Meu Bônus Infernal escrita por Mandy-Jam


Capítulo 3
Srta. Kelly


Notas iniciais do capítulo

Aqui vai!



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Lá estava eu andando em direção á sala de aula, enquanto minha possível futura chefe falava sobre milhões de filosofias de ensino.

– Alguma dúvida? – Perguntou ela olhando para mim. Seu nome era Tina, e ela parecia ter uns bons 60 anos. Tentava esconder algumas marcas de velhice com maquiagem, mas obviamente não estava dando certo.

Peguei-me imaginando como seria ver meu rosto velho, contando com a ideia de que eu nunca ficaria como ela. Não envelheceria por ser uma musa imortal de Apolo. Resolvi afastar a ideia da cabeça, pois sempre que pensava nisso tinha arrepios.

– Nenhuma. – Respondi sorrindo de leve. Não tinha nenhuma dúvida simplesmente porque não ouvira quase nada que ela disse. Blá blá blá, alunos, blá blá blá dever de casa, e mais um blá blá blá.

– Ótimo. – Sorriu ela para mim. Não parecia o tipo de pessoa que costuma sorrir o tempo todo, por isso resolvi retribuir. Ela ajeitou a postura, e eu fiz o mesmo – Então está tudo certo. Pode ir para a sala 203 e fazer um teste. Veja se é o seu perfil trabalhar aqui, e depois me dê uma resposta.

– Combinado. – Sorri para ela, embora eu já soubesse que meu perfil não era trabalhar em uma escola. Odiava aquele lugar, tanto quanto ela deveria odiar as crianças, mas esse detalhe eu nunca contaria.

– Caso aceite nossa proposta, pode ficar com o uniforme de trabalho. – Completou ela para depois ir embora. Eu estava usando uma saia azul marinho de prega, como aquela dos anos 60, uma camisa polo branca e um suéter azul marinho também.

Era o uniforme da escola para os professores, o que me chamou atenção. Nunca vira professores com uniformes na minha vida, mas como ele era confortável resolvi deixar de lado e não contestar.

Entrei na sala marcada com o número 203, e me deparei com uma turma de 20 e poucas crianças de mais ou menos doze anos correndo de um lado para outro. Respirei fundo imaginando como eu faria para mantê-los quietos, e cogitei a possibilidade de dar no pé naquele instante.

Mas algo me prendeu ali. Meus pés se mantiveram fixos ao lembrar-me do alto valor do salário, uma vez que o Colégio Fundamental John Dalton era um tipo de instituição para crianças cujos pais estavam dispostos a pagar o olho da cara por uma educação de qualidade. Ou só por um lugar onde pudessem jogar os filhos e mantê-los longe por metade do dia.

– Ahm... Boa tarde. – Disse andando até a mesa do professor. Sentia-me completamente estranha por estar no lugar das pessoas que mais odiava, mas me mantive calma.

Magicamente... Todas as crianças sentaram-se ao mesmo tempo, e pararam de falar. Elas olharam para mim de um modo completamente disciplinado e esperaram que eu dissesse algo. Pisquei os olhos surpresa.

– Boa tarde. – Responderam em uníssono. Eu assenti um tanto assustada, mas me concentrei quando ouvi umA garotinha de óculos erguer a mão.

– Sim? – Perguntei olhando para ele.

– Quem é você? – Perguntou ele – Agora deveríamos ter aula de gramática com a Sra. Garcia.

– Ahm... Bem observado. – Disse porque achei que soaria inteligente – Eu... Eu não sou a Sra. Garcia como devem estar notando. Houve... Uma pequena mudança com o horário de vocês. Eu vou substituir a sua professora só por essa aula... A princípio.

– Ela está doente? – Perguntou o mesmo garoto.

– Não, ela não está doente. – Respondi e ouvi um comentário no fundo da sala.

– Droga... – Murmurou alguém – Por que não deixam aula livre?

– Por que... Vocês precisam de gramática. – Respondi encolhendo os ombros. Todos reviraram os olhos entediados, e eu notei logo de cara que eu não estava sendo muito adorada pelos alunos – Certo... Como estão bem animados, vamos começar.

Virei-me para o quadro, e mordi o lábio sem saber o que fazer.

– O que vocês estavam vendo sobre gramática? – Perguntei fitando o quadro branco.

– Nós íamos começar função sintática nessa aula, professora. – Respondeu o garoto de óculos. Eu fiz uma careta ao ouvir a palavra professora, e escrevi meu nome.

– Desculpe por esquecer de me apresentar. – Disse terminando de escrever – Meu nome é Alice Kelly. Não precisam me chamar de professora, se não quiserem. Podem me chamar só de Alice mesmo.

– Certo, professora. – Confirmou o garoto de óculos, e eu senti vontade de estrangulá-lo. Que amor de criança...

– Bem... Vamos partir de algo bem simples. Assim vocês não vão me odiar tanto. – Disse revirando os olhos. Virei-me para o quadro – Alguém me diga uma frase bem simples.

– Er... – Uma garota de cabelo ruivo curto parou para pensar – Eu gosto de... Música?

– Serve. – Disse escrevendo a frase no quadro. Eu sublinhei “Eu” e virei-me para eles novamente – Olha. Para tornar as coisas bem mais fáceis para vocês, existem dois tipos de períodos. Sabem o que são períodos, não é?

– Uma frase? – Respondeu rapidamente o garoto de óculos.

– É. – Confirmei – Dois tipos de períodos. Simples e composto. O simples só tem um verbo, e o composto têm dois ou mais...

– Espera! – Exclamou a garota de cabelo ruivo escrevendo tudo o que eu dissera no caderno – Eu não consigo escrever tão rápido!

– Não precisa escrever isso. É melhor entender, porque isso é bem fácil. – Disse encolhendo os ombros – Ahm... Quem sabe o que esse período é?

– Pouco criativo. – Respondeu um garoto de cabelo espetado. Todos riram, e eu quis me matar por estar ali.

– Também. Mas o que eu quero saber é se ele é simples ou composto. – Rebati.

– Er... Composto? – Chutou ele. Olhei para o único verbo da frase e depois para eles novamente. Outra pessoa chutou simples. Outra disse composto. E uma perdida disso “os dois”.

Houve um longo momento de silêncio, e eu assenti com a cabeça abrindo um sorriso.

– Ah, simples! Muito bem! – Exclamei fingindo que alguém tinha acertado sem ser chutando, e que eu não estava em uma sala onde ninguém ligava para o que eu dizia – Recapitulando, ele é simples porque só tem um verbo. Um único verbo. Alguém sabe qual é o verbo?

Silêncio mortal. Passei a mão pelo cabelo e observei enquanto eles se mantinham quietos.

– Podem chutar. Vamos... Eu não vou tirar ponto de ninguém mesmo. – Disse incentivando alguma tentativa inteligente.

– Ahm... – Um garotinho pequeno e loirinho no fim da sala levantou a mão – É... Gosto?

– Temos um gênio. – Disse afirmando – Pode dizer porque é um verbo?

– Ahm... – O garoto parou para pensar – Não.

– Não sabe, ou está com vergonha de dizer? – Perguntei calmamente – Vamos, ser inteligente não é algo para se envergonhar.

– É que... Senhorita Kelly... Eu chutei. – Respondeu ele. As crianças começaram a rir dele, e eu respirei fundo.

– Algum de vocês sabia se era um período simples ou composto? – Perguntei, e eles pararam de rir – Não. Então parem de implicar com ele.

Olhei novamente para a frase no quadro, e depois para o garoto.

– Qual é o seu nome? – Perguntei.

– Mike. – Respondeu ele em uma voz tímida.

– Mike, “gosto” é um verbo. É “gostar” no presente do indicativo. – Expliquei para ele – É um verbo porque representa uma ação. Vocês deviam ter visto isso antes, mas deixa para lá.

Apontei para a frase e soltei um suspiro pesado. Eu tinha que colocar aquilo na cabeça deles de algum jeito, por isso resolvi falar da maneira mais simples possível.

– Aqui nós temos uma frase. Nessa frase nós temos o sujeito e um predicado. – Disse apontando – Sujeito é sempre a pessoa ou objeto que sofre ou realiza uma ação. O resto vai ser o predicado. Entendera isso?

Todos confirmaram com a cabeça.

– O sujeito aqui é quem? – Perguntei.

– Eu. – Respondeu o garoto de óculos.

– Isso. Porque “Eu” gosto de música. – Confirmei – O resto é o que?

– Predicado. – Responderam.

Eu continuei explicando de um modo bem simples e calmo. Ao longo dos minutos ninguém me interrompeu ou perguntou alguma coisa, por isso eu prossegui até terminar toda a análise que se podia fazer de uma frase.

– E isso tudo é importante... – Virei-me para terminar a frase, mas vi que todos estavam olhando fixamente para o quadro. Não, não era um bom sinal. Eu conhecia aquele olhar. Eu o usava várias vezes tentando fingir que estava prestando atenção ao professor, enquanto na verdade estava pensando em algo completamente diferente.

Eu respirei fundo e notei que não estava falando nada de importante para eles. Eu bati na mesa rapidamente, e eles piscaram os olhos acordando do transe. Sem me conter, acabei resolvendo falar a verdade.

– Nada. – Completei – Não é importante para nada.

Eles franziram o cenho sem acreditar no que eu estava dizendo. Eu mesma não estava acreditando que estava sendo tão sincera em jogar aquilo para crianças de 12 anos, mas é o que eu gostaria que tivessem dito para mim.

– É. Vocês ouviram certo. Não é importante para nada. – Encolhi os ombros – Não é importante porque, provavelmente, vocês vão tomar o mesmo rumo que eu meu amigo. Vão usar milhões de cálculos matemáticos para resolver problemas, ou para montar peças de carro. E aí eu digo... Vocês não vão precisar de nada disso.

– É... Sério? – Perguntou o garoto de cabelo espetado.

– É. É sério. – Confirmei – Embora não vá ser importante para vocês, muitos devem estar se perguntando porque é importante para mim. Simples. Linguagem era a única matéria que eu não tirava zero.

Dei de ombros enquanto eles riam. Apontei com o dedão para o quadro.

– Isso aqui é uma frase simples. O nome já diz. É simples. – Frisei – Agora... Eu duvido que “problemas matemáticos” tenham esse nome porque eles são fáceis.

Eles riram mais um pouco e eu dei de ombros. Eu apaguei a frase do quadro, e olhei-os novamente.

– Ninguém gosta disso. Nem a própria sociedade gosta disso. – Comentei um tanto incomodada – Se você sabe a transitividade verbal de “ser”, ninguém liga. Mas se você sabe resolver um problema de geometria analítica, sua mãe vai bater palmas e gritar “Esse é o meu filho! Um gênio!”.

Todos riram ainda mais, e eu sorri.

– Mas... Em compensação... As pessoas tem medo de quem sabe bem a gramática. – Contei – É como andar armado. Se alguém pergunta a sua profissão, e você responde que é formado em “Linguas”, já era. Ele vai pensar duas vezes antes de falar do seu lado.

– É sério? – Perguntou a garota ruiva.

– Você fala qualquer coisa na frente da sua professora de gramática? – Perguntei – Você diz “eu entrei dentro da sala”, ou “o dever é para mim fazer”?

A garota franziu o cenho como se não tivesse nada de errado, e eu resolvi explicar.

– O primeiro é uma repetição de uma ideia. Você está dizendo a mesma coisa duas vezes, e isso se chama pleonasmo ou tautologia. – Expliquei – O segundo é um erro comum para quem vive na selva, mas em uma sociedade civilizada “mim” não conjugar verbo, Tarzan.

Eles riram novamente. A garota de cabelo ruivo sorriu para mim com mais animação.

– Isso... É legal. – Disse ela. Eu ergui as sobrancelhas, surpresa.

– Não costuma ser. Principalmente porque vocês têm vídeo game e computador. – Retruquei, mas ela negou e riu de novo.

– Não. Isso é legal mesmo. A Sra. Gracia nunca explicou as coisas desse jeito engraçado. – Disse ela.

– Você vai continuar dando aula para a gente? – Perguntou o garotinho tímido chamado Mike. Eu olhei para ele, e encolhi os ombros.

– Bem... Provavelmente não. Depois de saberem que eu disse que a escola é um saco, acho que a Sra. Gracia vai passar um bom tempo aqui. – Respondi sinceramente.

– Mas você é tão legal...! – Protestaram algumas pessoas no fundo. Eu fiquei surpresa ao notar isso, mas então o sinal do recreio bateu e acabei acordando.

– Ok. Recreio é sagrado. Vão brincar. – Disse rindo. Eles saíram correndo para fora da sala de aula e eu acabei rindo novamente, lembrando os meus tempos de colégio. Sim, era uma droga. Mas a melhor hora era o recreio.



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Notas finais do capítulo

Gostariam de ter aula de gramática com Alice? Hahaha!
Vou demorar um pouco para postar agora, pois vou atualizar as outras fics. Mas enfim...
No próximo capítulo, Apolo aparece! Espero que tenham gostado, e espero reviews.
Avisem para as pessoas que liam "Minha viagem infernal" (se vocês conhecerem alguém) e digam que eu fiz essa continuação, sim?
Beijos e até o próximo capítulo!