Céu escrita por Liminne


Capítulo 6
Capítulo 6 – Invisível




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Deteve-se diante daqueles olhos sombreados por sobrancelhas apertadas. E pelos dedos fortes quase esmagando seu braço. Esmagando de um jeito tão...
Remexeu o braço para que ele a soltasse, fazendo menção de desistência. E então ele soltou-a devagar. E ambos voltaram a se sentar.
Puxou o cardápio na frente do rosto espiando-a ocasionalmente com olhares furtivos, mas acima de tudo, escondendo-se para pensar no que fazer em seguida, no que dizer, em porque pensar no que fazer, em porque dizer.
Ajeitava a saia do vestido, alisando-a continuamente sem realmente ter alguma necessidade daquela ação. Estava prestes a arrancar uma das borboletinhas azuis. E também a explodir. O que ia fazer agora? Como iam continuar? Por que diabos tinha sentado de volta, naquela cadeira idiota que a fazia sentir-se tão unicamente desconfortável?

****

- Obrigado pelo jantar, estava ótimo. – disse o menino agora encostado no batente da porta, ainda sem conseguir falar olhando-a diretamente.
- Sem problemas! Já disse que deve agradecer à Rukia-chan e não a mim! – sorria sem tirar o ursinho nos braços. – Mas Shi... Hitsugaya-kun... – rodou um pouco os olhos até pregá-los suplicantes nele. – Tem certeza de que não quer ficar um pouco mais? A Rukia-chan vai demorar tanto a chegar...
Olhou para ela. Aquele olhar... Teria sido por causa dele que sentiu seu coração disparar pela primeira vez? Não! No que estava pensando? Tratou de enterrar aqueles pensamentos no canto mais fundo de seu coração e disparou.
- Claro que tenho. Já comi, você já está bem demais pra quem esteve de cama e não tenho mais nada pra fazer aqui. Ou você acha que sua companhia é tão especial assim a ponto de eu largar meus trabalhos superimportantes da faculdade, hein, pirralha?
- Ah! – abriu a boca surpresa e ofendida com o tom repentinamente ríspido dele. – Pirralha uma ova! Eu sou mais velha que você! – esbravejou.
- O que importa? Ainda é uma estudante ginasial. – deu de ombros e pisou no corredor.

- Shiro-chan! – ela gemeu indignada, batendo a pantufa no chão sem fazer barulho.
- Não tem nenhum Shiro-chan aqui. – limitou-se a dizer obrigando-se a não olhar pra trás e foi seguindo para seu apartamento.
A menina de cabelos castanhos e franjinha encostou-se na porta então e ficou observando-o com um sorrisinho nos lábios. Ele nunca mudava. Achava-se adulto demais, mas ainda tinha que crescer. E não só no tamanho. Mas nessa atitude que tinha desde os seis anos, desde que o conheceu. Com um suspiro até que alegre pela noite agradável pôs os pés dentro do seu apartamento e fechou a porta. Tudo que queria agora era pular na cama e dormir até o outro dia. Sonhar com seu príncipe de óculos... Deixar a louça para que Rukia lavasse mais tarde...

****

Segurava o celular no ouvido e estalava os pés no chão batendo continuamente. Faltavam poucas chamadas para que a ligação caísse e ele não atendesse. Aquilo a estava deixando louca.
Afundou em sua cama macia e desejou com toda a sua força que ele notasse a droga da ligação. Já era a terceira vez que ligava aquela noite. Começou a murmurar uma oração.
- Alô. – finalmente a voz grave dele do outro lado da linha. O coração disparou ao mesmo tempo em que ela para fora da cama.
- Amor! – ofegou numa óbvia alegria. – Pensei que não ia atender nunca esse telefone!
- Oi Mai. – sua voz soou um pouco distante. Tinha prendido o celular entre o ombro e o ouvido. – Me perdoe à demora.
Indignou-se. Como assim aquela frieza?
- Ashido. – pronunciou seu nome devagar. – Por que essa frieza comigo? – de última hora resolveu usar aquele seu tom meloso de garotinha coitadinha. Sempre funcionava com os homens.
- Mai... – de repente, parecia que tinha tomado uma injeçãozinha de calor. – Não estou sendo frio... Só... – hesitou por alguns longos segundos. – Só... Estou ocupado, entende?
Não. Não era uma injeção de calor que tinha recebido. Era uma injeção de paciência, de pena mesmo.

Pensar isso fez com que os dentes da loira quase trincassem ao mesmo tempo em que os músculos do corpo se contraíam furiosos.
- Ocupado com o quê? Ocupado com quem ? – queria continuar mantendo o mesmo tom de antes, mas tudo que conseguiu foi quase uma ameaça entre dentes.
- Meu Deus! – ele exaltou-se do outro lado da linha, agora segurando o aparelho. – Não é ninguém, Mai! Ninguém! Só estou estudando, coisa que você também deveria estar fazendo. Eu tenho uns cinco livros pra ler e uma pancada de trabalhos. Eu te disse a semana toda! – agora estava ralhando com ela, daquele jeito que mais odiava. Daquele jeito que a fazia sentir como se fosse uma... Uma idiota fútil. Daquele jeito que a fazia parecer não digna de seu amor.
- Ashido... – como uma bipolar, sua voz já mudava para um tom quase choroso, mas dessa vez sincero. – Mas hoje é sábado, amor!
- Me desculpe... Mas advogados não pensam em nenhum dia da semana como um dia para o ócio. Principalmente aqueles que ainda são aprendizes e esperam alcançar algum objetivo
em breve. Desculpe-me mesmo...
- Então... – engoliu com dificuldades o nó na garganta. – Nada de sairmos essa semana? – deixou-se afundar desanimadamente na cama de novo.
- Me perdoe princesa... – aquele modo de falar transbordava uma culpa odiosa. – Olha... Prometo que amanhã passo aí por alguns minutinhos...
- Hum... Certo... – brincava com um fiapo solto da colcha vermelha de sua cama. Não havia mais nada que pudesse fazer ou falar sem piorar sua situação.
- Vê se estuda também. Ser médica também não é brincadeira. Fazer compras e testes de revista não vão te levar a lugar nenhum.
- Eu sei... Eu sei... – murmurava resignada. Tinha conseguido arrancar o fiapinho, agora olhava tristemente para o vestido cinza estendido em cima da cama, ainda com a etiqueta pendurada. Tão perfeito, tão raro, tão obviamente feito para um encontro de sábado especial...
- Até amanhã. – ele disse a voz voltando a ficar levemente ausente. – Se ocupar a mente não vai ficar tão tristinha...

- Ta bom... – não conseguia parecer mais animada. – Até amanhã meu amor... Beijo.
- Beijo. – ouviu-o murmurar.
- Te amo.
Ouviu o clique do outro lado da linha. Sentiu outro nó se formando na garganta. Afundou-se no travesseiro perfumado e chutou o vestido para fora da cama.

****

Mais um minuto em silêncio e poderiam tocá-lo, descobrir sua cor. Mais um minuto respirando naquele ar pesado, teriam uma parada respiratória, de tão tóxico.
Cansado daquilo, jogou o cardápio em cima da mesa. O garçom apareceu subitamente.
- O que vão querer? – ele sorriu totalmente alheio àquele clima que se passava somente entre os dois.
Entreolharam-se sem querer.
- Ahn... – Ichigo rapidamente desviou seus olhos e recorreu novamente ao cardápio. – Eu não... Ainda não decidi...
- Nossa! – a voz de Rukia finalmente se fez presente, mas não de um modo agradável. - Pensei que tivesse passado os últimos vinte minutos com a cara enfiada no cardápio... Pensei que já tinha montado um banquete para pedido. Mas que decepção, que homem sem iniciativa... – a pequena alfinetou maldosa. Estava mais furiosa pelo silêncio todo ter sido
em vão.
Qual
era o problema dela? Se estava tão irritada porque não tinha escolhido então?
Depois de fulminá-la rapidamente com o olhar, dirigiu-se ao garçom que continha um risinho naquele sorriso estampado, com certeza.
- Eu vou querer esse prato aqui. – apontou aleatoriamente para um nome que nem ao menos conhecia no cardápio, tentando parecer decidido. Depois percebeu que talvez estivesse fazendo a maior besteira. E se fosse um prato inteiramente repugnante?
Culpa dela que ficava desafiando-o! Que baixinha petulante! Mas já sabia como ia se vingar. Subitamente, brilhantemente...
- E ela também. – acrescentou. – Para duas pessoas, por favor. – empurrou o cardápio vitorioso e recostou-se na cadeira escura de madeira com um quase sorrisinho venenoso no canto da boca.
A pequena arregalou os olhos para ele. Mas o ruivo resolveu fingir que nada percebeu.

Então o garçom afastou-se e a situação acabou ficando por aquilo mesmo.
Bom... Pelo menos ele tinha alguma decisão...
- E então... – dirigiu os olhos para ela. – Quer dizer que sua mãe ficou nove meses na fila da petulância quando estava esperando você?
- Ah! – abriu a boca indignada, mas voltou a fechá-la logo. Puxou um sorrisinho sarcástico. – Como se a sua não tivesse ficado nove meses na fila da esquisitice! E como se depois não tivesse apenas sentado e cruzado os braços esquecendo-se da sua educação! – retrucou levantando as sobrancelhas para ele.
- É. – resmungou franzindo o rosto naquelas suas caretas que, já pôde perceber, eram bem habituais. – Ela não teve mesmo muito tempo para me dar educação. Depois dos nove anos aprendi por mim mesmo. – cruzou os braços e desviou os olhos. Parecia estar dizendo corporalmente que já era o fim daquelas provocaçõezinhas bestas.
E algo fez com que o coração da pequena quase parasse de culpa. As sobrancelhas finíssimas e minúsculas voltaram para o lugar e ela encolheu os ombros. Ele queria dizer que...
- Hunf! – juntou os estilhaços da dignidade que lhe restava. – Esses dez anos então não te ensinaram nadinha... – disse, mas agora sem muita convicção.
Percebeu que ele agora fitava a janela que praticamente não havia reparado antes. Mas estudando-o melhor descobriu que ainda assim seus olhos corriam para além do vidro, para além da grama e do pequeno riacho lá fora... Para muito, muito mais além.
Lembrou-se da revistinha de signos. Cancerianos são profundamente ligados à família. Principalmente à mãe.
Mas não podia passar o jantar inteiro sentindo pena dele.
- Então... – recomeçou devagar, fingindo não sentir aquelas pontadas tristonhas no peito. – Você quer ser um pneumologista também, não é...?
Vagarosamente foi voltando do além até a garota que estava sentada a sua frente novamente. Fitou-a por alguns segundos. O esperava com expectativas.
Estava abordando um assunto que... Sim. Uma coisa que tinham em comum.
Sentiu-se animar.

- É. – respondeu como se passasse uma borracha sobre o ocorrido de dois segundos atrás. – Decidi isso quando era bem pequeno.
- Eu também! – ela afirmou com mais força do que precisava. E depois se encolheu um pouco tímida. – É um... Grande sonho... – voltou a mexer nas borboletinhas da saia. – É o mais importante pra mim... – acrescentou baixinho.
- Minha mãe morreu de uma terrível doença respiratória. – foi dizendo o ruivo. – Naquela época fiquei... – hesitou um pouco parecendo procurar as palavras. - Foi tudo tão... Tão...
Ela pregou os olhos azuis no rosto agora esforçado dele. Queria muito que ele terminasse aquela frase que começara a pairar com suas reticências no ar. Estava realmente interessada no que ele tinha a dizer. Pela primeira vez interessou-se pelo que se passava naquele coração... Tentou encorajá-lo mentalmente, com os olhos...
Em vão. Ele calou-se e remexeu o copo d’água dela.
- Não quero que ninguém sofra da mesma forma. – acrescentou baixinho, desviando brevemente, deixando as reticências e começando um novo parágrafo sem mais nem menos. Os olhos voltaram para a pequena de cabelos negros. Estavam decididos.
- É engraçado. – ela disse num quase risinho não muito feliz. – Como essa coisa de destino parece mesmo existir... Como nos unimos a pessoas com propósitos tão parecidos com os nossos por acaso... Com semelhanças... – puxou o copo da mão dele.
- Como assim? – ficou olhando-a com a mão aberta no vácuo.
- Meu pai... Meu pai sofre de uma doença respiratória rara. Desde pequeno. Nunca encontrou um tratamento, uma cura, nem mesmo um diagnóstico certeiro. Vira e mexe e está lá, de cama... Abandonando os alunos, os lazeres, sentindo dores, sofrendo... – apertou o recipiente com água entre as mãos. – Acho que você pode entender meu sentimento diante disso...
Um pequeníssimo brilho lampejou nos olhos de Ichigo. Sem que nenhum dos dois percebesse.
Talvez ele tenha se refletido nos olhos dela alguns minutos antes. Alguns minutos, segundos depois...

- Mas seu pai ainda está vivo. Não é ótimo?
- É sim... – sorriu agora mais satisfeita. – E é por isso que vou dar tudo de mim para mudar essa realidade. Vou lutar com todas as minhas forças para que não seja tarde demais. Para que ele possa ainda viver muito e sem aquele sangue que mancha seus lenços e lençóis... – quase quebrou o copo entre as mãos. – Até minha última gota de sangue existir, até meu último suspiro. Talvez, além disso. Acabarei com o sofrimento dele e de muitos outros semelhantes.
Olharam-se. Se tinham percebido aquele brilhinho que se tornou permanente, nenhum dos dois disse. Mas o coração no peito galopou de um modo de diferente. Como se ali nascesse uma cumplicidade... Uma promessa silenciosa que cabia apenas no espaço entre aqueles dois pares de olhos.
- Com licença. – um intruso. Viraram as cabeças. Era o garçom com os pratos fumegantes. – O jantar está pronto. – sorriu enquanto colocava na frente de ambos, a escolha de Ichigo, que parecia ter sido preparada pelo demônio. – Bom apetite. – e saiu andando sem culpas.
- Ichigo! – ela apontou para o prato com as mãos abertas, o nariz torcido numa expressão enojada. – O que é isso ??
- É... – atrapalhou-se sentindo a fumaça que subia do prato penetrar em suas narinas. – É delicioso! – enfiou a colher naquela coisa estranha que parecia uma sopa um pouco mais espessa com alguns seres flutuantes numa cor alaranjada. Nunca tinha visto nada tão esquisito em toda a sua vida. Parecia até que era uma brincadeira daquele maníaco loiro de chapéu listrado. Que restaurante estranho!
- Só você mesmo pra escolher um negócio desses... – ela empurrou o prato, resmungona. – Qual é mesmo o nome disso?
- Ah, cala a boca, sua fresca! – estava irritado com a falta de sorte levando tremulamente a colher à boca, tentando não parecer sentir ânsias. – Come isso logo! – ficou soprando a colher para ganhar tempo.
- Não me mande calar a boca! – fechou a cara ofendida. – E não me obrigue a comer um prato que tem a sua cara!

- Como assim a minha cara? – enfiou a colher cheia no prato novamente. – O que está insinuado?
- Não estou insinuando nada! – cruzou os braços. – Tire suas próprias conclusões. Afinal, não sei por que ficou tão ofendido se você realmente gosta do prato... – deu de ombros, fazendo o sangue do ruivo ferver.
- Grr! O que você tem de baixinha você tem de irritante, garota! – inclinou-se na direção dela com ímpetos de agredi-la.
- E o que você tem de esquisito você tem de esquisito, cara! – inclinou-se de volta na mesma ferocidade.
- Hunf! – pegou a colher novamente. – Você não passa de mais uma garota fresca, isso sim. – enfiou de uma vez a colher na boca antes que pudesse se arrepender. Não podia ser tão ruim... As aparências tantas vezes enganam...
Mas foi ficando verde.. Azul... Roxo... Foi virando um arco-íris humano.
Ela não reparou enquanto remexia naquilo pensando que nunca tinha visto uma comida tão feia na vida.
- Uau! – entoou empolgado até demais o ruivo. – Que delícia! Esse restaurante tem a minha aprovação. Nunca fizeram tão bem esse prato em toda a vida! – tentava ser convincente, mas estava praticamente gritando por credibilidade.
E ela o encarou incrédula, virando a colher e deixando o conteúdo desta escorregar de volta para o prato.
Ficou mais irado ainda. Ela tinha que comer aquilo logo! Afinal, ele que pagaria por aquilo, não? E ela estava merecendo por estar sendo tão chata e não estar ajudando. E afinal, se escolheu um prato ruim a culpa era toda dela!
Então, como um pai tentando convencer o filho a tomar toda a sopa de legumes, encheu mais uma vez a colher e enfiou na boca fazendo uma cara engraçadíssima de aprovação forçada. Parecia até um comercial fajuto.
O que fez com que os lábios de Rukia se retorcessem e ela começasse a conter uns ruídos estranhos... Até explodir numa gargalhada.

- HAHAHA! – quase chorava de tanto rir. – Você acha mesmo que vai me convencer com isso? Você pode ter vocação para um médico excelente, mas para ator ou para fazer qualquer tipo de propaganda meu querido, você é patético! Hahahaha!
- Chega disso garota! Pára de rir agora! – rugiu segurando com força e com raiva a borda da mesa redonda.
- Não consigo! Hahahaha! Não consigo! – enxugava os cantinhos dos olhos. – Até seu filho riria de você e das suas caretas de estrela de comercial! Hahahahaha!
De repente, não agüentou. Sentiu que alguns no restaurante já olhavam para eles e comentavam. Desde que chegaram oscilavam em discussões e risadas intensas demais.
O rosto do ruivo começou então a queimar de humilhação. E de ira também.
Levantou-se então e, se importando mais em dar o devido castigo àquela chata maluca do que calar aqueles olhares encheu a colher dela de comida e segurou o rosto dela.
- Agora você vai comer. – sussurrou assustadoramente.
- Ei! – a risada dela parou como se nunca tivesse começado e seus olhos cresceram como bolo no forno com um quilo de fermento. – O que está fazendo!? – assustada.
- Calando a sua boca, irritante escandalosa! – segurou a bochecha dela obrigando-a a abrir a boca e tentou enfiar a colher nela. E a garota começou a se debater desesperada tentando se desviar.
- Hmp! Hm! – ela tentava virar o rosto forçando a boca fechada.
- Come isso! Comeee! – agora estavam mesmo parecendo pai e filho pentelho sem apetite.
- Ahh! – abriu a boca quando ele fez suas bochechas doerem de tanto apertar. E inevitavelmente, teve uma colher enfiada à força em sua boca. Cheia de uma comida no mínimo medonha. E não satisfeito, o ruivo irado virou sua cabeça para trás para que engolisse a gororoba.
- Não é uma delícia!? – sorriu maligno.
- Cof! Cof! – ela começou uma crise de tosse depois que aquela pasta duvidosa desceu desajeitadamente garganta a baixo. – Seu... Seu monstro! – continuou tossindo e tossindo com pequenas lágrimas se formando no canto dos olhos.

- Há! – começava a sentir-se culpado pela violência que tinha usado. Ela estava engasgada mesmo...? – Pára com esse draminha! – cruzou os braços.
Ela tentou se defender, mas caiu na tosse de novo. E assim continuou, batendo no próprio peito, tentando respirar.
E por dentro, um pânico começou a formigar pelo corpo do espetadinho.
- Senhorita, você está bem? – o garçom apareceu com um copo d’água, todo atarantado.
Ela levantou a mão tentando dizer que ficaria bem, mas quando mais tentava falar, mais tossia.
- Meu Deus, pobrezinha! – uma mulher mais velha de rosto bem fino, vestido longo e cabelos lisos compridos apareceu toda solidária. – Ela não está respirando, está ficando roxa, olha! – começou a bater de leve nas costas de Rukia. – Como pôde fazer isso com ela, seu pirado? – lançou um olhar feroz para Ichigo que se encolheu.
- E-eu... Não tive a intenção de...
Rukia parou de tossir e agora tentava respirar com dificuldades.
- Levante os braços dela! – uma outra mulher gorducha de vestido estampado apareceu dando palpite.
- Beba a água, senhorita! – o garçom insistia.
- Matem esse ouriço esquisito! Assassino! – um molequinho de no máximo onze anos apontava o dedo magro para Ichigo com os olhos verdes acusadores.
E mais umas cinco pessoas vieram cercar Rukia para saber se ela estava bem. E ela começava a murmurar algumas palavras com a garganta arranhando, ainda tentando puxar o ar que ficava cada vez mais escasso naquele espaço.
E o canceriano continuava ouvindo e sentindo acusações para cima dele. Uma atrás da outra. Um falatório sem fim.
- SAIAM DAQUI AGORA! – de repente berrou a plenos pulmões calando a multidão.
- Hei! Quem você pensa que é? – a mulher de cabelos compridos pôs as mãos na cintura e franziu as sobrancelhas escuras. – Quase mata a pobre menina e ainda quer gritar com quem quer socorrê-la?
- Eu disse, ele é um assassino! – o molequinho de olhos verdes insistia naquela vozinha fina de criança mala.

- Mas vocês não estão a deixando respirar! – continuou gritando cheio de razão. E dessa vez não era só a culpa que estava disfarçando. A pequena de olhos azuis bebia a água com dificuldades e seu peito subia e descia intensamente em busca de ar. E cada vez mais pessoas se aglomeravam roubando-o dela.
Os olhares insistiram em continuar culpando-o, ignorando totalmente a razão dele. Então, numa atitude desesperada e heróica, apenas agarrou o braço de Rukia na cadeira e puxou-a com força.
- I-Ichigo! – protestou com aquela voz sufocada.
- Vamos sair daqui Rukia. Venha tomar um ar! – e foi levando-a dali, para além do vidro da porta do canto da parede, naquele gramado, perto do riacho, deixando todos com cara de tacho ou de indignados.

****

Estava naquele momento entre o fio de consciência e o sonho, quando ouviu a porta do apartamento se escancarar de modo bastante brusco despertando-a. Sentiu-se ligeiramente afrontada e assustada. Estava quase dormindo! Já podia ouvir murmúrios de seus sonhos e pequenas imagens começavam a se formar.
Foi então que começou a imaginar quem podia ter chegado. Rukia do encontro? Não... Era cedo demais... Só se ela tivesse tido algum tipo de decepção e voltado cedo. Esqueceu logo a raiva e preocupou-se caminhando até a cozinha então.
Mas não foi a baixinha de olhos azuis que encontrou. Foi a loira peituda, com uma roupa diferente da que tinha saído de casa naquele dia, sorrindo com o rosto avermelhado.
- Momo querida! – o sorriso foi se expandindo. – Sentiu minha falta, priminha?
Franziu as sobrancelhas grossas e comprimiu os lábios. Aquela pergunta era revoltante.
- Prima... – começou num tom bem malcriado, mas a loira, totalmente alheia, cortou-a.
- Oh! – olhou para trás, alguns homens apareceram no apartamento carregando caixas de garrafas. – Obrigada rapazes. – sorriu toda melosa para eles.
- Prima... – a expressão de Momo mudou. Os olhos castanhos arregalaram-se para as bebidas que iam chegando. – O que é isso?

- Sake, oras! – respondeu. – A festa não pode terminar! – levantou o dedo indicador e piscou um olho.
E a moreninha só conseguiu ficar paralisada ali, incrédula, quase trêmula de indignação e de impotência.

****

- Está... Se sentindo melhor...? – perguntou cautelosamente depois de uns longos minutos.
Estavam sentados num banquinho de madeira decorado com algumas pequenas flores vermelhas e amarelas, perto do pequeno riacho do restaurante.
Ali corria uma brisa revitalizante para Rukia. Refrescante para Ichigo.
A olhava preocupado. Ela mantinha os olhos fechados, inspirando e expirando.
- Estou melhor sim. – abriu os olhos devagar para ele. – Foi o melhor que poderia ter feito para se redimir. – fez bico.
E ele olhou para baixo. Ela tinha alguma razão. Agira precipitadamente.
- Me desculpe... – desviou os olhos sentindo a face começar a esquentar. Estava ficando tão vermelho quanto as pequenas flores que pareciam brotar do banco.
- Desculpar pelo que? – ela continuava olhando-o, sem se importar se ele a correspondia ou não. – Por me fazer comer aquela gororoba, por ter enfiado aquilo na minha boca, por ter gritado comigo mil vezes, por ter queimado minha garganta, me engasgado, ou por me fazer perder meu precioso tempo? – disparou feito uma arma.
- Ei! – agora se virou para ela ofendido. – Como assim te fazer perder seu tempo!?
- Você sabe! – respondeu duramente. – Com esse negócio todo de alma gêmea. Foi a coisa mais idiota que fiz! Acreditar nisso... Vim aqui para encontrar a pessoa mais idiota do mundo! A pessoa com quem com certeza já me relacionei de forma pior!
- Hei! A culpa não é minha! – gritou. – Eu não te obriguei a vir e muito menos a escolhi como minha alma gêmea. Não tenho culpa se você me achou detestável. Pois saiba que você também não é flor que se cheire. E olha que a maioria das pessoas que conheço me tira do sério... Mas acho que você ganha o prêmio!

- Oh! Pra você ver como tem alguma coisa errada, não é? – debochou. – Se todo mundo te tira do sério, não acha que é porque é ranzinza demais?
- E você não acha que está exigindo demais mesmo não fazendo por merecer? – retrucou.
- Eu não vou aturar uma criança de vinte anos de idade! Isso que todas as suas atitudes refletem! A de uma criança mal educada! Eu posso não ser a melhor do mundo, mas toda mulher quer um homem e não um moleque, disso todo mundo sabe!
- E todo homem quer uma mulher gentil, doce e compreensiva. E você é irritante e autoritária demais! Só fala gritando!
- E você pinta o cabelo!
- E você parece uma criancinha! Até suas roupas!
Olhou para seu vestido branco. Depois o encarou irritada. A pele pinicando de raiva.
- Argh! Chega! – levantou-se bruscamente. – Estou de saco cheio. Tudo isso foi um erro, certo? Um erro! – soltou o ar pesadamente.
- É. Certo. Um erro! – mandou no mesmo tom que ela, mas ao pronunciar cada uma daquelas palavras, sentia como se fossem apertões fortes em seu peito, um atrás do outro o sufocando. E aquele enjôo... O estômago revirando... Não era a comida... Não. Nem ao menos sabia seu nome. E aquilo se chamava decepção. Frustração.
Mas continuou com as sobrancelhas enrugadas, firmes, mais juntas que nunca.
- Mas... – acrescentou sem que ao menos pudesse pensar antes, como uma última chance, um último escape. – Mas já entramos nessa... Acho que... Não poderemos mais sair... – falou baixinho, examinando as calças jeans.
Ficou olhando para ele. Era verdade. Tinha assinado a porcaria do contrato.
Inspirou quase com violência e bateu o pé no chão gramado.
- Ah, droga! Droga, droga!
O ruivo continuava apenas fitando as pernas.
Só sentiu o perfume doce dela mais perto quando ela voltou a sentar-se ao seu lado.
- E se... Fingíssemos? – perguntou baixinho.
- Não podemos! Os braceletes...
- Não! Eu sei! – olhou para ele. – Eu digo... Se nos aturássemos pelo tempo necessário e no fim apenas disséssemos que não demos certo?

Deixou que as palavras dela entrassem em seu cérebro formando devagar o sentido. Não!
Era loucura! Ela não devia estar falando sério!
- Rukia... O que você...
- Ichigo... Vamos e convenhamos... Nós não vamos muito longe. Você procura uma mulher que possa ser doce e compreensiva com você. E acho que não posso te dar isso do jeito que você é criança e me tira do sério... Não temos nada a acrescentar um ao outro. Temos apenas um objetivo
em comum. Você sabe que essa história de que os opostos se atraem é somente lenda.
Abaixou de novo a cabeça como se acatasse uma bronca.
Sua vontade era de se rebelar. Dizer “Não!”. Explicar. Dizer que eles eram tão diferentes, eles eram opostos e se completaram perfeitamente. Eram o casal mais lindo e feliz e as diferenças serviam apenas para que se encaixassem. Sentia vontade de agarrar os ombros dela e dizer aquilo. E ter o olhar compreensivo dela de volta. E ouvir o tom doce de voz que sabia que ela podia ter dizendo que tentassem...
Mas não podia. Estaria sendo infantil de novo. Ela não entenderia...
- Você... Tem razão... – com esforço conseguiu fazer as palavras saírem de sua boca.
- Sabe... – ela prosseguiu. – Ainda tem o dinheiro da indenização... Podíamos usar para ajudar no nosso sonho
em comum... Podíamos pelo menos... Pelo menos nos unir naquilo que tenho certeza que o destino nos colocou juntos para. Por que não pelo menos conquistamos isso juntos? – continuava com os grandes olhos em cima dele. A voz já tinha se abrandado.
- Claro – respondeu devolvendo o olhar do mesmo modo. Aquela não era uma má idéia... De algum jeito eles tinham que começar...
E confiava que ela alcançaria o objetivo.
E queria ter a confiança dela para alcançar o seu.
E era tão... Mágico que tivessem aquilo em comum...
- O céu... – ela disse mudando de assunto, desviando os olhos do rosto do ruivo e elevando-os ao alto, àquele grande teto pontilhado e brilhante. – Está muito mais estrelado do que quando saí de casa.

Sentiu a brisa acariciar seu rosto. Sim. Havia mais estrelas. Era uma linda visão...
Lá dentro, a banda começou a dizer que começariam a última música da noite. E logo começou uma batidinha lenta, uma letra melosa.
O ruivo levantou-se, pôs-se de frente para a pequena que ainda observava os pontinhos lá em cima, como se estivesse perdida em pensamentos, ou apenas profundamente encantados.
Demorou a perceber que ele a estava olhando. Reparou que ele estendia timidamente a mão.
- Ichigo... – murmurou e viu quando as bochechas dele avermelharam-se.
- Celeste-sama disse para... Disse para dançarmos e... É a última música da noite.
Sorriu sem jeito. Também corou sem saber o porquê. E o coração deu uma acelerada contrariando o ritmo da música.
- Eu não sou boa nisso... – admitiu encolhida.
- Nem eu. – resmungou. – Mas não me faça ficar de mão estendida aqui nesse vácuo... – retorceu o rosto numa careta costumeira.
Soltou um pequeníssimo risinho. Doce e ao mesmo tempo um pouco nervoso. De algum modo ele era interessante às vezes.
Segurou então, com o peito levemente dolorido, a mão dele. Pôde senti-la pela segunda vez daquele jeito tão quente e firme. Cobriu toda a sua como se fosse um punhado de areia. Sentiu-se inexplicavelmente segura. Sentiu um perfume que não tinha reparado antes.
- Segure... Er.. No meu ombro, não? – perguntou meio atrapalhado. – E eu... Na sua cintura... – corava e corava o pobrezinho enquanto levava a outra mão à cintura fina dela.
- É. Isso. – assentiu com o rosto também acalorado. Pousou a mãozinha em um dos ombros duros dele e aproximou-se inconscientemente. E sorriu de um jeito pouco notável ao sentir que eles finalmente estavam encaixados para a dança. Ele apertando um pouco demais sua cintura por estar sem jeito, pensou. Se fosse assim... Queria que continuasse sem jeito...
Tão pequena e tão frágil. Antes como uma criança. Agora, como uma linda mulher... Delicada e doce, na medida perfeita para ser tão encantadora... Para ter vontade de protegê-la.

Começaram a deslizar num ritmo bem devagar, aqueles quase parando, até o fim da canção, que pareceu ao mesmo tempo tão longa e tão curta. Salpicando o céu de mais e mais estrelas... E de uma constelação de laços e promessas invisíveis.


Continua...


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