Linha Vermelha escrita por NaruShibuya


Capítulo 23
Capítulo 23 - Extra


Notas iniciais do capítulo

22/06/2018



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Uma infância conturbada?

 

• Ren PDV •

 

Mamãe me acordou carinhosamente. Era dia de semana novamente, e a escola já havia voltado há algumas semanas.

Por mais que eu quisesse faltar, mamãe não permitia, e para não deixar ela triste, eu não falava sobre o que meus colegas faziam comigo.

Ela estava sempre muito empolgada com as aulas, e todo dia, sem falta, ela me perguntava como tinha sido o meu dia, e só me deixava ir quando eu contava detalhadamente todos os acontecimentos em sala.

Eu inventava algumas coisas, para poder alegrar ela. Desde que o papai desapareceu, ela está deprimida, e eu sou a única coisa que ainda consegue deixá-la bem, então para não piorar a situação, eu ignoro tudo o que ocorre comigo, e a conforto com algumas mentiras colocadas estrategicamente em meu dia a dia.

Tomei banho e desci para tomar o café da manhã, e logo em seguida saí de casa.

Mamãe me acordava e saía logo em seguida para ir para o trabalho, mas eu não gostava de enganá-la, então eu sempre ia para a escola também.

Fechei o portão e me virei, dando de cara com uma menina de olhos tristes parada em frente ao portão da casa que ficava ao lado da minha. Ela tinha uma bolsa pendurada ao ombro e trajava o mesmo uniforme que eu.

Ainda sobressaltado, dei um passo para poder me apresentar, mas ela fechou sua expressão e se virou, andando rapidamente para longe de mim.

Parece que vai ser mais uma que vai entrar para o grupo de bullies do colégio que tem como alvo principal: eu.

Fui andando, cabisbaixo.

Pelo menos uma vez eu queria poder chamar alguém de amigo. Acho que é pedir demais que as pessoas consigam me enxergar além do garoto que perdeu o pai em algum lugar longe o bastante para sequer se lembrar o nome...

Avistei novamente a mesma garota ao longe. Ela parecia perdida, mas não me atrevi a tentar falar com ela novamente. Parece que ela vai ser a minha vizinha, mas ela também parece não ter gostado nem um pouco de mim.

Avistei mais alguns alunos caminhando em direção ao colégio. Ela pareceu notar também, então começou a seguir eles. Fui logo atrás, em meu próprio ritmo.

Entramos praticamente no limite do tempo para os portões serem fechados.

— Olha lá, o esquisitinho chegou! - escutei o grupinho de garotos que me atormentavam todos os dias falarem. Aparentemente quem estava no clima para começar com a chacota hoje era um dos mais velhos do grupo. Talvez o confidente do "líder", ou o melhor amigo... Se é que aquelas pessoas têm amigos.

Abaixei a cabeça e continuei andando, mas eles me interceptaram, jogando-me para o meio do grupinho, que formou uma roda ao meu redor, me impedindo de sair dali.

Logo as ofensas se intensificaram, mas como eu não reagi, e não retruquei, eles partiram para a agressão física.

Deram socos em minhas costas, estômago e peito, e chutes em minhas pernas, em locais onde não poderia ser visto, porque são locais escondidos pelas roupas.

Quando finalmente se deram por satisfeitos, me empurraram para o chão e saíram de lá, rindo.

Me sentei, tentando recuperar parte do fôlego para poder me levantar, mas não consegui.

Sentia-me revoltado por ninguém ter impedido eles, mas também não me queixei. Por experiências prévias, não adiantaria reclamar também. Pelo contrário, sempre geravam represálias.

Me apoiei em uma árvore no pátio, tentando me situar. De forma rápida, vislumbrei a garota de hoje cedo me olhando pela janela de minha sala de aula.

Mesmo estando relativamente longe, eu via uma certa pena em seu olhar, e um certo horror também. Mas o maior sentimento que mostrava em seu rosto era a apatia.

Ela estava me olhando, mas ela não me via de fato.

Por algum motivo, senti como se agora tivesse força de me levantar, então vagarosamente me apoiei com as mãos e me ergui.

Ainda meio curvado de dor, e envergonhado por ter sido humilhado mais uma vez, fui andando vagarosamente até minha sala.

Não sei qual é o tipo de atividade que a turma está, mas a sala está vazia. E agradeço fortemente por isso.

Me arrastei até meu lugar e me joguei na carteira, e ali fiquei o resto do dia, sem prestar atenção em nenhuma das aulas.

Quando deu a hora de ir embora, me levantei e fui andando vagarosamente para casa, sentindo todo meu corpo doer.

Cheguei em casa e rapidamente coloquei minha roupa na máquina para lavar, junto com todas as outras roupas da semana, que mamãe não teve tempo de lavar, e esperei que o ciclo estivesse terminado para estender no varal. Agradeci mentalmente que meu uniforme não estivesse rasgado, porque costurar é algo que está fora de meu alcance, e mamãe iria desconfiar se eu pedisse para que ela costurasse.

Quando mamãe chegou, minha roupa já estava seca, então rapidamente a peguei e a arremessei em meu quarto, para simular que eu tinha chegado do colégio e a larguei ali de qualquer jeito, para poder fazer as tarefas domésticas.

Como não prestei atenção nas aulas, eu não tinha dever de casa, então desci as escadas e fui para a cozinha, para poder fazer a janta enquanto mamãe escutava sobre meu dia e descansava.

O resto da semana seguiu o mesmo ritmo: acordar, me arrumar, ser humilhado e surrado, voltar para casa todo dolorido, enquanto fingia que estava tudo bem para poder não preocupar minha mãe.

Quando o final de semana finalmente chegou, eu estava destruído fisicamente e psicologicamente. O mais cansativo de tudo era não deixar mamãe notar.

Às vezes, aos finais de semana, entretanto, eu duvidava de que ela não sabia realmente de nada, porque ela simplesmente insistia para que eu dormisse, e se negava a me deixar ajudar em qualquer coisa na casa.

Levantei da cama e desci as escadas pesadamente, ainda sentindo todos os músculos doerem, e andei até a cozinha. Mamãe estava encostada no balcão, esperando a água para o chá terminar de ferver. Me aproximei e a abracei carinhosamente, suprimindo a careta que a dor quase me proporciounou.

— Está cedo, Ren. Você pode voltar para a cama.

Fiz que não e disse:

— Já dormi o suficiente. Vim ajudar você - ela sorriu minimamente.

— Vá descansar, ou saia para brincar com algum de seus amigos. Você já fez demais no decorrer da semana, enquanto eu trabalhava.

Desisti sem nem mesmo protestar. Eu já sabia que ela não ia me deixar ajudá-la.

Subi as escadas novamente para o meu quarto, peguei algumas roupas e fui para o banheiro. Tomei banho, escovei os dentes e saí de casa.

Comecei a andar sem rumo, apesar de eu já saber para onde os meus pés me levavam. Avistei o início do gramado ao longe, e não pude evitar de sorrir.

Era como se esse lugar me fizesse esquecer de toda a tristeza que eu vinha acumulando dentro de mim no decorrer da semana.

É tão relaxante que eu só percebo que fiquei horas e horas aqui quando anoitece, então sem vontade nenhuma, eu retorno para casa.

Meu sábado passou assim, sentado, ali no gramado, observando as estrelas sobre minha cabeça, ou a cratera à minha frente.

Meu domingo, por outro lado, foi melancólico. A lembrança de que segunda feira já estava chegando novamente me deixava triste, porque eu sabia que todo meu inferno pessoal iria recomeçar no momento que eu saísse de casa...

E assim se deu, até o momento que eu acordei, coloquei o uniforme e saí de casa. Novamente avistei a garota que agora, eu tinha certeza, morava na casa ao lado. Eu sorri levemente para ela, e ela, como de costume, me ignorou, virando as costas para mim.

Dei de ombros. Por algum motivo, essa atitude vindo dela, não me irrita como acontece com qualquer outra pessoa. Era como se eu sentisse que ela sente as mesmas coisas que eu, então eu ignoro.

Pouco antes dela conseguir atravessar a rua, o sinal verde para os pedestres fechou, e no momento que ela parou, o mesmo grupo de garotos que implicavam comigo todos os dias, passou de bicicleta e bateram em seu material, jogando tudo pela rua.

Eles se afastaram rapidamente, rindo, enquanto os carros atropelavam seus livros e cadernos, deixando nada mais do que pedaços de folhas jogados por todo o pavimento.

Para o meu espanto, a garota não esboçou reação. Seu olhar frio se manteve, e sua postura não se alterou um milímetro. Quando o sinal fechou novamente, ela andou pela rua, catando tudo o que tinha sobrado de seu material e guardou em sua bolsa, que não tinha sido atingida por nenhum veículo.

Senti um tipo de urgência nascer em mim, aquela vontade incontrolável de ajudar ela, mas eu sabia que ela iria me olhar vagarosamente, apenas para depois desviar o olhar e ignorar completamente minha existência.

Sentindo um grande desconforto, atravessei a rua antes que o sinal fechasse novamente, e continuei andando, sem olhar para trás, até chegar ao colégio.

Como eu queria ser centrado como ela. Não demonstrar meus sentimentos, nem meus medos e meus desconfortos para as pessoas que estavam me fazendo mal...

Estanquei no corredor, perto da entrada da sala. Será que eles estão fazendo isso com ela porque ela mora ao lado da minha casa?

Até para eles, esse é um motivo muito fútil, não? Afinal de contas, ela acabou de se mudar para lá, e obviamente não tem nenhum tipo de relação comigo.

Suspirei, me sentindo desolado. Será que eu sou o motivo deles terem transformado ela em alvo?

Os dias passavam, as semanas, os meses, mas eles não esqueceram nenhum de nós. Éramos alvos diários de suas pegadinhas, brincadeiras sem graça, humilhações e até mesmo agressões físicas.

Passado algum tempo, eu passei a admirar a perseverança com que ela lidava com a situação. Nunca a ouvi reclamar, nem a vi fazer careta, ou sequer prestar queixa sobre qualquer um dos alunos que a atormentavam

Ela era simplesmente o oposto de mim.

Em contra partida, eu também nunca a vi conversar ou socializar com ninguém. Na verdade, as únicas vezes que eu a escutei falar qualquer coisa, foi quando os professores a chamavam para responder alguma das questões. E ela nunca estava errada.

Desde o dia que aqueles ridículos destruíram seu material escolar, ela não abre mais os livros e nem os cadernos. Provavelmente ela não quer falar para a mãe o que aconteceu, então ela disfarça quando chega em casa, assim como eu faço.

O que me surpreende é sua capacidade absurda de aprendizagem. Mesmo quando parece que ela não está prestando atenção na aula, ela sempre responde sem hesitar.

Depois de algum tempo, eu já tinha me acostumado ao sofrimento, e por mais egoísta que isso possa soar, e horrível também, agora que eu não sou o único alvo, eu não me sinto mais tão melancólico e revoltado como no início. O que me revolta de fato é ver eles fazerem exatamente o mesmo que fazem comigo, à ela.

A gota d'água, para nós dois, aconteceu de forma totalmente inesperada.

Era quinta, e estava calor. Ela sempre saía apressadamente quando o sinal soava pela escola, mas eu não me dava ao trabalho. Eu acho que ela se precipitava assim para tentar evitar que a perseguissem ou a encontrassem, mas maioria das vezes, eles estavam nos esperando na entrada do colégio...

E, como o esperado, hoje não era diferente.

Vi que eles estavam cercando ela, que estava de braços cruzados sobre o peito, com uma ferocidade diferente no olhar. Senti uma certa urgência, porque afrontar esses caras nunca terminava bem, mas o que eu podia fazer? O grupinho hoje não estava completo, mas ainda sim, eram sete alunos contra dois...

Fiquei parado, sem reação, enquanto os outros alunos se dispersavam pela entrada, sem ser impedidos, e iam embora. Quando um deles me viu, se virou em minha direção e sorriu amplamente.

— Ei, Ren, já estava pensando que ia deixar sua namoradinha sozinha hoje - zombou, empurrando-a violentamente, fazendo com que ela caísse no chão.

Trinquei o maxilar e os punhos. Aquilo já estava indo longe demais!

— Ei! - rosnei.

Eles riram e me empurraram também, e por pouco não caí sobre ela.

Me puxaram violentamente pela camisa, e eu senti o tecido rasgar. Me empurraram novamente de um para o outro, até eu ser arremessado novamente no meio do pátio. Senti meu antebraço sangrar.

Antes que eu me desse conta, senti algo sendo jogado sobre mim. Era pegajoso, mas não entendi direito do que se tratava, até tudo ao meu redor ser preenchido pela cor verde.

Trinquei o maxilar, revoltado, e tentei limpar a tinta que escorria por meu rosto.

Escutei um dos garotos xingar, alto, e quando olhei para cima, vi o rosto jovem da menina tomado de desgosto.

Não sei exatamente o que ela fez, mas parece ter dado um chute certeiro na área sensível de um deles, que agora estava no agachado no chão, amaldiçoando ela.

Quando os outros seis foram para cima dela e a bateram, eu me levantei e empurrei eles, batendo em quem estivesse no meio, da forma que eu conseguia, em meio a visão embaçada e meus olhos que ardiam, e o desespero para que nós conseguíssemos sair dali.

Me jogaram ao chão novamente, e a jogaram por cima de mim, e começaram a nos chutar.

Por algum instinto que nasceu dentro de mim, provavelmente pelo tamanho da covardia, eu me joguei sobre ela, recebendo a maior parte dos golpes.

Nossos olhares se encontraram, e nesse momento, pela primeira vez, eu percebi que seus olhos eram de um castanho dourado muito bonito. Vi um certo pavor expressado em seu rosto, mas ela não parecia mais ser capaz de se mover. Eu, por outro lado, sentia, pela primeira vez, como se eu pudesse me erguer e lutar contra tudo isso.

Quando eles pareceram se cansar e deram uma pausa, eu me levantei novamente e os empurrei, batendo em quem eu alcançasse e, para a minha surpresa, ela me ajudou.

Senti sua mão agarrar a minha e começar a me puxar para longe, quando eles finalmente se afastaram do portão o suficiente para podermos passar.

Corremos o mais rápido que nossas pernas e nossos corpos doloridos aguentaram, e então paramos, surpreendentemente, no desfiladeiro onde eu ia todos os finais de semana para esquecer das minhas tristezas.

Ela olhou ao redor, surpresa e encantada pela beleza do lugar. Sorri observando seu rosto. Ela é realmente uma pessoa incrível, e graças a ela, eu pude me defender hoje.

Ela se virou vagarosamente para mim e sorriu sem graça, e disse:

— Eu acho que já posso soltar sua mão - instintivamente a soltei também, meio corado. Não que ela pudesse perceber isso, já que eu estava coberto de tinta.

— Desculpe... - murmurei, num fio de voz. - E obrigado.

— Obrigado? Pelo que? - perguntou, enquanto se acomodava confortavelmente em uma pedra, e analisava seu uniforme minuciosamente.

— Por me ajudar, e por me dar coragem de, pela primeira vez, revidar - me sentei ao seu lado, na grama mesmo, onde eu costumava sentar, e olhei esperançosamente para o meu uniforme. Sem chance de salvação. Mesmo que ele não estivesse completamente rasgado, o que não é o caso, ele estava manchado de tinta. - A propósito, meu nome é Tsuchiura Ren, muito prazer.

Estiquei a mão para que ela a apertasse. Indo contra minhas expectativas, ela não hesitou, e a segurou no mesmo instante, sorrindo fracamente.

— Ayuzawa Misaki - respondeu, enquanto seu sorriso morria. - Hoje vai ser um dia complicado... - suspirou pesadamente.

Por algum motivo, eu sentia que havia nascido um mínimo de amizade entre nós, então não me senti desconfortável ou intrometido em perguntar o porquê.

— Eu não tenho formas de explicar para a minha mãe tudo isso.

Me deitei no chão, o que eu normalmente não fazia, mas como meu uniforme já estava sujo, não me importei.

Acho que a sensação de amizade e confiabilidade não nasceu somente em mim, já que ela não demonstrava resistência alguma em conversar comigo. Por fim, disse:

— Entendo o que você quer dizer. Também estou pensando em alguma maneira de começar a explicar isso para a minha mãe, sem que ela surte - suspirei alto.

— Sua mãe é uma pessoa complicada de se lidar, Ren? - me olhou por cima do ombro, e eu disse que não com a cabeça.

— A questão não é ser complicada, e sim preocupada. Desde que meu pai desapareceu, ela se sente muito solitária e deprimida, então ela redobrou os cuidados sobre mim.

Parei para raciocinar por alguns segundos, e só então percebi que ela me chamou pelo primeiro nome, então arrisquei:

— Eu acho que o mesmo ocorre com você, não é, Misaki? - ela me fitou, mas não negou a intimidade no chamamento.

— Sim, acho que sim. As coisas não são tão fáceis de lidar lá em casa, e minha mãe também se sente muito triste e depressiva, mesmo que ela não tenha tempo de lidar comigo e minha irmã.

Me sentei novamente, e me virei em sua direção.

— Eu sei que você provavelmente não se sente da mesma maneira, mas eu sinto como se você fosse a amiga que eu estava procurando para poder lidar com essas dificuldades.

Ela me pareceu genuinamente surpresa quando eu falei isso. Pareceu ponderar por um momento, absorvendo minhas palavras, até finalmente se entender o suficiente para me responder.

— Eu também - disse. - Eu já vinha te observando há algum tempo. Obviamente eu reparei em você, já que te via todos os dias.  Mas hoje foi diferente o que fizeram com você, e eu me senti pessoalmente afetada, então eu tentei intervir... Mas não deu muito certo - sorriu de canto, mas o sorriso não alcançava seus olhos gélidos.

Neguei com a cabeça.

— Não se menospreze. Eu já te falei, não foi? Graças a você, pela primeira vez,  eu tive forças o suficiente para poder lutar contra eles. Eu tenho a pequena esperança de, talvez, depois de hoje, que eles nunca mais vão pegar no nosso pé, porque eles sabem que agora a gente pode retrucar.

Ela pareceu ficar encabulada, mas não desviou o olhar do meu rosto por um segundo sequer.

Me levantei sem nenhuma vontade, mas já estava anoitecendo e minha mãe voltaria para casa logo, logo... E se ela já ia surtar de me ver desse jeito, imagina se ela chega e eu não estou em casa... Não quero nem imaginar o que pode acontecer com ela.

— Vamos - eu disse. - Já está ficando tarde e, eu não sei sua mãe, mas a minha quando me vir assim, provavelmente vai entrar em pânico, e vai me fazer perguntas pelo resto da noite.

Ela riu levemente, provavelmente imaginando a mesma cena, mas com sua mãe, em sua cabeça.

— Me espere amanhã, para irmos para o colégio juntos - disse e ela concordou.

A noite passou como um borrão, repleto de gritos, lágrimas e histeria. Por vezes eu pensei que mamãe fosse desmaiar, mas não passaram de sustos.

Ela me obrigou e só me liberou para fugir para o quarto - depois de tomar um bom banho, claro - quando eu contei toda a verdade por trás do meu atual estado. Então eu tive que falar sobre as humilhações que eu sofria, as agressões físicas e psicológicas, tudo.

Dizer que ela ficou possessa é um elogio. Eu acho que nunca vi minha mãe tão irritada e tão revoltada assim.

Mas depois disso, graças a tudo o que é mais sagrado, eles pararam de nos atormentar, então nossos dias seguiram tranquilos. Acho que o fato de seus pais terem sido obrigados a repor nosso uniforme e todo o nosso material escolar também foi algo que teve muito peso nessa decisão.

Nossa amizade evoluiu rapidamente. Acho que pelo fato de que nós dois precisávamos de alguém que nos desse suporte para passar por todas essas provações que a gente vivia, então com uma facilidade assombrosa, ao invés da gente se encontrar apenas na vinda do colégio e na ida para casa, a gente passou a ficar juntos o dia todo. Até mesmo no colégio passamos a sentar um ao lado do outro.

Nossos únicos momentos em que não estávamos juntos, era quando íamos dormir, porque até mesmo quando chegávamos em casa, um sempre ia para a casa do outro.

E assim, sem perceber, a admiração e gratidão que eu sentia por ela, passou a se intensificar, e se modificou, transformando-se em um amor intenso, que eu não sabia lidar.

Sinceramente, se eu for questionado, eu não saberei responder quando a admiração passou a se modificar e virou uma leve paixão, e depois um amor incontrolável, mas o sentimento já estava em meu peito, e eu não podia fazer nada para tirá-lo de lá. E eu não queria tirá-lo.

Nunca imaginei que a presença de uma pessoa que sequer olhava para mim, um dia seria tão grande em minha vida, mas aqui estou eu... Meio irônico, não?

Acho que o fato de poder contar com ela para tudo me direcionou a esse sentimento.

— Hey, Misaki - chamei, enquanto ela estava deitada, observando o céu nublado.

O desfiladeiro que era meu refúgio nos dias tristes, passou a ser o local que a gente mais frequentava. O sentimento que rodeava o lugar para mim agora não era mais de melancolia e acolhimento. Era um sentimento alegre, quente... Acolhedor, mas em um sentido totalmente diferente de antes. Eu gostei da mudança.

Ela sorriu levemente e me olhou.

Ela sorria com mais frequência agora, mas ainda não era sempre, e o sentimento também alcançava seu olhar na maioria das vezes. Quando isso não acontecia, eu sabia que tinha algo errado, então eu aguardava ela ficar pronta o suficiente para me contar, e eu a escutava. Eu nunca precisei dizer palavra. Tudo que ela queria era desabafar, então eu abraçava ela forte e carinhosamente, até ela se acalmar e momentaneamente esquecer.

O oposto também acontecia. Quando eu me sentia quebrado o suficiente para não aguentar tudo o que estava dentro de mim, ela me puxava carinhosamente, me deitava em suas pernas, e fazia carinho em meus cabelos até eu me acalmar, e depois me aninhava em seus braços.

Confesso que apenas sua presença já era o suficiente para me fazer esquecer maioria dos sentimentos ruins que me assolavam vez ou outra, mas às vezes, eu precisava desse contato para alegrar meu coração.

— Sim? - perguntou por fim, quando eu não disse nada. Eu não tinha percebido que estava encarando ela há algum tempo.

Sorri sem graça e me ajoelhei perto de sua cabeça. Me inclinei e depositei um beijo em sua testa.

Uma briza gelada balançava nossos cabelos, fazendo-os ficar bagunçados.

— Nós devíamos ir... Vai começar a chover a qualquer momento, e nós não temos nenhuma forma de proteção.

— Não tem problema. Eu gosto de chuva. Hoje parece um dia excelente para ficar aqui e aproveitá-la também.

— Sério? E por que seria? - sabendo como ela é teimosa, não insisti mais, e me deitei ao seu lado, enquanto observava o céu escuro.

— Seria a primeira vez que eu veria a chuva aqui em Sendai... E pela primeira vez, eu não a veria sozinha... - segurou minha mão e entrelaçou seus dedos aos meus, e eu senti meu coração derreter. Como ela pode ser tão adorável assim?!

Sem saber o que responder, carinhosamente, para não machucá-la, puxei ela e coloquei meu braço sob seu pescoço, e ela se acomodou em meu peito.

Ficamos ali, deitados, até começar a chover. Primeiro não passava de alguns pingos isolados, mas logo a chuva se intensificou.

Nos sentamos, enquanto a chuva nos molhava. Nunca me senti tão realizado em toda a minha vida, mas por um momento, eu senti que algo estava faltando para me sentir completo. Estava faltando ela. Eu finalmente percebi que eu não estava mais satisfeito em ter ela apenas como minha amiga. Eu queria mais. Eu precisava de mais.

Observei seu rosto sereno. Segui cada gotícula de água que percorria sua pele, que escorria por seus cabelos, que molhava sua roupa. Observei seus olhos fechados, em concentração, para que ela pudesse sentir a chuva.

Depois desse dia, o clima se manteve chuvoso por algum tempo, e sempre que a gente conseguia, a gente ia para o desfiladeiro, apenas para observar e conversar, enquanto se molhava. Isso parecia fazê-la feliz, então eu não me importei.

Nós conversamos, rimos e brigamos, tudo num período muito curto de tempo. Ela me conhece como se fosse eu mesmo, e eu a conheço como se fosse ela. Acho que não é exagero dizer que eu consigo saber o que ela está pensando sem nem sequer precisar me esforçar para isso, assim como ela. E é por isso que eu tenho tanto medo de deixar transparecer que eu estou cada dia mais dependente da sua presença, e que eu a amo tanto, que não sei como dizer para ela.

Minha mãe sempre perguntava onde ela estava, quando eu chegava em casa, e sua mãe me tratava como um filho. Eu adorava passar o tempo em sua casa, e às vezes eu me juntava à Minako-san para deixá-la envergonhada. Ela realmente odiava quando eu fazia isso. Claro que ela se vingava quando estava em minha casa e se juntava com a minha mãe, mas eu não me incomodava tanto, e achava até adorável da parte dela.

— Sabe, - começou ela, um dia - eu nunca pensei que um dia fosse passar por tudo isso que estou passando. Mamãe sempre me diz que eu sou reservada demais com as pessoas, ainda mais quando são meninos. Eu acho que nunca tinha entendido o que ela quis dizer ao certo que um dia eu iria mudar totalmente a minha atitude, até agora.

— Por quê? O que mudou? - suas bochechas adquiriram um leve tom avermelhado, e ela desviou o olhar. Por algum motivo, eu senti um misto de ansiedade e esperança nascer em meu peito, mas não tive coragem pra insistir no assunto.

O vento estava ficando cada vez mais forte, e nos atingia com violência. Tão forte que foi o suficiente para arrancar o boné que estava em sua cabeça e o levar para longe, não caindo no fundo do desfiladeiro por pura sorte, porque acabou por ficar agarrado a um pedaço de ferro que estava ali.

Meio contrariada, começou a andar para perto do ferro, que ficava em uma posição bem perigosa, na parte mais íngreme do desfiladeiro. Senti  meu estômago revirar quando entendi o que ela pretendia fazer.

— Hey, Misaki - chamei, mas ela me ignorou. – Para onde você está indo?! Aí é perigoso!

— Não se preocupe, eu faço isso com bastante frequência. Eu sei aonde eu posso pisar.

— O que?! É por isso que está sempre machucada! Sai daí - meu coração quase parou quando seu pé escorregou, e ela momentaneamente perdeu o equilíbrio. Eu devo ter gritado, ou algo parecido, porque quando ela conseguiu recuperar o objeto e voltar para a parte segura do solo, ela gargalhava.

Me aproximei dela e a abracei com força, sentindo minhas pernas fraquejarem. Por várias vezes eu pensei que eu ia cair no chão.

— Nunca mais faça isso, entendeu?! - me afastei o suficiente apenas para poder olhar em seus olhos, mas aquele brilho de menina sapeca em seu olhar me prendeu.

Num segundo eu estava encarando ela tonto, nervoso, e no outro, eu já estava próximo o suficiente para sentir seu lábio inferior roçar levemente no meu.

Nossos lábios se tocaram, mas nenhum de nós ousou fazer mais nada, porém pela primeira vez, eu senti que eu estava realmente completo.

Me afastei vagarosamente, mas não a larguei de meus braços. Eu não sabia que reação ter, e ela parecia presa pela mesma sensação que eu, então num ímpeto que nasceu em mim, me aproximei novamente, dessa vez não apenas num roçar de lábios, mas em um beijo de verdade. E para a minha alegria e para o meu alívio, ela não hesitou em corresponder.

Foi um beijo atrapalhado e nenhum de nós sabia direito o que fazer, mas a sensação de finalmente ter ela em meus braços e de sentir sua boca sobre a minha foi o suficiente para me fazer quase levitar.

Quebrei novamente o contato e sussurrei enquanto me perdia no brilho de seus olhos, e disse:

— Eu te amo.

Ela pareceu sem chão, sem saber o que dizer ou fazer.

— Desculpe - sussurrei, me arrependendo de ter beijado ela tão impulsivamente. Eu, sinceramente, não sei o que vou fazer se ela começar a me evitar porque eu fui impulsivo.

Surpreendentemente, e sem o menor aviso, ela se inclinou em minha direção e encostou a boca na minha. Foi um leve roçar de lábios, mas sua intenção ficou bem clara. Ela não estava com raiva de mim, e também não tinha desgostado do beijo.

Suspirei em alívio.

— Eu não tinha entendido o que mamãe quis dizer antes, mas agora eu entendo - sorriu. - Eu te amo.

Abrecei ela forte e beijei seu rosto, seu pescoço, sua testa, tomado de alegria.

— Quer namorar comigo? - ela concordou levemente com a cabeça e eu a beijei novamente, dessa vez de forma mais intensa, sem conseguir conter a alegria dentro de mim.

Se antes já era raro nos ver separados, agora era algo que não acontecia. Mamãe parecia muito contente, assim como Minako-san, mesmo que a gente não tivesse falado abertamente que estávamos namorando.

Nós vivíamos fugindo de casa para sair e conhecer a cidade, ou da aula, para ficar no terraço, conversando. Ela obviamente não precisava estar na sala de aula para se dar bem nas provas, e eu também não tinha muitos problemas, e caso algum imprevisto acontecesse, ela me auxiliava com todas as minhas dúvidas.

— O que você pretende fazer no futuro? - perguntei um dia, deitado na grama gelada, no campo do desfiladeiro.

— Não sei ao certo. Nunca tive nenhuma pretenção... Nunca me senti atraída por nada também.

— Exceto por mim, claro - brinquei e ela me olhou torto de cima da pedra onde estava sentada, ao meu lado.

— Vou deixar essa passar porque é uma verdade - senti minhas bochechas esquentarem e ela riu. - Mamãe acha que eu deveria tentar algo grande como direito ou medicina, mas eu não vejo sentido em fazer nada apenas por dinheiro, então eu não sei.

— Você nunca se sentiu animada ou empolgada com nada? Nunca pensou em trabalhar com algo que desse algum sentido para a sua vida?

— Não, na verdade não. Eu nem sei se eu sequer vou para a faculdade, Ren.

Me sentei e virei em sua direção.

— Não se preocupe, eu vou te ajudar - sorri e a puxei, fazendo ela cair por cima de mim. Ela se apoiou em suas mãos, mas não saiu de onde estava.

— E você? O que pretende fazer?

— Acho que vou seguir a mesma carreira que meu pai. Eu já pensei muito sobre isso, e é o que eu quero fazer.

Ela sorriu tristemente. Ela sabia da minha história, e sabia o que tinha acontecido com ele.

— Se é o que te faz sentir completo, então acho que é o que você deve fazer - sorriu e se inclinou para poder alcançar meus lábios.

— Como está Minako-san - perguntei quando ela se afastou.

As coisas não andavam boas na casa dela, e ela estava muito preocupada com isso. Disse que a mãe estava preocupada com alguma coisa também, mas não quis se aprofundar no assunto, então eu não insisti, tudo que eu fiz foi escutar ela.

Não muito tempo depois, ela simplesmente sumiu.

Tentei ligar para seu telefone, mas ela não me atendeu, e sua mãe não sabia aonde ela estava, mas parecia muito triste com alguma coisa, e me pediu desculpas quando eu apareci em sua porta. Ela também não foi para a escola e ninguém parecia saber aonde ela estava.

Começou a chover, mas eu continuei procurando, até que o óbvio me ocorreu: o desfiladeiro!

Corri até lá e a encontrei, sentada à pedra, de cabeça baixa.

— Misaki, o que aconteceu? Eu estou te procurando o dia todo! - seus ombros enrijeceram, mas ela não levantou a cabeça para me olhar, e muito menos me respondeu. Parecia perdida. - Hey - me abaixei ao seu lado e toquei levemente seu braço, e a senti tremer. - O que houve? Eu estou preocupado com você!

A chuva estava tão intensa que as gotas chegavam quase a doer quando atingiam a pele, mas ela não parecia ser capaz de sentir nada disso.

Lentamente me posicionei à sua frente e levantei seu rosto com carinho. Seus olhos estavam fechados e seu rosto molhado, mas não era da chuva. Se possível, fiquei mais preocupado ainda.

— Desculpe, Ren - murmurou num fio de voz. Me abraçou, se agarrando a mim com força.

— Misaki, por favor, me conta o que aconteceu! - ela tremia em meus braços, e eu não sabia o que fazer, apenas me levantei e a puxei para mais perto, aninhando ela novamente a mim.

Ela me afastou e me encarou, seu rosto estava repleto em dor.

— Nós vamos nos mudar - conseguiu dizer, depois de me encarar por um longo tempo e abrir a boca diversas vezes.

Senti como se eu tivesse levado um soco.

— O que? - perguntei. Eu devo ter escutado errado! Eu só posso ter escutado errado!

— Nós estamos indo embora, Ren - sua voz falhava, e meus olhos encheram de lágrimas. - O emprego da mamãe não anda bem, e a obrigaram a se transferir para outro lugar. Mamãe tentou debater e pediu para não fazerem isso, porque nós já estamos acostumadas a viver aqui, mas eles foram irredutíveis. Nós vamos nos mudar amanhã.

Por quê? Por que quando tudo parece tão bem? Me lembrei do seu comportamento nas últimas semanas e como ela parecia se afastar pouco a pouco de mim.

— Há quanto tempo você sabe disso? Era por isso que estava me evitando ultimamente e se distanciando pouco a pouco de mim?

— Não! – ela pareceu horrorizada com a ideia do que eu disse ser verdade. – Eu descobri hoje. Mamãe nos contou hoje! Eu estava me afastando porque eu estava preocupada, apenas isso. Eu não estava conseguindo lidar com o que estava acontecendo em casa, e mamãe não nos contava nada, então eu acabei me afastando sem perceber. Por favor, Ren, não duvide disso.

— Desculpe – a abracei novamente.

— Eu queria apenas me despedir de você – me afastou, e eu entendi o significado daquilo. Esse era o nosso adeus. Ela não me quer amanhã no aeroporto, rodoviária ou seja lá o meio de transporte utilizado por elas para irem embora. Ela não vai me dizer que horas eu posso vê-la, e também não vai me permitir aparecer em sua vida nunca mais. Esse era o nosso momento. O último. – Pode me dizer pelo menos para onde estão indo? – ela se inclinou e sussurrou a resposta em meu ouvido, e se afastou novamente.

— Desculpe – fez uma leve carícia em meu rosto. – Eu não queria te magoar.

— Não... Não é sua culpa – murmurei, não conseguindo mais reprimir as lágrimas. Não é como se eu me importasse em chorar em sua frente, de qualquer forma.

Ela me abraçou fortemente e depositou um leve beijo em meus lábios.

— Adeus.

— Adeus – respondi, me sentindo totalmente sem chão.

Ela se virou e começou a andar rapidamente para longe, mas não aguentei ver sua imagem se afastar de mim, então a chamei novamente.

— Misaki, você poderia me fazer um último favor? – disse por fim.

Apesar de ter parado e feito um sinal positivo com a cabeça, ela não se virou em minha direção, então me aproximei e a virei para poder olhar para seu rosto.

Levei minhas mãos trêmulas até a base de minha nuca e abri o fecho do cordão que nunca saiu de meu pescoço desde que papai havia me dado ele, então dei a volta nela e o coloquei em seu pescoço, e o fechei.

— Fique com ele – voltei para a sua frente e toquei seu rosto. – É meu presente de despedida – tentei sorrir, mas não consegui mais do que um repuxar de lábios.

Me inclinei e depositei um beijo em seus lábios de forma menos agressiva que consegui, devido a frustração, e então me afastei e esperei que ela fosse embora.

Dessa vez, quando vi suas costas tensas andando para longe de mim, reprimi a vontade de gritar seu nome novamente, e apenas chorei.


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Notas finais do capítulo

Seguinte: eu não coloquei as coisas fieis aos capítulos anteriores porque são lembranças, e a gente bem sabe que as lembranças tendem a ser modificadas.
Eu até comecei a mudar - porque quando eu escrevi no trabalho, obviamente eu não me lembrava de tudo 100% -, mas eu percebi que não tem necessidade.
As divergências no EXTRA e nos capítulos anteriores são PROPOSITAIS!
Enfim, até o capítulo 24!



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