A Pedra Vermelha escrita por Cambs


Capítulo 15
XIV. Pedaços




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/217812/chapter/15

O dragão agitou-se a seu lado, fazendo-o abrir os olhos já inchados para encará-lo. As asas negras do animal, que em dias melhores lembraria a cor de seus cabelos, subiam e desciam sem um ritmo certo, provocando ventos gélidos que arrepiavam a pele. Da boca do bicho os sons guturais saiam, assemelhando-se a rosnados e roncos. Sendo obrigado a sentar-se, Derek passou a mão pelos cabelos bagunçados, antes de levar os dedos até os olhos para coçá-los.

— O que é? — resmungou em voz rouca. Liem ignorou-o e permaneceu agitado até que Derek levantou e encarou-o. — O que é?

Liem resmungou mais alto, parando de balançar as asas e virando sua estranha cabeça triangular em direção a floresta. Derek resfolegou, sarcástico e cansado, murmurando coisas que nem ele próprio compreendia. Ia deitar novamente e tentar dormir, até que se lembrou de quem estava na floresta.

— Liem...?

O dragão chiou e permaneceu imóvel, deixando Derek a beira de um ataque de nervos. Pegou a lanterna que Lyra usara e entrou na floresta de forma brusca, quebrando alguns galhos em sua passagem. Com os passos rápidos, foi passando pelas árvores sem parar. Tropeçou algumas vezes e levantou ofegante, já começando a forçar os pés a continuarem, enquanto a lembrança de Annelyse desenhava a nostalgia e dor em sua mente. Poderia simplesmente voltar e esperar Lyra e Drake junto de Liem e depois dar uma olhada em Reyna, porém sabia que não conseguiria ficar parado, pelo menos não ali, tão perto do penhasco onde Annelyse perdera a vida.

Lançou a luz da lanterna para o chão e deixou um sorriso rápido surgir nos lábios. As pegadas de Lyra e Drake estavam tão vívidas a terra que até estranhou. Afinal, com a secura da terra o menor dos ventos certamente espalharia a poeira e cobriria as pegadas. Não reclame, repreendeu-se. Seguiu a trilha deixada lançando a luz ou para as pegadas descompassadas ou para os troncos das árvores. Caminhou e reclamou sempre que os galhos mais pontiagudos machucavam sua pele.

Quando finalmente saiu da floresta, entrou na clareira com um tropeço, deixando suas palmas avermelhadas e com marcas das pequenas pedras do chão. Levantou-se e olhou para frente, passando a encarar as madeiras gastas que construíam a cabana esquecida ali. Os sons encheram seus ouvidos de súbito e Derek virou a cabeça para os lados tentando encontrar a origem do som.

Não longe da cabana, mas não na floresta, encontravam-se três pequenas bolas peludas, duas com cor de chocolate e a outra com cor de amendoim, enroscadas uma na outra e chorando alto. Filhotes de lobo.

Relaxou por um segundo antes de sentir o coração indo parar na boca. Se os filhotes estavam ali, a mãe devia estar por perto. Seus olhos foram atraídos imediatamente para a entrada da cabana tomada pelo breu. Com os pensamentos altamente pessimistas, imaginou o pior e colocou Lyra e Drake em uma situação da qual desejava com todo o coração que acontecesse apenas em sua mente.

Observava a foto de modo de tão intenso que chegava até a ser assustador. Passava a maior parte de seu tempo analisando cada detalhe da imagem, mesmo que já tivesse tudo gravado em sua mente. Está ficando obcecado, Caliro, dissera Cameron. Bem, talvez fosse verdade, mas bem sabia que somente conseguiria a paz quando finalmente enterrasse o assunto. E, por mencionar Cameron, fora exatamente ele quem irrompera pela porta de modo brusco, fazendo Caliro soltar a foto e devolvê-la à mesa antes de virar-se na cadeira, postando os olhos azuis no rapaz ofegante.

— Ela fugiu — anunciou em um único ofego, esperando amedrontado pela reação do outro. — Sinto muito, senhor.

Levaram cerca de três segundos para que Caliro compreendesse o que se passava e sair correndo da sala, empurrando Cameron para passar. Subiu as escadas em disparada, passando pelos quartos fechados e silenciosos sem dar-lhes qualquer atenção, e prosseguiu com a corrida até o final do corredor, onde a última porta encontrava-se escancarada e uma prova de que seus medos eram reais.

— Ela matou um dos nossos, senhor... Não conseguimos evitar — Cameron apareceu logo depois, escorando-se à porta e respirando pesadamente, enquanto Caliro parava no centro do quarto. Perto da cama de casal, jogado ao chão, havia o corpo inerte de um dos seus funcionários. No pescoço do morto encontravam-se marcas profundas e vermelhas que tomavam a forma do objeto que as causara, era possível ver claramente o contorno das extremidades da corrente que antes servia para manter a prisioneira dentro do aposento. Logo ao lado, seguindo as marcas da corrente, cravado na jugular, havia um garfo de prata.

— E onde você estava que não impediu isso? — Caliro encarava a cama, onde havia uma bandeja praticamente intocada e lotada de comida. Aquilo era o almoço do dia, servido há mais de doze horas. Com a testa enrugada, olhou para o chão e encarou a poça de sangue que cercava a cabeça do cadáver, não deveria ter mais de duas horas. Ah, muito esperta.

— Estava com a outra, senhor.

— Mármara fugiu e simplesmente deixou Anala aqui? — Caliro virou-se, surpreso, para encarar Cameron. Quando o subordinado concordou com a cabeça, ele apenas sorriu e seguiu para fora do quarto, marchando até a outra extremidade do corredor, em direção aos portais pintados de branco que guardavam o aposento de sua outra prisioneira. — Novidades, minha querida! — disse antes mesmo de entrar no quarto.

A vergonha sobrepunha-se à dor e juntava-se ao arrependimento, que preenchia seu cérebro com tanta força quanto o sangue pulsante que saia pelas feridas doloridas. O cheiro de fuligem e sal invadia suas narinas no tempo em que a voz de Drake ecoava em seus ouvidos, dizendo coisas que ela não entendia. Naquele estado de ida e volta à consciência ela não conseguia entender nem o que ela mesma balbuciava. As únicas coisas da qual tinha certeza era de que estava ferida e que aquilo era sua culpa.

As mãos frias de Drake tentavam apertar toda a extensão dos cortes, mas era praticamente impossível. As três linhas abertas pelas garras da loba no tronco de Lyra eram maiores do que suas mãos podiam cobrir, e, infelizmente, não havia retalhos de tecidos o suficiente para fazer algo útil, além de encharcá-los de sangue.

Estava tão concentrado em parar o sangramento, que quase gritou quando viu o feixe de luz, e, logo em seguida, o responsável pela iluminação.

— Não grite — falou enquanto observava o rosto de Derek ficar mais pálido no tempo em que seus olhos castanhos e arregalados viam a quantidade de sangue que saía do corpo de Lyra. — Ande, me ajude aqui.

Ignorando o primeiro comentário de Drake, Derek largou a lanterna em qualquer canto e ajoelhou-se ao lado de uma Lyra quase inconsciente. Suas mãos assumiram posição nos lugares em que Drake não alcançava, e, juntos, começaram a tentar estancar o sangramento, cada um fazendo sua própria reza para que desse certo.

E deu. Depois de quase meia hora, mas deu.

Escondidos sobre o tecido arrancado da camiseta de Derek, os machucados de Lyra começavam a entrar em um processo de cicatrização, permitindo assim um momento de alívio para Derek e Drake. No fundo da cabana, deitada entre pedaços de madeira e espuma, estava a loba responsável por tudo aquilo. Lyra havia conseguido bater com o vergalhão no pescoço do animal e acabou deixando-o desacordado. O problema fora quando a loba caíra e acabara por passar as unhas em Lyra.

— Um de nós precisa voltar e pedir ajuda — Drake sussurrou.

— Não olhe para mim — Derek respondeu, mantendo os olhos no rosto de uma Lyra mais pálida que o habitual, que ainda oscilava entre a consciência e a inconsciência, balbuciando palavrões e piscando os olhos. Dada as circunstâncias, ela parecia bem.

— Quanto mais rápido você sair desta ilha, melhor.

— E para que voltar se não há ninguém lá? — Derek decidiu encarar Drake, mas não conseguiu sustentar o olhar do outro, desviando seus próprios olhos para qualquer outro lugar em questão de segundos. — Você pode ir. Sabe direito o que está acontecendo.

Drake não respondeu. Como Derek era teimoso, pelos céus. Observou o garoto olhar Lyra e suspirou alto, aceitando sua derrota. Ele iria, então. Montaria em Liem e, se não morresse no caminho, contaria a Allan que Lyra estava ferida. — Sinto muito — disse de repente, fazendo Derek olhá-lo confuso. — Lyra me contou.

E, assim que a compreensão apoderou-se do rosto pálido e marcado pelo cansaço de Derek, Drake arrependeu-se de ter falado. A dor nos olhos castanhos do outro era tão palpável que chegava até a doer nele próprio. Não conseguia imaginar como era ver alguém próximo jogar-se de um penhasco. Sabia, apenas, como era ter alguém próximo desaparecido. Essa era, talvez, a única coisa que compartilhavam.

— Há um resto de cama ali no canto. É seu até o meio dia — foi tudo o que disse antes de remexer-se até estar sentado de frente para o que restara da porta, que se encontrava agora escancarada e prendendo-se à estrutura apenas por um dobradiça enferrujada.

— Pensei que precisávamos ir pedir ajuda — ouviu Derek dizer, e, logo em seguida, sua movimentação.

— E precisamos, mas ninguém vai sair agora — apoiou o cotovelo em uma das pernas dobradas antes de deixar o queixo ir ao encontro da palma de sua mão. Um suspiro escapou de seus lábios finos e ele respirou fundo. — Já tivemos partidas demais para uma única noite.

Parou em frente ao espelho que tomava conta de metade da parede no hall de entrada, bem de frente para a porta, fazendo com que qualquer pessoa que entrasse na casa fosse obrigada a ver seu reflexo ali. No caso dela, servia apenas para mostrar a condição deplorável em que se encontrava. Com a luz que entrava pelas janelas do cômodo ao lado, ela conseguia observar seu reflexo que exibia os múltiplos arranhões que cobriam sua pele cor de café, os cabelos negros assemelhavam-se a um ninho de pássaro enfeitado pelas verdes folhas de árvores que encontrara pelo caminho, o vestido escuro entrava-se sujo e rasgado. Ouvia claramente seu estômago reclamar da falta de comida, sua boca estava tão seca que aguardava pelo momento em que sairia poeira no lugar de ar.

Preciso comer alguma coisa. Pensou, faminta, virando a cabeça para os lados ao tentar decidir em qual deles ficaria a cozinha. Não fazia nem três horas desde que conseguira fugir e já tinha quase certeza de que seria recapturada. Talvez fosse porque continuava no perímetro, escondia na casa mais distante do hotel que Caliro usava como base de comando. Sim, muito idiota de sua parte acreditar que eles não procurariam pela região, mesmo que não tenha lógica alguma pensar que o prisioneiro mantivera-se no perímetro da prisão.

Gemendo, forçou as pernas a seguirem para a esquerda, passando por portas fechadas até encontrar a tão desejada cozinha, coberta por um breu quase palpável, exceto pela pequena e inútil luz que vinha de um relógio digital em cima de algum eletrodoméstico, cuja única função era informar que já se passavam das quatro da madrugada. Tateou as paredes em busca de um interruptor e, assim que a luz preencheu o espaço, sentiu como se uma luz acendesse em sua cabeça também.

Toda a ajuda que precisava estava bem ali na sua frente. Céus, como pode esquecer logo daquilo?

Com o punho fechado, ela trouxe o braço para mais perto dos olhos, analisando sua tatuagem e declarando-a em perfeito estado, com todas as linhas estranhas do mesmo jeito que sempre estiveram. Procurou pela cozinha algum objeto afinado e, assim que teve em mãos uma pequena faca, mediu uma pequena distância da ponta do desenho em seu antebraço e desferiu um pequeno corte em sua pele. Esperou o sangue escorrer até as linhas pretas e rezou para que Tryna não demorasse.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Pedra Vermelha" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.