Céu escrita por Liminne


Capítulo 54
Capítulo 43 - Vozes do Silêncio




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Avistando a rua de casa, parou. O que estava fazendo? Fugindo para casa? Há! Como fora burro! Como se sua casa pudesse de alguma forma representar um refúgio!

O que ia dizer a Nell quando abrisse a porta? Ela já estava começando a suspeitar que não estava assim tão contente.

Voltou a caminhar, agora mais vagarosamente pelo resto do caminho. Pensativo. Nas próprias desculpas. Na barriga da prima. No líquido dos olhos do pai. Na frieza de Rukia. Aquela frieza que saía do olhar, da pele, do riso.

O verão passava e a parede de gelo se recuperava na frente daquela mulher tão...

A caixinha do correio! Quando deu por si estava ali procurando. Era automático todos os dias antes de chegar em casa. Mesmo nas férias não havia perdido o hábito. Mas o coração não pareceu captar aquele gesto como um simples hábito. Porque começou a pular feito louco. E começou a pingar pequenas gotas de esperança pelo peito do ruivo.

Tocou o papel. Sabia... Podia sentir espalhar-se pelo resto do corpo. Olhou as estrelas no envelope. Ainda havia uma ligação. Mesmo que tivesse voltado a ser invisível. Ela nunca desapareceria.

Enfiou a carta no bolso da calça e entrou em casa.

- Itsugo? – Nell estranhou a presença do primo. – O que está fazendo em casa a essa hora? – ela estava de avental.

- E-eu... – percebeu a fumaça saindo da cozinha. Ela estava [i] tentando [/i] cozinhar. Yuzu não ia gostar nada disso. – Estou com muito enjôo e não consegui ficar na aula. – fez sua cara de enjoado mais convincente.

- Poxa... – Nell fez beicinho. – Pode deixar que vou preparar uma coisa bem gostosa pra você melhorar! – sorriu toda boba.

Ele engoliu em seco. Pelo cheiro que vinha da cozinha, se ele comesse o que ela estava preparando, seu enjôo não ia ficar só no fingimento.

- Ah... Eu já almocei na faculdade. Por isso não estou me sentindo muito bem. Vou pro quarto.

Ela ficou olhando com dó.

- Tá bom! – gritou quando ele subia as escadas. – Mais tarde eu vou te fazer companhia!

O ruivo entrou no quarto e fechou a porta. Tirou a carta do bolso e os olhos quase pularam das órbitas.

- Tsc... – depois que leu, balançou a cabeça imaginando o que viria. – Se existe algo mais irônico que o destino, eu não quero conhecer.

 

****

 

- O que?! – Rukia não pôde deixar de gritar indignada assim que terminou de ler a carta estrelada.

- O que foi, Rukia? – Mai espantou-se. Estava sentada à mesa tomando um chá gelado quando a baixinha chegou gritando em casa.

- Não é nada... – ela tentou se refazer. – É só... Você sabe, o Infernal-sama. – revirou os olhos e foi adentrando o apartamento com passos duros.

- Humm... – a loira ficou observando a capricorniana andando pelo corredor. – Fazia tempo que ele não te irritava assim. Aposto que dessa vez o negócio é feio. – encolheu os ombros e tomou mais um gole do chá com a cabeça fervilhando de curiosidade.

- Ele sempre me irritou! – ela voltou para justificar-se. – E parece que perde a noção a cada dia.

Mai apertou os olhos.

- Você parece estressada, Rukia. Aconteceu alguma coisa?

Aquelas pequenas bolas negras e profundas quase a convenceram de mergulhar e desmanchar-se.

Mas era uma promessa consigo mesma. Não derreteria. E afinal... Tinha algum motivo para isso?

Claro que não! Estava bem. Estava ótima!

- Não, nada não... – sorriu. – Acho que hoje eu estudei demais, só isso.

- Ahhh... – não dava para saber se a escorpiana havia engolido bem a história.

- Bom... Onde estão as outras encrenqueiras dessa casa? – perguntou descontraindo.

- As duas foram ao mercado comprar os ingredientes para o jantar. – ela sorriu. – Parece que algum milagre aconteceu e elas estão a fim de te ajudar.

Essa era sua vida. Não tinha do que reclamar.

- Aposto é que elas querem me obrigar a fazer algum prato especial pra hoje, isso sim. – diminuiu os olhos desconfiada.

Mai caiu na gargalhada e balançou a cabeça, querendo dizer que concordava com a desconfiança de Rukia.

Aquela missão... Ia cumpri-la normalmente. Perfeitamente. Assim como sempre fazia com todas as suas obrigações.

Simplesmente. Sem envolvimentos ou preocupações maiores. Sem ouvir o que o coração sufocado tentava dizer.

 

****

 

- Prima... – Momo parou no meio do corredor quando as duas voltavam das compras para o apartamento.

- Que foi? Esqueceu de trazer alguma coisa? Eu falei pra você prestar atenção na lista. – Rangiku já foi ralhando como se fosse um exemplo de responsabilidade.

- Não é isso! E mesmo que fosse, por que só eu tenho que prestar atenção na lista? – a geminiana ficou brava. – Segura as sacolas. – deu-as nas mãos da loira. – Acho que o Shiro-chan chegou. – falou mais baixinho, tentando apurar os ouvidos para ouvir por trás daquela outra porta.

- Ihh... – Rangiku olhou de esguelha pra ela. – Lá vai ela torturar o pobre garoto.

- Não vou torturar ninguém! Ele não pode me odiar tanto assim! – ela choramingou.

- Ai criança... – a libriana meneou a cabeça suspirosa. – Você não entende nada mesmo... Vai lá, vai. Seja feliz. – adentrou o apartamento das meninas e deixou a priminha.

- O Shiro-chan nem me disse quando ia voltar... Nem veio falar comigo quando chegou... – ficou murmurando com o dedo parado na metade do caminho para a campainha. – Será que eu devo matar as saudades? Ou será que a prima tem razão e eu estaria só torturando-o?

Ouviu um resmungo mais alto dele. Sem dúvidas ele havia chegado. Conhecia aquela voz desde sempre e não importava o quanto ela mudasse.

Com um sorriso triste, acabou abaixando o dedo e dando meia-volta. Que as coisas acontecessem por meio do destino inevitável do qual não se parava de falar naquele apartamento logo à frente. Tentando pensar agora no jantar, atravessou à porta a qual pertencia.

 

****

 

Era sexta-feira e já estava cansada dos boatos. Será que não tinha gente o suficiente naquela universidade enorme para que falassem de outra pessoa? E será que todos esses fofoqueiros não podiam estudar mais ao invés de se meter na vida dos outros? O país teria profissionais muito mais sérios e capazes se cada um cuidasse da sua vida.

- Rukia... – ouviu a voz dele atrás de si e parou. Virou-se para ele. – Eu... Te pego na república daqui a duas horas? – ele falava tão cautelosamente que parecia até que ela era de vidro.

- Certo. – ela respondeu. – Daqui a duas horas. – e saiu caminhando com mais pressa.

- Você não quer uma carona? – ele perguntou para o nada, ela já tinha ido.

Suspirou pesadamente e sentiu o gosto amargo da solidão. Odiava aquele gosto. Talvez mais do que tudo. E poucas vezes o tinha sentido assim tão intenso.

Mas no fundo de seu coração ainda havia uma luzinha de esperança. Agarrou-se a ela e foi para casa. Antes de entrar no carro olhou bem para o céu azul. Tão lindo e misterioso... Com certeza ele ainda estava guardando muito mais. É. Estava sim. E só lhe restava esperar, como fez a vida inteira. Porque não sabia mais como lutar.

 

****

 

- Boa noite duplinha estrelada! – Celeste-sama recebeu os dois assim que chegaram daquele trajeto quase mudo.

- Boa noite! – Rukia sorriu tão simpática que o ruivo e o guru loiro se arrepiaram.

Eles a conheciam o suficiente para temer aquela doçura repentina.

- E... E então? – Celeste chegou a atrapalhar-se. – Prontos para dar as boas-vindas de volta às missões estreladas? Depois de tanto tempo sem elas! – seus olhos chegaram a brilhar debaixo da sombra do chapéu.

- Mas é claro! – Rukia lançou um olhar amável para Ichigo e depois voltou para o loiro. – Confesso que até senti falta. – cochichou com ele.

Ah, aquela atriz desgraçada! Era uma pena que ela não conseguia enganá-lo. Como queria que aquele olhar amável de dois segundos fosse verdadeiro. Faria de tudo por isso, podia sentir com o coração doído.

Mas quanto mais ela sorria, mais rapidamente a luzinha da esperança se apagava e maior era a vontade de voltar correndo para casa.

- Que... Ótimo! – Celeste podia sentir a névoa sobre os dois. Mas ele sabia exatamente como agir conforme a vontade do destino. Mesmo que aquilo o tivesse assustado um pouco. Como o Céu podia ser tão velozmente traiçoeiro? – Então, sigam-me. Vou mostrar a pequena casa que vão dividir nessas próximas 48 horas.

Os dois foram seguindo o mestre até o subterrâneo mais uma vez. E com as mesmas perguntas rondando na cabeça: afinal, quantas salas existiam lá embaixo? Seria Celeste-sama realmente um humano?

- Aqui está. – o homem de roupa verde abriu uma porta e revelou o cubículo. Sim. Cubículo. A casa que os dois dividiram nas próximas 48 horas era composta por uma cozinha minúscula, uma pequena mesa de jantar para dois, um banheiro quase inexistente e um espaço mínimo para um futon de casal, dois berços encostados na parede e um modesto fraldário. Os pequenos espaços que havia para se locomover no piso estavam ocupados por brinquedinhos de bebê.

O olhar de Rukia quicava de uma parede para a outra. Estava horrorizada. Seu estômago estava começando a dar sinais estranhos e aquilo não era fome.

Ichigo estava chocado, mas de algum modo estava... Feliz. É, ele estava feliz sim. Sentia que aquela missão era como as correntes. Por menos tempo, mas, ei! Funcionou uma vez! Porque não funcionaria de novo? Pelo menos podia forçar a melhorar [i] alguma [/i] coisa. Pior do que estava era impossível ficar!

- Vocês devem estar se perguntando por que diabos eu não coloquei os dois aqui quando estavam acorrentados, não é? – Celeste suspirou. – Mas infelizmente o espaço estava sendo usado por outro casal... Foi o maior azar.

Os dois olharam para ele incrédulos. AZAR?! Ele estava falando dele mesmo, só podia. Aquela ‘casa’ fazia o hotel de madeira parecer um sonho dourado.

- Enfim, vocês podem entrar e se acomodar. Logo logo os bebês vão chegar.

A sensação esquisita no estômago de Rukia aumentou. Bebês.

- E-espera um pouco... – ela tentou parecer o mais natural e alegre possível. Mas todas as circunstâncias conspiravam cruelmente contra ela. – Você disse bebês? No plural? Por que... Na carta dizia que íamos “passar 48 horas numa casa aprendendo a lidar com os problemas e as maravilhas que um casal destinado encontra na maternidade/paternidade”. – ela não conseguiu não ser debochada imitando a carta. – Mas não foi mencionado que seria mais de um bebê!

Ichigo ficou paralisado. Será que aquele lunático ia soltar uma penca de crianças choronas naquele espaço que não dava nem para respirar? E os dois iam ter que passar 48 horas alimentando, dando carinho e trocando fraldas desesperadamente? Um dos seus grandes sonhos era ser pai, mas ainda não estava preparado para isso!

- Fiquem calmos, meus brilhantes opostos. – ele sorriu irritantemente. Agora se sentia melhor. O desespero deles era a sua segurança. – Serão só duas crianças. Vai ser moleza pra vocês.

- Mas... Celeste-sama... – Rukia engoliu em seco antes de perguntar. – Não são crianças [i] de verdade [/i], são? – sentiu o friozinho na espinha.

- Ahhh, claro que não! – o loiro balançou a mão descartando a idéia. – Na verdade é algo muito melhor do que isso. – abanou-se com o leque. E os dois sabiam que aquilo não era bom sinal.

De repente, Ururu, a garotinha que sempre servia o chá, apareceu empurrando um carrinho duplo de bebês com duas pequenas crianças adormecidas.

- Celeste-sama... – ela disse com sua vozinha sempre intimidada. – Eu trouxe o que me pediu.

Os olhos do canceriano e da capricorniana não fizeram cerimônia em invadir o carrinho. E os corações quase saíram correndo do peito de cada um assustados. Aqueles bebês eram medonhamente reais.

- Então. – o sorriso luminoso de Celeste fazia jus a todas as suas ‘estrelas’. – Digam olá para os seus lindos filhinhos!

Ichigo e Rukia entreolharam-se horrorizados. Pelo menos em alguma coisa aqueles corações ainda estavam em sintonia. Não sabiam o que fazer em seguida. Tinham medo de se aproximar das crianças falsas. E mais medo ainda de dizer olá e assentir que aqueles dois eram seus filhos! Aquele homem infernal não tinha limites. Definitivamente ele não era humano.

- O que estão esperando? Cumprimentem seus filhos! – Celeste continuava incentivando por trás do leque. Era certo que estava escondendo um sorriso demoníaco ali. – Mas falem baixinho que eles podem acordar.

- Olá bebês. – Rukia começou, voltando a estampar seu sorriso falso nos lábios. Não ia perder nem para aquele demônio loiro e nem para o ruivo. – Prazer em conhecê-los!

Ichigo ficou olhando para a baixinha de olhos azuis. Suas bochechas queimavam. Ele não ia falar com bonecos! Quando fez isso pela última vez, nem sabia o significado da palavra masculinidade.

- Vamos Canceriano-san. Sabemos que há um paizão dentro de você. – o guru continuava empurrando.

- É. – Rukia olhou ironicamente para ele sorrindo melosamente. – Nós sabemos.

Naquele momento o ruivo sentiu como se estivesse engolindo pedras.

- O-olá crianças. – ele aproximou-se do carrinho. O que o desespero não faz com uma pessoa? Preferia falar com bonecos esquisitos e chamá-los de filhos do que continuar olhando para aquele sorriso sarcástico e perturbador.

Imediatamente a menininha começou a chorar. Um choro mais uma vez tão real que amedrontou. E aquela vozinha fina era daquelas que invadia os ouvidos e se instalava na cabeça por dias, bem folgada.

- Ohh, o que aconteceu? Se assustou com a cara feia do Ichigo, foi? – Rukia pegou a boneca no colo cuidadosamente. Ela tinha cabelos ruivos e usava um lacinho azul combinando com o vestidinho. – Não chora Mildred-chan. – sorriu maliciosamente enquanto balançava o bebê no colo. – Eu não vou mais deixar ele te assustar.

Mildred!?

Ichigo cerrou os punhos e os dentes. Ela tinha que desenterrar aquilo?

Mas espera! Isso queria dizer que... Que já estavam voltando ao normal?

- Então, agora vocês podem começar a missão. – Celeste fechou o leque e mostrou o sorrisinho agradado. – Até as oito da noite do domingo estarão trancados nessa temporária casa cuidando dos adoráveis gêmeos.

- Certo. – Rukia assentiu e foi entrando pela porta com o bebê e a mala na mão.

E Ichigo ia tirando o menino do carrinho.

- E lembrem-se. – o loiro fez os dois virarem o rosto para ele para ouvir o último aviso. – Vocês só tem direito a sete erros como pais. Eu estarei monitorando e avisando sobre os erros. Se cometerem sete erros e meio, estarão fadados a um pequeno castigo.

E mais essa agora! Pela última vez entreolharam-se compartilhando do mesmo medo.

- Que castigo? – Rukia fez as palavras saírem arranhadas da garganta. Mildred estava se acalmando, mas continuava choramingando em seu ouvido.

- Vocês terão que se redimir com seus filhos, ué! – ele disse como se fosse óbvio e escondeu novamente o sorriso com o leque. – Vão ter que passar toda a semana cuidando deles.

- TODA A SEMANA!? – agora a capricorniana revoltou-se. Estava sendo mais difícil do que pensava manter-se apenas atrás da parede de gelo. – Eu sinto muito Celeste-sama. Mas eu tenho mais o que fazer durante toda a semana. Eu tenho que estudar!

- Calma... Relaxa minha responsável Capricorniana-san. – ele falava num tom de quem tinha acabado de acordar. O que só deixava Rukia mais irritada e impossibilitada de fingir. – Quem disse que você não vai poder fazer suas coisas e estudar? Vocês vão poder sim. Só que com os bebês a tira colo.

- AH NÃO! – foi a vez de Ichigo de dar chilique. – Eu não vou carregar dois bonecos pra cima e pra baixo! Como se minha reputação já fosse a melhor, né?

- É só vocês darem o melhor de vocês e fazerem tudo direitinho. É simples! – aquele homem era capaz de mexer com a pessoa mais calma do mundo. – Bebês não precisam de muita coisa. Mamadeira, troca de fraldas, banho, alguns brinquedinhos, carinho, paz e atenção. O que tem de mais? Vocês nem estão gastando dinheiro!

Dinheiro! Era só nisso que ele pensava? Ah, claro! Ele ficava naquela sala maldita sem ouvir berro nenhum. Nem de criança, nem de qualquer escândalo que um daqueles dois resolvesse fazer.

Mas pensando bem... Sete erros. Eram muitos erros, não eram? Cuidar de bebês realmente não era difícil. Os dois tinham experiência com crianças. Rukia havia cuidado de tantas... E Ichigo sempre ajudara a tomar conta de suas irmãs... O que podia dar de tão errado? Não precisavam ficar apavorados com o terrorismo daquele homem maníaco. Ele só estava a fim de perturbar e deixá-los cismados. Para que o psicológico já começasse abalado na missão.

- Okay. A missão começa agora. – Celeste esperou que Ichigo atravessasse a porta e fechou-a. – Que as estrelas iluminem suas 48 horas. – ele disse do outro lado e saiu batendo seus chinelos de madeira para longe.

 

****

 

O silêncio o estava dando alergia. Já fazia quase dez minutos que tinham começado a missão e ninguém falava nada. Ela estava distraída ainda com a menininha ruiva no colo, passeando pra lá e pra cá. Toda vez que tentava parar e sentar, os choramingos recomeçavam e iam ficando mais altos. Então ela levantava pacientemente e continuava balançando a boneca enquanto caminhava de um lado pro outro.

Abriu a boca. Precisava que saísse alguma coisa. ‘Parece que a Mildred dá mais trabalho que o...’. Não. Nem tinha ainda um nome pro menino de cabelos pretos que segurava. ‘Será que ela funciona a pilha?’. Dã. Que é que tem a ver? ‘Você quer que eu a carregue um pouco?’ É! Isso seria uma boa.

- Rukia... – ele começou.

Ela olhou para ele ainda fazendo sua caminhada.

- Er... – travou só por causa daqueles olhos cor de gelo. – Ajuda... Será que queria que... – ficou vermelho. Precisava errar a ordem da frase como um idiota? – Você não quer que eu a carregue um pouco pra você? – disse enfim, sentindo o coração pesado.

- É. – ela disse e sorriu pequenamente. – Acho que nós dois temos que dividir as dificuldades aqui.

O ruivo colocou o menino no berço e em seguida pegou a ruivinha no colo.

- Obrigada. – ela disse.

Os dois estavam tão próximos...

Mas não durou muito. Rukia apressou-se a sentar numa cadeira. A pena é que o outro bebê resolveu começar a gritar de dentro do berço bem naquela hora.

- Não acredito. – Ichigo disse enquanto imitava Rukia andando.

- Uau, como esses bebês são carentes! – ela levantou-se e suspirou. Foi até o berço e pegou o menino no colo. E ele continuava chorando. – Aposto que devem ser cancerianos. – ela resmungou, mas ele não tinha certeza do que ouvira.

Recomeçou então a caminhada. Agora era um indo para um lado com uma bebezinha ruiva e a outra indo para o outro com o menininho moreno. Naquela sala/cozinha minúscula. Pelo menos assim eles paravam de chorar.

- Sabe Ichigo... – a voz dela reverberou pela casa mais uma vez silenciosa. – Eu queria pedir desculpas...

O ruivo parou seu trajeto. Chocado. Incrédulo.

Desculpas... Ela queria pedir desculpas?! Seu coração começou imediatamente a fazer festa.

- D-desculpas pelo que? – perguntou tentando não parecer tão pasmado, voltando a andar pela sala.

- Eu tenho te tratado friamente... – ela ia dizendo. E como estava andando na direção oposta da dele, não precisava mirar aqueles olhos melosos. – E... Acho que isso não é certo.

Ichigo estava cada vez mais chocado. Mas nenhum choque podia se comparar àquela esperança que crescia vertiginosamente, enchendo-o de alegria.

- Eu confesso que fiquei... Surpresa. – ela escolhia as palavras devagar. – Você sabe... Eu sabia da sua prima... Mas não ia imaginar que... Bem... – balançou a cabeça. – Enfim. Eu não imaginei que ia acabar levando à sério a nossa condição de almas gêmeas. – disse as últimas duas palavras num tom de ironia para si mesma. – E eu encarei aquilo como uma traição... À primeira vista... – respirou fundo. Era difícil dizer aquilo em qualquer circunstância. - Mas quer saber? Acho que eu estava errada. Assim como eu não devo nada a você, você também não deve nada a mim. Nós só estamos num experimento, não é? E... – olhou para baixo. Por algum motivo não estava sentindo aquela força que achou que sentiria ao dizer essas palavras. – E nós ainda temos um objetivo em comum. E assim como combinamos no primeiro encontro, vamos trabalhar juntos por ele.

Naquele momento, os dois se encontraram, um de cada lado, e acabaram se olhando nos olhos. A alegria dele evaporou como se nunca tivesse pensado em existir. E a melancolia dela teimava em derreter o gelo no seu olhar.

- Nós... – ela obrigou-se a dizer alguma coisa antes que fraquejasse ali. – Nós ainda somos parceiros, não é, Ichigo? – sorriu. Um sorriso de inverno. – E eu quero te ajudar. É uma grande responsabilidade, afinal.

Ele apertou a bebê nos braços. Quase a esmagou. A garganta estava tão contraída que teve medo de sufocar-se. Mas lutou com todas as suas forças para respirar. Respirar e dizer:

- Rukia. – com força. – Rukia eu... Eu nunca te trairia. Eu não...

- Shh! – ela fez. – Está falando muito alto, não acorde a Mildred agora que ela finalmente dormiu! – ralhou num sussurro. – Não diga nada Ichigo. Você sabe que não há mais nada a ser dito.

Aquele contato visual que fizeram foi uma viagem profunda a todas as memórias, sonhos e agora os pedaços, os cacos. Não havia mais o que ser dito. Tudo acontecera certo. No tempo errado... No tempo errado? O destino saberia o que estava fazendo?

Ela virou-se. Foi até o berço onde deixou o menininho.

Ele nunca a trairia. Estava falando a verdade...

Se era a verdade, porque então ela não acreditava? O erro era seu de não ter gritado em alto e bom som tudo que estava realmente acontecendo? O erro era dela de olhar em seu rosto e deixar o ceticismo tomar-lhe de volta?

Ela tinha razão em uma coisa: Não havia mais nada a ser dito. Ela deveria ler seus olhos. Por que é que ela não tentava fazer isso? Estava desistindo? Aquela mulher tão forte estava determinada a desistir?

- Temos que dar um nome a ele. – ela disse quando Ichigo colocou a ruivinha no berço.

- É... Ainda não consegui pensar... – ele coçou a cabeça.

Por que ele parecia tão inocente? Por que estava se sentindo seduzida por aqueles olhos? As palavras lhe diziam que ele nunca a trairia. E os olhos dele imploravam desesperados. Ele ainda era o Ichigo. A sua suposta alma gêmea. Era isso que aquele castanho profundo fazia de tudo para convencê-la.

Mas de qualquer forma... Não havia mais espaço para ela ali. A realidade sempre foi dura. Fria. A primavera que o amor pintava era só um sonho bonito demais para existir. Não podia se unir a alguém com um sentimento tão cego, egoísta e deslumbrado. A realidade tem muito mais espinhos do que pétalas.

- Dê o melhor de si nessa missão. Ela vai te ajudar em muita coisa. – ela disse olhando pra ele assim que finalmente sentaram-se.

Ele sentiu um ódio gigante de cada uma daquelas palavras.

- A propósito... Vai ser menino ou menina? – ela perguntou.

Ele queria virar as costas e deixá-la falando sozinha. Mas segurou-se.

- Menina.

Ela puxou um daqueles sorrisinhos maliciosos que seria encantador se o sentimento não tivesse mudado.

- Ohh! Então eu adivinhei. Vai se chamar Mildred!

- Não vai não! – ele tentou parecer indignado, mas não era tão bom ator quanto ela. – Mas a Nell ainda não decidiu o nome.

- Dá essa sugestão pra ela. – ela piscou.

- Não mesmo. – dessa vez ele colocou um pouco de raiva de verdade na frase. – Só você pra ficar me lembrando desse capítulo negro do meu passado.

- Eu e sua irmãzinha querida. – ela riu.

E os bebês começaram a chorar em sincronia.

- Ahh! Mal sentamos! – ela reclamou, mas foi a primeira a se levantar de novo. – O que será dessa vez?

- Aposto que temos que dar comida a eles.

Se olharam em dúvida. O choro ia ficando mais alto.

- Porra. O que eles têm dentro do corpo? Uma caixa de som? – Ichigo resmungou irritado.

- Seja paciente, Ichigo. – ela foi até a geladeira. – Vamos ver o que tem aqui. Será que eles tomam mamadeira?

- Quer saber? Eu também to com fome...

Ela olhou para ele com uma sobrancelha levantada.

- E como você NÃO É um bebê, você vai fazer comida pra gente.

- Ei! Como assim pra gente, espertinha? – ele diminuiu os olhos pra ela.

- Enquanto eu alimento os bebês você faz comida pra gente ué. Temos que revezar e colaborar.

Ele levantou-se.

- Certo. Mas só dessa vez.

- Só dessa vez nada. – ela pegou o leite e começou a fazer a mamadeira para as crianças.

E os gritos iam ficando ensurdecedores.

- MEU DEUS! DÁ PRA FAZER ALGUMA COISA COM ESSES GRITOS?! – Ichigo berrou tampando os ouvidos.

- SE VOCÊ COMEÇAR A GRITAR JUNTO, SÓ VAI PIORAR! – Rukia irritou-se também.

- E VOCÊ TAMBÉM! – ele devolveu.

Ela lançou um olhar fulminante para ele e voltou a atenção para as mamadeiras.

- Melhor fazer isso bem rápido.

 

****

 

Depois da mamadeira e do jantar, Ichigo e Rukia deitaram-se no futon. Eram quase dez horas da noite e eles não tinham mais nada para fazer.

- Podiam pelo menos ter colocado uma TV aqui. – ele disse, olhando pro teto.

- Você só reclama. – ela fez uma careta. – É bom que a gente dorme cedo e esse pesadelo acaba logo.

- É... – ele ficou olhando para os berços. – Pelo menos ainda não cometemos nenhum erro, né? Eu acho...

- O Infernal-sama disse que ia nos avisar... Não disse?

- Rukia, você está falando alto, sabia?

Ela olhou feio pra ele.

- Eu vou sair dessa missão sem saber mais como sussurrar. Esses bebês vão me deixar tão surda que não vou ouvir minha própria voz.

- Talvez isso já esteja acontecendo. – ele continuou alfinetando.

- Tá falando do que, ô Mr. Escândalo? Ou prefere Mr. Chilique?

- Você tem razão. É melhor DORMIR logo. – ele enfureceu-se, como sempre.

- Boa noite Ichigo. Boa noite Mildred. Boa noite William. – ela fez questão de perturbar um pouco mais.

- Boa noite. – ele respondeu de má vontade e virou-se.

Uns trinta minutos se passaram naquele silêncio pacífico. Mas os olhos do ruivo não conseguiam ficar dois minutos fechados. Ele mudou de posição. E deu de cara com o rosto de Rukia. Seu coração quase explodiu. As bochechas queimaram tanto que chegou a pensar que fosse uma febre repentina.

Os fios negros dos cabelos dela caindo delicadamente naquele rosto alvo... Os enormes olhos agora fechados, tão tranqüilos, descansando de emitir tanta luz e tantas emoções. O ar quente que saía de seus lábios sutilmente entreabertos... O peito subindo e descendo dentro do baby doll lilás de coelhinhos...

Ela estava ali, do seu lado. Dormindo na mesma cama. Olhou para o quarto ao redor. Os dois berços... Parecia um pouco com o futuro que havia imaginado para os dois. Sentiu uma coisa quente subir-lhe pela garganta e ferver o peito com aquele pensamento. Dormir na mesma cama que Rukia e ter dois filhos com ela para criar...

Aquele momento seria um ensaio. Aquele momento seria muito mais que perfeito. Seria... Se ela o amasse de verdade. Se ela confiasse no silêncio. Se ela confiasse no escuro. Se ela se entregasse genuinamente.

Não havia mais nada que pudesse fazer enquanto ela não ouvisse de verdade a voz do coração. Do seu. Do dela. Mas ia esperar. Não ia desistir de esperar. A responsabilidade não era mais sua.

Ameaçou tocar o rosto sereno dela. Mas sabia que não tinha direito nem permissão. E por menor que fosse, também tinha o seu orgulho.

Recolheu então os dedos e virou-se novamente para o outro lado.

Estaria sempre acordado esperando-a.

 

****

 

Sempre acordado. Literalmente.

Não pregou os olhos por uma hora completa e os bebês começaram o choro novamente.

- Ah não... Não é possível! – ele começou a levantar-se depois de se recuperar do susto tão brusco.

- O que pode ser agora? Eles acabaram de comer! Não me diga que querem passear de novo!

Foi então que os dois puderam perceber nitidamente do que se tratava o choro. Afinal o cheiro não deixava sombra de dúvidas.

- Puta que pariu! – Ichigo xingou quando chegou perto do berço. – Eles fazem [i] isso [/i] de verdade?!

- O Infernal-sama é... Infernal mesmo! Não tem outra palavra pra descrever. Como ele faz isso?! – foi levando Mildred até o fraldário.

Ichigo por sua vez ficou ali parado, só observando os movimentos da baixinha de olhos azuis que cumpria aquela tarefa nojenta com uma facilidade incrível.

- Ei, Ichigo... Tem espaço pra você também. – ela se afastou um pouco pro lado.

Mas ele não se moveu.

- Ahh, pára! – ela sorriu provocando. – Vai dizer que está com nojo? Ou pior: que não sabe trocar fralda de bebê!

- E-eu... – ele ficou vermelho e na defensiva. – N-não é nada disso... – desviou os olhos todo bravinho.

- Ahh, claro, como eu fui boba. – ela balançou a cabeça. – É claro que você é mestre nisso. Só não está querendo me humilhar! Afinal, você trocou muitas fraldas da sua Mildred-san quando era criança.

- Ei! – ele protestou. – A Mildred-san não era uma boneca bebê! Era uma Barbie!

- Hahahahahaha! – Rukia caiu na gargalhada. – Okay. Essa missão valeu só por isso. Não acredito! Tinha que ter gravado!

- Argh, sua... – ele cerrou os dentes irado da vida.

- Não é difícil, Ichigo. – ela parou com a brincadeira e foi a socorro do canceriano assim que terminou com a menininha. – Primeiro você deita ele, depois tira a roupinha... Isso. Tira a fralda com cuidado e...

Foi o ruivo tirar a fralda do menino que ele começou a fazer xixi... Nele.

- Hahahahaha! – Rukia começou a rir de novo. – Como você é azarado, Ichigo!

- Nem me fala. – a cara azeda dele era impagável. – Espero que isso seja suco de maracujá ou algo assim... – limpou o rosto contrariado enquanto Rukia continuava rindo.

 

****

 

Depois das fraldas trocadas, os pequeninos obrigaram o casal a sentar-se na cama, cada um com um no colo e ficar balançando-os, ninando-os.

- O Celeste-sama fez de propósito. – Rukia disse enquanto balançava William. – A Mildred é ruiva e o William é moreno.

- É... – Ichigo olhou para o rostinho tão real de Mildred. – Mas a cor dos olhos dela... Lembra os seus olhos... – disse. Mas se arrependeu. Aquilo soou tão...

Não ousou olhar para ela. Sabia que o estava fitando.

Rukia foi impelida a olhar para o rosto de William. E ele tinha aqueles olhos castanhos tão doces e carentes...

Sorriu. Aquele maldito não dava um ponto sem nó. Os cílios começaram a pinicar.

Não! Desesperou-se. Não podia! Passou a mão pelo rosto e certificou-se de que aquilo havia realmente parado.

Aquela experiência era para Ichigo aprender a ser pai. E não para despertar um lado sentimental no seu coração já confuso e abalado.

Despertar... A quem ela queria enganar? Aquele lado sentimental já havia sido despertado havia muito tempo. Por olhos castanhos doces, carentes e na versão verdadeira.

Mas ela ia conseguir reverter. Ela tinha que conseguir.

 

 

Continua... 

 

 


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