pude perceber vários animais pequenos que eu poderia abater facilmente se estivesse com meu arco. Mas eu não estava. Meus pés me levaram até o lago do meu pai e finalmente pude escorregar até o chão.


E chorar.


Eu não sabia porque estava chorando, apenas sabia que queria chorar, então eu o fiz. Eu lembrava de tudo e de todos e me sentia cada vez mais sozinha no mundo. Um medo aterrador de perder Haymitch de vez para a bebida. Ou de Peeta ter um surto e nunca mais voltar...


Fiquei ali por um tempo que não percebi passar até que me lembrei da preparação.  Enxuguei os olhos e me forcei a levantar, caminhando apressada para casa.


Chego e vejo que os outros já estão lá. Peeta me olha uma indagação no rosto e eu apenas digo que estava na floresta.          

“Você está mesmo bem, querida? Esteve chorando?”         

Effie nunca é o exemplo de descrição.         

“Não chorei. Foi só uma noite insone... Mas estou bem.”   

Ela me sorri. Ninguém acreditou, eu sei, mas respeitam minha privacidade. Esse é um dos motivos de eu os amar tanto.  

“Ok.” - Effie bate palminhas como uma professora ensinando a alunos de 9 anos - “Vocês precisam saber também, como se dá a distribuição de renda no novo governo.” - ela faz uma pausa didática - “Ao fim do mês, toda a produção de todos os distritos são contabilizadas por suas equipes financeiras, ao mesmo tempo em que as necessidades são relatadas pelos secretários de abastecimento. Isso é feito sempre um mês a frente, para evitar a escassez. Tudo isso é repassado para a Capital, onde um conselho de distribuição de mercadorias, composto por um membro de cada distrito se reúne de forma a realizar a partilha da melhor maneira, tanto de mercadorias, quanto de lucro. Essa partilha está dando origem a um comércio...”   

Então eu pulo na cadeira. Um ronco, alto, me assusta e olhamos para lado. Haymitch está com a cabeça pendendo em seu peito... dormindo.     

Encaro Effie, me sentindo nos tempos da escola, quando esperava por uma bronca da professora. Ela está vermelha. Escutei a risada de Peeta do meu lado e não pude deixar de sorrir também.         

“Haymitch!”

Effie gritou e Haymitch pulou da cadeira, engasgando-se no meio de mais um ronco. O som da bronca de Effie misturado às gargalhadas minha e de Peeta. Haymitch, ainda sonolento tenta argumentar com Effie, dizendo que estava prestando atenção e de repente, tudo se transforma em uma discussão, da qual, Peeta e eu fugimos.      

Peeta volta para a padaria, dizendo que almoçará lá,  e eu fico em casa. Preparo alguma coisa para comer. Deixo comida para Effie e Haymitch e subo para o quarto... Preciso tentar dormir um pouco.   

Acordo com Peeta me chamando para continuarmos. Pelo que pude entender, Haymitch também tirou um cochilo à tarde, mais para aquietar a língua ferina de Effie, do que por vontade própria.     

Sinto que minha cabeça está prestes a explodir quando Effie encerra o dia.Apesar de ter dormido, estou cansada e sem humor algum.     

Subo e tomo um banho demorado, enquanto Peeta está repassando algumas informações. Como ele consegue?           

Entrei no quarto e Peeta já estava me esperando sair. Desci e tomei uma xícara do chá, mais por vontade de estabelecer um hábito do que qualquer outra coisa, e subi. Encarei o vidro de óleo perfumado que Effie me deu sobre a penteadeira. Segundo ela, o clima do D12 deixava a pele muito ressecada, blá, blá, blá...  Eu tinha usado uma vez desde então. Desviei o olhar. Não havia necessidade de estar perfumada. Engatinhei sobre a cama e me acomodei sob os lençois. Foi quando fechei o olho que eu ouvi um barulho vindo do banheiro. Era como se algo tivesse batido no chão, algo de metal e outra coisa que eu não conseguia identificar. Logo após, consegui ouvir também um gemido fraco e foi isso que me despertou completamente.  

Pulei da cama e corri para a porta do banheiro.       

“Peeta?”

Bati na porta. Nada.


“Peeta?” - algo muito ruim começou a crescer dentro de mim.       

“Estou bem!” - a voz dele tinha um tom diferente, o que não era nem um pouco tranquilizador.

“Peeta, abre a porta!”

“Não, Katniss... Já disse que estou bem!” - ele estava muito irritado, isso eu podia perceber.      

Corri até a gaveta e peguei a chave extra, que abria a porta do banheiro por fora. Meus dedos trêmulos enquanto tentava encaixá-la na fechadura.      

“Katniss, não!”


Foi a última coisa que ouvi antes de abri a porta em um rompante.

“Katniss! Sai daqui!”

Fiquei paralisada por um momento.  Peeta estava caído no chão somente de boxers, uma de suas pernas inteira... e a outra  faltando um bom pedaço abaixo do joelho. Sua perna mecânica há alguns centímetros de suas mãos. Quando Peeta se virou para mim, sua expressão se contorcia em um misto de vergonha e ira, seus olhos estavam marejados e ele gritou para mim.

“SAIA!”

Fui até ele, me abaixando para ajudá-lo e estiquei a mão para ele, mas ele a empurrou com um movimento brusco, não típico dele.     

“Peeta...”

“EU JÁ DISSE, SAI!!”        

Senti um calor crescendo no fundo do meu estômago. Eu estava com raiva dele. O motivo? Não fazia a menor ideia.


“Não!”

“Me deixa, eu posso fazer isso!”      

“Sim, eu sei que pode, mas eu quero ajudar!”          

Sem esperar resposta,  ajudei Peeta a se erguer e o apoiei enquanto ele pulava até chegar a borda da banheira, onde se sentou.  Ele não me encarava, apenas enxugou os olhos com as costas da mão e ficou olhando para o chão. Fui até a perna mecãnica e a trouxe para perto dele. Não podia negar, aquilo era muito estranho e me causava uma sensação que eu não conseguia decifrar. Ele deve ter percebido meu olhar.  

“Não foi culpa sua.” - mas sua voz estava mais para fria do que confortante. Como se ele estivesse tentando convencer a si mesmo - “Você salvou a minha vida”.

“E você salvou a minha.” - eu disse impaciente - “Estamos quites!” - um momento constrangedor de silêncio se estabeleceu e eu o quebrei antes que me sufocasse - “eu fiquei preocupada... o que houve?”       

“Eu estava limpando... Tem que limpar as junções de vez em quando...” - ele disse um pouco mais calmo, mas ainda assim sem me olhar. - “Ela escapou da minha mão... eu escorreguei... não sei direito.”     

Respirei tentando me acalmar. Tentando me acostumar.     

“Por que você não me chamou? Por que não pediu ajuda?”

“Eu nunca precisei de ajuda antes... Sempre fiz isso sozinho.”       

Senti raiva. Como assim ele vinha com toda aquela história de eu não estar mais só, de sermos um casal e ter que partilhar tudo... E depois me falar uma coisa dessas?          

Eu queria gritar isso na cara dele, mas sei que seria muito pior. Então me sentei ao seu lado e trouxe seu rosto devagar, para que me olhasse.           

“Você não está sozinho... Não mais.” - ele trincou o maxilar - “Deixa eu ajudar?”


Como ele ficou em silêncio,  tomei aquilo como um consentimento e peguei a perna mecânica, me preparando para sentar no chão.          

“Os parafusos e a chave estão sobre a pia.” - a voz dele estava num tom mais ameno agora.       

Eu tentei um sorriso pequeno, mas ele apenas desviou o olhar.       

Com as pequenas peças nas mãos, sentei aos pés dele observando e buscando alguma forma de iniciar.

“É só encaixar e parafusar.”  

Eu acenei positivamente e iniciei meu trabalho. Nunca antes tinha parado para olhar de verdade a nova perna de Peeta.  Obviamente, eu já a tinha visto, mas observado, não. Eu ficava incomodada e acreditava que ele também. Então eu geralmente, não olhava diretamente. Mas, vendo assim de perto, não pude negar a perfeição do trabalho da Capital.


A “panturrilha” mecânica é idêntica à verdadeira. É possível perceber que é de metal, por dentro e algum tipo de plástico que não conheço, mas o peso também confere com o de uma perna normal, e um material da mesma cor de sua pele, macio, reveste toda a perna.  Logo abaixo do joelho de Peeta, está fixada uma base de metal cirúrgico, como se ela saísse de dentro da carne, talvez esteja fixa no osso... Não sei. A base fixa encaixa perfeitamente no topo da perna, então é só parafusar dos lados. Os parafusos ajustam de forma plana ao restante do material, que deve ser muito bom, pois eu sei que Peeta costuma tomar banho com ela.   

Me atrevi a descer um pouco mais o olhar e percebi que o pé é quase perfeitamente igual ao outro. Obviamente, a carne faz tudo ter uma textura diferente, mas estão lá: 5 dedos, peito do pé, calcanhar.   

Ele toca em meu ombro e eu volto a encará-lo.        

“Eu não queria que você me visse assim.”

E eu sinto meu coração quebrar. Porque percebo que jamais dei a atenção que Peeta necessitava de verdade em relação a essa mudança em sua vida.  Claro que eu me sentia culpada pelo que aconteceu. Mas eu nunca, realmente, perguntei como ele se sentia, porque logo após a arena ele estava tão radiante... E depois veio tudo, correndo, nos esmagando... É claro que o fato de ter perdido uma perna o afetaria! E não precisava ser um gênio para perceber isso... Só era preciso ser menos egoísta.       

E agora, depois de tudo, estávamos nós dois...Finalmente, completamente expostos diante um do outro. Não havia mais nada que pudéssemos esconder. Eu sentia isso.          

Ergui meu corpo e sentei ao seu lado na borda da banheira.  Minha mão foi involuntariamente para seu rosto e eu encarei seus olhos azuis... Seus cílios de ouro.

“Você é perfeito.”      

Então ele avançou para mim, me beijou e eu correspondi. Não foi suave... Não foi gradual como geralmente eram nossos beijos... Foi desesperado. Eu estava com tanta saudade da paixão de Peeta.         

De alguma forma eu me vi sentada em seu colo, segurando seus cabelos, os lábios grudados... De alguma forma eu me vi sendo levada para o quarto em seus braços, distribuindo beijos por seu rosto... De alguma forma eu senti seu corpo sobre o meu, suas mãos deslizando em mim, me despindo... De alguma forma eu não me importava mais pelas luzes acesas, eu só queria ele... De alguma forma, senti beijos sendo distribuídos pelo meu corpo e minhas unhas deslizando por seus ombros e costas... De alguma forma, aquela explosão de sensações chegou até mim sem que eu estivesse realmente esperando por ela.

“Kat... Você está tomando...?”         

“Todos os dias.”        

Não o deixei terminar a frase, apenas o puxei novamente para um beijo. Me senti preenchida por ele. Eu sorri... Verdadeiramente.  Mesmo sendo difícil respirar.... Essa sensação não foi embora quando ele desabou sobre mim, ou quando rolou para o lado e me puxou com ele... Ficou comigo, até que eu finalmente consegui dormir em paz. 



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* Never far away - Jack White         



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Bônus: “Won't you wrap the night around me?”*   



Sai do banho e sentei de frente ao espelho, espalhando um creme hidratante pelas minhas panturrilhas cansadas dos saltos e buracos ainda existentes nas ruas do Distrito 12. Após hidratar braços e mãos, apanhei a escova que estava  diante de mim, deslizando-a pelos cabelos, desembaraçando-os.

Estavam muito lisos, como são naturalmente. E muito vermelhos, graças à tinta que escolhi. Por um momento, pensei em deixá-los naturalmente louros, mas então  e afastei essas ideias que vinham de algum lugar que eu não sabia.

Ainda estava escovando os fios, quando ouvi o barulho de algo caindo no corredor. Algo macio e pesado. Levantei rapidamente e corri porta afora, deparando-me com um Haymitch de joelhos, agarrando-se às paredes para tentar se levantar.         

Suspirei e fui até ele, tentando ajudá-lo, mas sendo rechaçada com um movimento de braço que fez Haymitch cair novamente.    

“Não... Estou bem...”

“Não, você não está. Venha, deixe eu te ajudar.... Oh!”      

Quando ele ergueu o olhar para mim, percebi que ele estava com uma estranha coloração esverdeada em sua pele.           

“Estou bem...” - disse ele conseguindo se erguer, fazendo uma careta e levando sua mão à boca.           

“Oh, meu Deus... Venha Haymitch, você não vai vomitar no corredor!”   

Apoiei Haymitch com o corpo e voltei, praticamente carregando-o para meu quarto, que estava mais próximo que o dele, no fim do corredor. Ele era pesado e não estava ajudando muito. Mas, correndo e cambaleando, chegamos ao banheiro. Foram segundos até que Haymitch se curvou sobre o vaso sanitário e pude ouvir sons desagradáveis vindo de sua garganta.        

Tentei reprimir uma careta de nojo e saí do banheiro, dando-lhe privacidade. Fiquei um tempo até não ouvir mais nada, a não ser o  som da descarga, então entrei com cautela no ambiente. Haymitch estava sentado, encostado na parede do lado do vaso em um estado deplorável: descalço, uma calça marrom com manchas que, com certeza eram de bebida, a camisa suja e com os três primeiros botões abertos.    

Tentei me aproximar. O cheiro de álcool que ele exalava era praticamente insuportável. Percebi que ele estava molhado, sugerindo que havia lavado a boca na pia.           

“Você precisa de um banho...”          

Ele bufou quando me aproximei fazendo-o se erguer. Olhei ao redor. Não conseguiria levá-lo até seu quarto, pois ele estava praticamente morto em seus braços. Não conseguiria sustentá-lo embaixo de uma ducha... A única solução que me  veio a mente foi jogá-lo dentro da banheira que havia ali e foi o que fiz.  Haymitch escorregou para dentro da banheira comigo segurando-o para que não se machucasse.            

Respirei e limpei o suor da testa com a mão quando o vi quase dormindo ali. Talvez se lhe desse um banho, Haymitch ficasse alerta o suficiente para ir ao seu quarto. Aproximei-me do homem de olhos fechados e quando toquei sua camisa para soltar o primeiro botão, mãos firmes seguraram meu pulso e olhos profundos e azuis me encaravam com desconfiança. 

“O que você está fazendo?” 

“Haymitch... Não seja grosseiro... Você... está me machucando...”

Então vi confusão em seu olhar, ele me soltou devagar e deixou a cabeça pender na borda da banheira, como se estivesse pesada demais.       

“Você vai me dar banho, Effie?” - a voz dele saiu enrolada e lenta. - “Sempre imaginei como seria Effie Trinket despindo um homem...”        

Parei meus movimentos e o encarei, com olhos muito abertos e chocada, até que ouvi a risada cínica de Haymitch, seguida de sua voz alcoolizada.        

“Mentira... Nunca imaginei isso... Boneca demais... Bonecas não tem vida, não tem paixão para despir ninguém.” - e a risada rouca dele, mais parecia um rosnado de cachorro. 

Eu não soube como se sentir diante daquele comentário. Estava magoada. Estava confusa... só sabia que havia doído de alguma forma.Senti os músculos da face ficarem tensos, mas não iria chorar. Respirei fundo e engoli em seco. Iria ajudá-lo, iria ser superior ao cinismo dele... Ele teria de engolir o orgulho e agradecer na manhã seguinte. Teria sim.           

“Vamos, mexa-se... Preciso que me ajude a tirar sua camisa.” -  disse segurando seu ombro e tentando erguê-lo, sem delicadeza alguma. Ele tentou ajudar. Despiu uma manga e quando estava puxando seu braço para fora da segunda, senti a mão grossa dele em minha  face. Ergui os olhos assustada.

“Seu rosto... “ - o hálito alcóolico dele chegou em meu nariz e ele estava tão aéreo - “Tão bonito...”


Baixei o olhar concentrando-me na tarefa diante de mim, murmurando um “Pare com isso” irritado. Ele apenas voltou a tombar a cabeça para trás e fechar os olhos.          

Joguei a camisa em algum lugar do banheiro e voltei até ele. Sem pensar muito, ou mudaria de ideia, avancei novamente levando as mãos ao botão da calça dele, ouvindo mais uma risada cínica que vinha da cabeça encostada na porcelana da banheira.      

Fechei os olhos, implorando por paciência a qualquer divindade que pudesse existir. Desci o zíper com rapidez e puxei as pernas da calça, rápida e sem cuidados, livrando as pernas de Haymitch do tecido. Ouvi o som dos seus calcanhares batendo na banheira e um gemido  dele. Mas não me importei. Ajustei a temperatura da água e ligou a torneira.         

“Ahgh! Está fria!”     

“Está ótima para curar bebedeiras!” - joguei um sabonete para ele - “Lave-se!”    

E sai, deixando-o dentro da banheira. Caminhei rapidamente para o quarto no fim do corredor. Nunca tinha entrado no quarto de Haymitch, mas precisava de uma muda de roupas para ele. Cheguei à porta e não me surpreendi com as cortinas pesadas e escuras que obstruíam as janelas, as quais provavelmente nunca eram abertas, impedindo a luz do sol de entrar. Imaginava que tudo estivesse mais bagunçado, mas não. Aquela mulher, a Grease-alguma-coisa, certamente cuidava bem dos tributos vencedores do D12. Caminhei e percebeu um armário pequeno, com algumas garrafas de licor cheias. No canto do quarto, havia um cesto, com cacos de vidro e garrafas vazias. Mais para o lado, uma cômoda, onde encontrei cuecas limpas e um pijama de seda azul escuro. Em uma gaveta abaixo, peguei uma toalha grossa e voltou para seu quarto.         

Abri a porta do banheiro  devagar.   

“Eu espero que você ainda esteja decente e já tenha acabado seu banho!”

A voz enrolada veio do outro lado.  

“Pode entrar Effie...”

Entrei, evitando olhar para baixo. Ele estava sentado na banheira, os cabelos molhados e o cheiro bom do meu sabonete tomava conta do lugar.      

“Estão aqui. Toalhas e roupas.”        

“Você não vai ajudar a me levantar?”           

Verifiiquei a situação e, Graças a Deus, ele não tinha retirado a cueca para o banho.  Fui até ele com a toalha em mãos e ajudando-o a levantar-se, colocando-o sentado sobre a tampa do vazo sanitário. Esperei ele enxugar o rosto de cabelos e jogou as roupas para ele.   

“Troque-se.” - e foi caminhando para a porta.


“Sabe, eu não ligo se você me ver...”

Estanquei no mesmo lugar, de costas para ele. Aquela frase lhe era familiar...

“Eu ligo, tudo bem?” - a frase saiu de minha b oca, antes que pudesse engolí-la. E lembrei onde a ouvira pela primeira vez... Peeta e Katniss, na primeira arena.

Virei-me devagar e encarei o rosto embriagado de Haymitch, que sorria de lado.

“Aquele garoto, é um gênio!”           

Quis sorrir, pois concordava plenamente com Haymitch, mas reprimi o humor, estreitei os olhos e saí para o quarto.           

Fui até a cozinha e trouxe um copo com água. Subi e ao entrar no quarto encontrei Haymitch encostado na porta do banheiro. Ele vestia somente as calças do pijama. Era mais uma noite quente no D12.

Haymitch tinha a pele muito branca e era magro, consequência da uma péssima alimentação durante boa parte de sua vida, não porque sofresse privações como os outros habitantes do distrito, mas devido ao excesso de álcool. Eu sabia, que um dia ele fora um rapaz forte e vivo. Lembrava dele na arena em que venceu. Antes, não entendia o motivo de ele ter se tornado aquela sombra que a acompanhava uma vez ao ano nos games, mas depois de conhecer toda a força de Snow, conseguiu compreender não só seu sofrimento e dependência, mas de todos os outros tributos.           

“Estou tonto.”           

“Claro que está” - caminhei até ele apoiando-o para que sentasse na cama. Fui até minha nécessaire, em cima da penteadeira e peguei um vasilhame com pílulas. - “Engula” - disse lhe entregando o copo de água e dois comprimidos. 

“O que é isso.”          

“Engula e garanto que irá me agradecer amanhã.”   

Estranhamente, ele obedeceu sem mais questionamentos. Empurrou as pílulas para baixo com grandes goles de água. Peguei o copo e virei-me para colocá-lo sobre a mesinha e quando voltei novamente, Haymitch estava caído de barriga para cima na cama, o braço esquerdo sobre seus olhos.       

“O que você está fazendo?” 

“Estou tão... tão... tão tonto... Por favor, peça a casa para parar de girar...”           

Não reprimi uma risada pelo nariz e fui até a cama. Abaixei-me, segurei os pés de Haymitch e larguei-os sobre o colchão puxando os lençóis para cobri-lo. Tão logo o fiz, ele os rechaçou, jogando-os para o lado e deixando o peito descoberto. Ela sentei-me ao seu lado e verifiquei sua palidez, se ele estava respirando bem. Levantei devagar para não acordá-lo, mas antes que pudesse dar o primeiro passo, senti meu hobby ser puxado.           

“Onde... Onde você vai?”     

“Vou procurar um lugar para dormir.”          

“Mas esse é seu quarto, não o meu... Não é justo...”

A voz dele estava meio abafada, meio arrastada... Em um tom que estava muito engraçado. Sentei novamente na cama.  

“E o que você sugere que eu faça?” 

Ele abriu os olhos por um momento e me encarou.  

“Fique.”

“A-aqui?”

“Effie... “  - e ele tentou se erguer em um braço, mas falhando e caindo de cara no travesseiro - Eu não vou te atacar de novo... Estou praticamente morto aqui...”

Concordei internamente . Ele estava tão bêbado, que se eu o empurrasse mais forte, ele cairia no chão e, tinha certeza, não conseguiria se levantar.

Fui até o banheiro e apaguei a luz, fazendo o mesmo ao retornar  ao quarto. Caminhei para a cama, empurrando Haymitch mais para o lado, então  larguei o hobby sobre uma cadeira e enfiei-me embaixo dos lençois.

Haymitch ainda estava na mesma posição, o rosto voltado para cima. Seus olhos fechados, a respiração profunda.           

“Haymitch?”

Silêncio.

Me virei de costas para ele aninhando-se sobre os travesseiros.      

“O que é?”     

Me sobressaltei ao ouvir a voz, virando-me rapidamente de frente para ele, que encarava o teto.

“Você me assustou.”  

“Você me chamou.”   

Respirei. Ele estava tão lânguido... Talvez fosse a hora de tentar entender melhor aquele homem.          

“Por que você bebe tanto?”  

Haymitch não se mexeu muito. Apenas virou o rosto na minha direção, os olhos meio abertos, enquanto falava com uma voz rouca e arrastada.    

“Porque eu odeio a sensação que a mofina dá... E não é fácil dormir sendo um tributo. A bebida ajuda a apagar... Você sabe, não foram todos os tributos que saíram em dupla da arena e tem alguém, que compreenda exatamente o que se está sentindo, para abraçar todas as noites...”           

Então ele voltou a posição inicial e fechou os olhos. Me assustei, mas não me surpreendi com sua resposta.  Solidão  é algo extremamente doloroso.Demorei a cochilar e quando o fiz, despertei com um Haymitch muito agitado em seu sono. Ele mexia as mãos e murmurava coisas que eu não conseguia entender. Aproximei-me dele, passando a mão por seus cabelos e sussurrando palavras de conforto. Quando ele se aquietou, adormeci, sem perceber.        

Na manhã seguinte, acordei e me vi sozinha na cama. Levantei apressada e procurei por Haymitch no banheiro. Como não o encontrei, fui até o corredor e, chegando no quarto dele, o vi jogado na cama, com seus dedos ao redor uma garrafa de licor pela metade. Retirei a garrafa de suas mãos, ajeitando-o melhor no colchão enquanto ele resmungava coisas incompreensíveis

Fechei a porta devagar, pensando que meus tributos mereciam uma manhã de folga.


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*Love is blindness - Jack White


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Notas finais do capítulo

Engraçado, quando eu perco a inspiração, sempre começo a retomá-la ao pensar num ponto de vista que não seja o da Katniss. Porque dessa vez, escrevi primeiro a parte Effie-Haymitch, para poder desenvolver a cena Katniss-Peeta. Embora essa parte deles dois lidando com a questão da perna mecânica dele já estivesse programada desde o início da fic, eu simplesmentet não estava conseguindo colocar em palavras. Acho que é um ponto importante a ser abordado, pq envolve culpa, auto-estima, cuidado com o outro... Enfim, espero que tenham gostado.
Comentem, quero ver mtos comentários... Vejo outras fics com tantos comentários (4, 5 páginas) e a minha tão minhonzinha... Vocês não tem noção do quanto a expectativa pelos comentários afetam os autores rsrs
Bom, de toda forma, obrigada a quem lê e a quem comenta.
Beijos até a próxima.