Céu escrita por Liminne


Capítulo 19
Capítulo 19 – Trégua pela Lua cheia




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Os portões do jardim estavam fechados. Óbvio. Teriam que pular o muro de trepadeiras para entrar. E como fazer isso acorrentados? É. Seria um grande problema.
- Entendeu? Quando eu disser já, a gente pula juntos. E você agarra no meu braço.
- Isso é loucura, Ichigo! – ela parecia apavorada. – Eu vou pesar muito e você não vai conseguir pular!
- Rukia, olha só pra você! – ele a olhou de cima a baixo com uma careta sarcástica. - Uma melancia pesa mais que você!
- C-como? – ela apertou as sobrancelhas ofendida. – Está me chamando de desnutrida?
- Hum... – ele fez-se de pensativo. – Quase isso... – voltou a olhar pro muro ignorando a veia que latejava na testa dela. – Vamos logo!
- Olha, eu me recuso a agarrar no seu braço pra pular um muro. – ela empinou o queixo orgulhosinha. – Eu posso fazer isso sozinha.
- Ah, é? – ele desafiou-a com o olhar. – Então quer dizer que você pulava muros quando era criança? – estava interessado. Tinha nutrido seriamente pensamentos sobre uma Rukia criança se comportando como uma dama.
- É isso mesmo. – ela continuava se empinando de orgulho. – E eu era bem ágil nessas tarefas.
- Okay, okay, você venceu. – ele voltou a encarar o inimigo com imagens modificadas na mente. Então Rukia realmente fazia travessuras na infância. – Vamos ver do que você é capaz...
- Certo. Quando eu disser já, vamos pular juntos. – encarou-o agarrando o papel de líder sem cerimônias. – Um... Dois... Três... E... Já!
Os dois então pularam habilidosamente e fincaram o pé em alguma falha do muro para que pudessem continuar a escalar até o topo.
E não é que ela era mesmo boa naquilo? Ichigo estava admirado. Quase sorriu diante daquela visão. Nunca imaginaria que pudesse ver Rukia sendo tão... Viva. Inconseqüente. O coração palpitou de um sentimento quente ao pensar que aquilo era responsabilidade sua. Alguma coisa estava mudando. Assim como a Lua crescente de repente estava totalmente cheia.
Rukia sentia que estava sujando seu vestido branco.

Aquele mesmo que usou quando Ashido e Mai a levaram para conhecer Kasuga e sua escola. Num dia sendo tão responsável e em outro, uma criança... Mas não tinha espaço para culpa naquele momento em sua mente. Sentia a adrenalina de estar fazendo algo proibido. Sentia a brisa da primavera nas bochechas, a vontade de superar as expectativas de Ichigo. Sentia-se livre... Como não se sentia havia muito tempo.
Mesmo que estivesse acorrentada.
- Agora, vamos pular juntos, certo? – Rukia disse já no topo do muro com Ichigo ao lado.
- É, vamos lá. – ele concordou.
- Já!
Os dois pularam juntos para dentro do jardim com a maestria de crianças espoletas. Olharam-se.
- Devo admitir que subestimei você. – Ichigo disse.
- Eu sei disso. – ela sorriu. – Mas eu perdôo você.
Ichigo assentiu com a cabeça e começou a tentar limpar a roupa suja. Rukia fez o mesmo. Mas parecia que aquele vestido ia ficar marcado para sempre.

****

Estava assistindo a um filme de comédia na TV quando seu celular tocou. Levantou-se bastante contrariado. Seu dia já tinha sido bastante ruim.
Mas quem sabe pudesse ser uma boa notícia, uma oportunidade de encontrar uma casa fixa pelo menos?
- Alô. – colocou o objeto no ouvido assim que o encontrou na mesa da cozinha.
- E então? Já está estabilizado? – a voz do outro lado da linha respondeu friamente.
- Er... Bem... – coçou a bochecha com seu costumeiro sorriso e olhou ao redor. – Na verdade...
- Então acho bom você se estabilizar já. – cortou sem alterar a voz, mas emanando uma sensação medonha de impaciência. – As coisas estão caminhando como devem. E se eu tiver que continuar pagando hotel pra você não vou conseguir lucro nenhum.
- Sim, sim, eu sei. – ele assentiu. – Vou encontrar um lugar barato que eu mesmo possa pagar.
- Então é melhor que se apresse. – e desligou.
- Ai, ai... E mais essa agora... – Gin esfregou a mão na testa depois de pousar o celular na mesa novamente. – Preciso agir rápido.

****

 

- Me pergunto como pode haver um jardim tão bonito aqui... – Rukia ia caminhando lado a lado com Ichigo, olhando ao redor cada pétala de cada flor... E de vez enquando parando para admirar o céu que parecia fazer conjunto com a paisagem. - Deve ser mesmo a coisa mais bonita do hotel.
Ichigo também estava admirado com a paisagem. Mas outro sentimento predominava seu peito. Fácil de imaginar. Estava feliz.
- O céu... – ele disse baixinho. – Está lindo... – parou de andar.
Chegaram à última árvore do jardim, uma cerejeira enorme toda cor-de-rosa. O símbolo mais tradicional da primavera no Japão. O fim do lindo passeio.
- É verdade. – Rukia concordou parando junto com ele. De repente, seu peito apertou de nostalgia.
Suspirou pensando que já voltariam... Se pudesse dormiria ali.
Mas ficou surpresa quando Ichigo subitamente sentou-se embaixo da cerejeira.
- I-Ichigo? – ela estranhou. – O que você está fazendo?
Ele recostou-se ao tronco. A brisa tratou de soprar as pétalas rosadas pelo ar.
- Acho que não tem graça só passear. A gente podia ficar um pouco. – olhou para o céu. – Você não gosta de olhar as estrelas?
Naquele momento, os olhos azuis de Rukia brilharam tanto quanto o céu. Sim. Ela adorava olhar as estrelas.
Hesitou um pouco, mas... Ele não estava de brincadeira. Parecia ter mergulhado num profundo estado de concentração nos pontinhos brilhantes que pairavam acima de suas cabeças.
Quando deu por si, estava ao lado dele, recostada ao tronco da cerejeira, olhando para o mesmo alto.
- Uau! – deixou-se exclamar. – A visão daqui é perfeita! – seu coração batia mais quente. – É como... Como em Kofu... – mordeu o lábio inferior tentando impedir que se emocionasse mais que o conveniente. – Eu pensei que não ia mais poder ter essa vista do céu aqui em Tóquio...
Ele olhou para ela. Via que aqueles olhos ora cor de céu de primavera, ora cor de gelo estavam lutando para não começarem a chover ou derreter. Seu coração disparou pela proximidade. E a vontade de chegar ainda mais perto...

- Pode chorar se quiser. – ele disse voltando os olhos para cima e disfarçando um sorrisinho de canto.
- Ei! – ela berrou indignada. – Quem disse que eu quero chorar?! Eu não quero! – firmou as sobrancelhas e emburrou.
- Sabe... Acho que estava um pouco enganado quando disse que você era mais fria que o Alaska... Afinal... Coisas como um jardim e um céu estrelado quase te arrancaram lágrimas. – estava implicando. Mas ao mesmo tempo expondo sua satisfação.
- Hunf! – ela continuava bicuda. – Já disse que não estava chorando, droga! – apertou mais as pequenas sobrancelhas. – Mas mesmo assim... Eu sabia que você se arrependia da lista! Você foi muito precipitado. Não sabe nada de mim para me apontar daquele jeito.
- Ah é? – agora se ofendeu. – Eu não sei nada de você?
- Bem... Algumas coisas... – encolheu os ombros sem encará-lo para não ter que se render.
- É claro que eu sei! Você é uma cabeça dura, orgulhosa e metida à perfeita. Sabe ser uma pessoa boa, mas adora se esconder no seu iglu quase impenetrável. Age como uma adulta o tempo inteiro e fala como um homem autoritário. Mas é fanática por coelhinhos e se encanta com flores. Se mexe quando dorme e fica igual uma criança feliz patinando no gelo. – fez uma pausa para respirar. Percebeu que as sobrancelhas dela relaxaram e os olhos estavam ligeiramente arregalados. Ficou instantaneamente vermelho e encarou os tênis. – E se eu sei essas coisas... Foi com muito custo, viu? – azedou a cara daquele seu jeito costumeiro e único.
- E-eu... – continuou a se encolher. – Eu não fico igual uma criança feliz patinando no gelo...
- Continua mantendo sua afirmação? – desafiou-a.
- Hunf! – empinou o queixo recuperando seu orgulho. – Isso não é nem metade do que eu sou.
- Ah, claro que não. – ele emburrou ainda mais. – Já mencionei que foi difícil. Por que você é muito difícil. – bufou e coçou a nuca. – Agora me diz Rukia... O que você sabe sobre mim?
Abriu a boca para dizer como se tivesse a resposta na ponta da língua.

Mas acabou por fechá-la novamente. Porque lembrou que não tinha resposta alguma. Ou melhor... Uma resposta nada digna, nada justa, nada bonita.
Abaixou a cabeça. Olhou para o lado oposto ao dele com uma cara nada contente.
O que o fez suspirar quase desanimado.
- A lua cheia está mesmo bonita hoje... – ele disse agarrando-se a esse quase, observando o céu.
- Não precisa mudar de assunto! – ela virou-se para ele quase imperceptivelmente corada. E ferida na dignidade.
- Só estou dizendo que está bonita. – ele disse com um tom bem forte de impaciência. – Será que até nisso vai querer discordar e arrumar problema?
Inevitavelmente ela olhou para cima. E não tinha como contrariá-lo, por mais que fizesse aquilo o tempo todo. Por vontade própria ou inconsciente. Por serem signos opostos ou por simplesmente estar na defensiva o tempo inteiro.
Dessa vez ele tinha razão. A lua estava perfeita. Não se lembrava de já tê-la visto mais brilhante. Parecia uma rainha no céu. Com suas subordinadas aos milhões brilhando.
- Não. – respondeu enfim. – Não vou te contrariar dessa vez... – relaxou o rosto.
- Que tal uma trégua, hein? – a voz dele parecia cansada. No fundo tinha aquela esperança, assim como o açúcar se acumula no fundo do copo. Mas ele estava mesmo precisando de uma remexida para lembrar-se do gosto exato dessa esperança.
- Pela lua cheia? – ela olhou para ele bem mais suave. Mexendo-o de leve.
- Pela lua cheia. – ele afirmou. Voltava a sentir aquele gostinho doce...
Ela sorriu pequenissimamente e voltou os olhos para o alto.
- Uma vez me disseram que as estrelas têm cores... Sabia disso?
- É mesmo? – ele espantou-se e encarou as pequeninas com outros olhos. – Não sabia...
- Pois é. – ela espalhou o sorriso. – E é verdade sim. Por que não fazemos o seguinte: para cada cor de estrela que conseguirmos identificar, falamos uma coisa sobre nós.
Agora foi a vez dele de sorrir. Ela finalmente tinha entendido. E se rendido.
- Ótimo. – espremeu os olhos para o céu. – Aquela ali é azul, não é? – apontou.

 

****

- Então, todos têm que saber, entendeu? – a loira terminou de contar seu plano às amigas.
Agora Fuu tinha se juntado ao ‘feriado do pijama’ de Mai e Chiharu.
- Huumm... – Fuu fez com o dedo indicador na bochecha. – Eu entendi. O problema é que tem alguma coisa estranha... – franzia o cenho fazendo a franjinha rosa se mexer. – Você não tinha dado um pé na bunda do Ashido? Tipo... Por vontade própria?
- É... Sim. – a escorpiana respondeu. – E o que isso tem a ver?
- Tem a ver que... Pelos meus cálculos, você quer espalhar que o Ichigo e a Rukia-chan estão juntos para que o Ashido fique longe dela, não é?
- Nããão! – ela prolongou a palavra e abanou a mão dando a entender que aquilo era a maior besteira que já tinha ouvido. – Claro que não, Fuu! – lançou um olhar significativo para Chiharu que começou a fazer os mesmos gestos e expressões de incredulidade. – É claro que eu ainda não esqueci o Ashido... Mas não estou fazendo isso para que ele fique longe dela. Acho que ele tem o direito de fazer o que quiser... Só que... Bem, você sabe... Ele precisa saber que ela tem namorado. E vocês bem sabem quanto eu me sinto culpada pelo que fiz com o Ichigo no passado... Estou aliviando minha consciência e fazendo um bem pelos dois: tirando os inconvenientes do caminho da Rukia-chan e ainda melhorando a fama do Ichigo já que ele está saindo com uma garota superlinda e inteligente.
- Hum... Sei... – a geminiana diminuiu os olhos meio desconfiada, meio convencida.
- Nós duas sabemos como a Mai-chan é possessiva. – Chiharu conspirou, mas em voz alta, tudo parte do plano. – Mas sabemos também que, quando ela abre mão de alguém, ela está deixando essa pessoa livre. E mesmo que ela ainda ame o Ashido, ela fez o que foi melhor. E se os dois estão separados, ela não vai impedi-lo de ser feliz!
- É isso mesmo. – Mai afirmou balançando a cabeça.
Já tinha voltado a vestir suas melhores roupas (mesmo que fossem pijamas) e parecia mais luminosa a olhos superficiais. A sua máscara estava se reconstituindo.

- Se é assim, então okay. – Fuu sorriu se ajeitando na cama macia. Ficou pensativa por mais um instante e voltou a abrir sua boca perguntadeira. – Mas espera... Por que vocês estão falando isso pra mim? Por acaso não estão me chamando de fofoqueira, estão?
A loira e a morena trocaram olhares cúmplices.
- Nãão! – disseram quase ao mesmo tempo. – Não é isso!
- É que você tem muitos contatos. – Mai piscou.
- Ah sim. – Fuu ajeitou os ombros toda contente consigo mesma. – Isso é verdade!
As duas então riram e depois voltaram a planejar os detalhes.

****

- Quando eu era criança, eu chorava por tudo. Era um bebezão. – desaprovou a si mesmo com um abanar da cabeça. – Uma vez meu pai me trancou no quarto escuro porque eu já estava grande demais e ainda perturbava os dois na hora de dormir... Ele e a minha mãe... – sorriu minusculamente com nostalgia. – Eu chorei muito. Mas muito mesmo. De ficar tonto. Minha mãe ficou com pena e me soltou. Aí meu pai falou que eu nunca ia ser homem porque eu tinha medo de escuro. E mesmo que minha mãe dissesse que ele estava enganado, que eu ia crescer na hora certa, eu fiquei uma fera! Depois desse dia eu ia pra cama sozinho. E dormia no escuro total!
Já nem contavam mais as cores das estrelas. Pareciam não precisar mais de pretextos. Já fazia tempo que estavam falando, conversando, confessando-se um para o outro. É. Estavam se confessando com a bênção do céu, das suas estrelas e da rainha Lua.
- Nossa! – os olhos de Rukia cresceram e o sorrisinho tinha se tornado permanente nos lábios. – Que obstinado! O medo desapareceu rápido mesmo!
- Bem... – ele corou um pouco e esfregou o pé no chão antes de confessar. – Depois da primeira noite, minha mãe começou a ir ao quarto para ver se estava tudo bem. Eu fingia que estava dormindo. Mas a verdade é que eu comecei a esperar pela visita dela todo dia. E quando ela passou a não ir mais, quase tive uma recaída!
- Haha! – ela riu. – Mas você superou, né? – provocou-o com os olhos diminuídos.

- Claro! – ele fez uma careta pra ela. – Eu fiquei mesmo com muita raiva do meu pai.
- É... – Rukia suspirou. – Parece que você é mesmo ligado à sua família... – o sorriso foi empalidecendo. – Perder a sua mãe deve ter sido a coisa mais difícil da sua vida...
- E foi. – os olhos dele tornaram-se opacos. – Ainda é muito difícil viver sem ela, pra dizer a verdade...
Rukia sentiu uma pontada incômoda no peito. Ele ficara mesmo triste. Ele era mesmo triste e profundamente marcado por aquela perda. Aquela mulher estava presente em todas as lembranças dele. Boas ou ruins. Tudo que ele havia falado tinha a presença dela... Conseguiu aprender que ela seria insubstituível para ele. A figura mais importante. Eterna. O maior brilho e a maior escuridão... Talvez tudo em sua vida tenha acontecido devido àquela tragédia... Ou quase tudo.
Como seu pai fizera com o medo de escuro, sem a mãe que ia visitá-lo no auge de sua insegurança, fora empurrado no mundo com todos os seus monstros e pesadelos.
- Bom... Acho que você só tem que provar mais uma vez que é forte... No fim, acho que a vida é feita disso. De superarmos nossas fraquezas. – fez uma pausa e olhou para dentro de si. – O meu maior trauma... Uma coisa que nunca esqueço... Foi quando uma garota de uns quinze anos morreu no hospital que minha mãe trabalhava. Eu tinha sete anos... Ela morreu da mesma doença do meu pai... – apertou os punhos. – Eu fiquei apavorada. A partir desse dia, comecei a tomar consciência de que... De que... – engoliu um nó gigantesco na garganta. Abriu mais os olhos para que qualquer umidade indesejada secasse. – Então comecei a fixar a idéia de curar essa doença na minha cabeça.
- Foi aí que nasceu a baixinha mais nerd da história. – ele ironizou quebrando aquele clima tão pesado.
- Háá... Babaca! – puxou a corrente com força fazendo com que o braço do ruivo tomasse uma arrancada.
- Ai desgraçada! – ele grunhiu.
Os dois então ficaram uns segundos em silêncio admirando o vento e suas pétalas de cerejeira.

- Ah! – Rukia iluminou-se de repente. – Fechando a sessão infância, me lembrei de algo!
O ruivo olhou curioso para ela.
- Eu sempre fui louca para ter um coelho... Mas minha mãe tem alergia a pêlo de animais e nunca deixou. Só que um dia, eu devia ter uns seis anos, uma amiga minha ganhou um coelhinho. Ele era lindo! Eu quase morri de inveja! Imagina só que eu reuni meus amigos e a gente seqüestrou o coelho.
- Meu Deus! – os olhos de Ichigo quase saltaram. – Não acredito!
- Acredite. – ela balançou a cabeça. – O escondi no meu quarto, dentro do armário. Achava que ninguém ia descobrir. Minha mãe começou a espirrar, mas eu nem liguei, afinal, eu tinha meu coelhinho! O problema foi no outro dia, que minha amiga deu falta do bicho. Ela chorou o dia inteiro e a mãe dela estava possessa espalhando sobre o sumiço por toda a vizinhança. Eu estava brincando na rua e, naturalmente, minha mãe foi limpar meu quarto e viu o coelho escondido. Deu um problema danado! – tapou os olhos com as mãos e riu.
- O que aconteceu? – ele quis saber.
- Tive que devolver o coelho, né? E a menina parou de falar comigo. E a mãe dela quase parou de falar com a minha também. Fiquei mais de uma semana ouvindo. E minha mãe me proibiu de fazer qualquer coisa relacionada a coelhos por quase um mês. Ela confiscou todas as minhas pelúcias, minha caneca, meu cobertor, até minhas roupas! – falava com os olhos arregalados, como se narrasse o maior absurdo da face da Terra.
- Deus, inacreditável! – ele segurava o riso. – Só coelhos mesmo para fazer você aprontar! De onde vem essa paixão?
- Sabe que eu não sei? – ela sorriu levemente corada.
- Então... Agora sobre a adolescência... – Ichigo disse baixinho.
- É. – ela balançou a cabeça também um tanto receosa.
Ele concordou mudo, consigo mesmo. Mas será que queria dizer?
Mas... Quanta coisa já tinha dito... E ela também... E ele podia ver o elo entre eles ficando mais nítido. Só precisavam continuar seguindo essa trilha. Mesmo sem as correntes... O elo permaneceria.

- Eu... – ficou mudo. – Não sei se mais alguém sabe disso... Eu acho que não. – ficou da cor de uma pimenta. – Mas eu... Tive um relacionamento com uma prima meio distante minha...
Rukia arregalou os olhos.
- O quê?!
- Bem... – ele encolheu os ombros mais sem graça ainda. – Ela é dois ou três anos mais nova que eu... E mora no interior... E me visitava bastante até meus dezessete anos... E desde os dezessete anos que a gente meio que... Você sabe... – não a encarava.
- Ela foi... O seu primeiro amor? – foi cautelosa ao perguntar.
- Bem... – ele coçou a cabeça meio atrapalhado. – Acho que não colocaria nesses termos... Ela era meio louca, grudenta e engraçada... Eu gosto muito dela, mas... Não acho que...
- Entendo. – Rukia o observava.
- Foi assim que eu comecei a me relacionar com mulheres... Quer dizer... Dessa forma. Você sabe. – estava muito, muito tímido. – Na verdade, depois dela teve só mais uma... – ficou em dúvida se poderia incluir Rukia na lista. Mas achou melhor não ousar tanto. – E dessa garota eu realmente gostei...
- Hum... E quem era essa garota? – o coração da pequena palpitava de curiosidade.
- Bem... É a Mai. – disse logo, rápido, brincando com uma pétala no dedo.
- A Mai?! – Rukia sobressaltou-se. – Ah... A Mai... – sua expressão congelada era tanto de surpresa quanto de pensamentos. Então... Aquela história...
- É. A Mai. Eu gostava dela no ano passado. – admitiu quase roxo, tentando encará-la com muita dificuldade.
A baixinha de cabelos negros nada disse. Só o encarava com uma abertura para que ele continuasse a história.
Ele captou a mensagem muda.
- Não! – balançou a cabeça com força. – Eu não vou contar a história toda!
- Ichigo! – ela apontou para o céu. – Qual a cor daquela estrela ali, embaixo da Lua?
- Acho que é verde...
- Então fala! Conte a história! – sorriu vitoriosa. – Faz parte do nosso jogo.
- Droga! – ele bufou com um bico colossal. – Sua venenosa...
Ela apenas ficou sorrindo cheia daquele veneno doce para ele.

O que o fez suspirar fundo e continuar por livre e espontânea obrigação.
- Então... No ano passado comecei a gostar dela. Chegava cedo à faculdade e ela também. Ficávamos só os dois na sala. E eu reparava que ela todos os dias escrevia freneticamente num caderno. E sempre que a aula começava, ela o guardava e só o abria de novo no dia seguinte, quando só tinha eu na sala. Um dia, eu cheguei à sala e ela já estava lá. Escrevendo. E chorando muito! Muito mesmo. Eu fiquei preocupado, mesmo não indo muito com a cara dela. E mesmo que ela estivesse quase soluçando, ela continua escrevendo como se o mundo fosse acabar. Então fui até ela e perguntei o que estava havendo... E ela estava tão frágil que começou a soltar um monte de palavras que eu fui tentando encaixar. Parece que ela tinha grandes problemas com os pais que nunca a aceitaram do jeito que ela era. Ela tinha recebido as notas das provas e foram muito baixas. Então ela resolveu dizer aos pais que nunca quis ser médica, e sim uma escritora. E mostrou que tinha uma pilha de cadernos com romances e poemas. E eles deram-lhe a maior bronca de sua vida. Mandaram queimar os cadernos. Disseram que era loucura. Que ser escritora não daria futuro ao nome da família. Que artistas eram loucos e não era isso que eles queriam para ela. E a fizeram prometer que ia se formar na faculdade de medicina e ser uma médica muito importante. E ela teve que fazê-lo. Mas sabe... Não agüentava mais!
Rukia estava impressionada. Nem conseguia fechar a boca... Do jeito que ele falava... Não parecia nada com a Mai que ela conhecia... Será que era a mesma?
- Então... Eu tentei acalmá-la. Pedi para ler o que ela estava escrevendo dessa vez. Ela me mostrou meio hesitante. Era um poema muito bonito. Muito mesmo. Me lembrava até o estilo de Shakespeare. E bem... Ele é meu escritor favorito. Eu disse isso a ela. E então consegui fazê-la sorrir e secar as lágrimas. E então ela me agradeceu... E se recuperou consideravelmente...

Depois desse dia, nós sempre conversávamos quando chegávamos. Depois, ela vivia cercada de gente, então eu tinha medo de me aproximar.
Sim. Era a mesma Mai... Surpreendente!
- Mas... A gente parecia se dar bem. Eu dava confiança a ela. Ela parecia totalmente outra quando estava comigo. Trocávamos livros... Mas eu gostava muito mais de ler o que ela escrevia. E ela me dizia que só eu lia aquilo. Só eu. Eu comecei a dar força para ela levar o talento dela adiante... E quando fomos ver, estávamos muito próximos. E eu não pensava em mais nada a não ser nela... – ficou mais vermelho ao dizer isso. Os olhos pareciam estar perdidos para sempre. – Então um dia... Tomei coragem e chamei-a para sair. Íamos estar em época de provas, então combinamos que, na sexta-feira da semana seguinte, sairíamos juntos da faculdade e eu ia levá-la a algum lugar... Ficou prometido. E mal nos falamos no decorrer da semana por causa das provas. Na época de provas ela sempre trocava os cadernos de poesia pelos livros e anotações e estudava feito louca, de última hora ou como última revisão, não sei. Para manter o que disse aos pais, talvez... E quando chegou a sexta-feira da semana seguinte, a última prova... Eu fui atrás dela quando terminou a aula. Encontrei-a quase no portão, com um homem abraçando-a. Óbvio que eu enlouqueci. Primeiramente pensei que ele a estivesse agarrando. Mas eu estava enganado... – fez uma pausa melancólica. – Parti para cima dele e o mandei soltá-la, que ela estava saindo comigo. Tomei coragem de gritar isso para defendê-la... E foi aí que veio a decepção... – suspirou. – O cara disse que era namorado dela. E eu ainda assim achei que era mentira e continuei gritando e até puxei-a pelo braço... Maior erro. Porque ela que começou a gritar e dizer que eu era louco. Que o Ashido era mesmo o namorado dela.
- C-como assim?! – nada parecia fazer sentido para a capricorniana.

- Eu lembrei-a de que tínhamos marcado de sair juntos... E então o Ashido ficou com raiva dela, pediu satisfações... E ela ficou desesperada... E começou a dizer para ele não me dar atenção, que eu era mais um daqueles que faziam loucuras para sair com ela. E isso, na frente de um grande público que se aglomerou, claro. – riu amargamente. – E foi isso. Ela continuou me humilhando e dizendo que um esquisito como eu nunca teria chance com ela, que era só ele, o Ashido, dar uma boa olhada em mim para saber disso... Disse muito mais até o cara ficar convencido de que eu não passava de um lunático. Ele e todo mundo que estava assistindo ao barraco. Virei a piada, imagina. O rejeitado, esquisito, maluco e humilhado que sonhou em sair com a Mai. – respirou fundo. – Depois disso... Fiquei sozinho.
- Meu Deus! – Rukia cobriu a boca com as mãos. – Eu simplesmente não posso... Não posso acreditar que a Mai fez uma coisa dessas... Ela sempre foi tão gentil comigo...
- É... Ela também era gentil comigo no começo. – ele fechou a cara rancoroso. – Mas ela é muito mais egoísta do que parece.
Ficou pensativa. E revoltada. Como ela conseguiu trair Ichigo daquela maneira? Ela foi mesmo desprezível. Não que pudesse julgar as atitudes dos outros. Mas Ichigo parecia mesmo não ter merecido aquela humilhação toda. Ele secou suas lágrimas... Ele a apoiou e a faz sorrir...
Ele era mesmo um bom garoto. Ele tinha mesmo um coração muito bonito.
Olhou para o ruivo. Ele amarrava o cadarço que ele mesmo havia desamarrado. Será que... Ele ainda gostava dela?
Seu coração apertou-se.
- E você, Rukia? – ele terminou o laço e olhou para ela. – O que vai me contar de comprometedor? – esboçou um sorrisinho de canto.
- E-eu?! – ela arregalou os olhos assustada. Nem tinha se recuperado ainda daquela história toda...
- Você mesma. Não vai me dizer que sempre quis ser freira não que eu não acredito. – ergueu o queixo e olhou-a de cima. – Sei que tem coelho no seu mato. Ou, no seu armário. – provocou.

- Engraçadinho! – ela desviou o rosto meio corada. – Você até que merece mesmo que eu diga algo... Depois do que você disse... Não posso reclamar da sua fidelidade.
Deixou-se sorrir com aquele elogio. Foi um elogio, não foi? Ela estava mais entregue, não estava? Agora tinha muita coisa no meio dos dois. Segredos e histórias que os uniriam mais que uma certa corrente.
- Eu só amei um homem na vida. – começou objetiva. – Foi aos meus dezoito... Também no início da faculdade... – não ousava olhá-lo, era demais. – Eu já achava que tinha problemas... Nunca me apaixonava por ninguém embora sempre aparecessem declarações pra mim e meus amigos começassem e terminassem relacionamentos. E antes não tivesse... Porque eu o conheci. – fez uma pausa deixando o ruivo pinicando de ansiedade. – Ele era meu professor.
- Seu professor?! – berrou.
- Shhh! – ela fez desesperada. – Cala a boca! Esqueceu que estamos escondidos aqui?! – vermelha de irritação e de vergonha.
O ruivo encolheu-se.
- Er... Prossiga.
- Foi isso. Eu me apaixonei por um professor, não deu certo, acabou e fim da história.
- Não mesmo! Muito injusta você! Elogia minha fidelidade, mas tem a cara-de-pau de ser o oposto a ela, né?
- Não me acuse dessa maneira! – ela ficou brava. Ou fingiu-se. Sabia que estava errada.
- Então tá. – ele emburrou olhando pro nada. – Se quiser assim tudo bem. – deu de ombros. – Já me acostumei com você sempre destruindo tudo que tentamos começar.
Aquelas palavras acertaram-na em cheio e dolorosamente. Ele não podia dizer isso! Estava sendo rude! Era uma calúnia!
...
Então por que não abria a boca para reclamar e começar mais uma discussão? Então por que não dava um novo puxão na corrente? Então por que não comparava o cabelo dele a alguma coisa feia e esquisita?
Porque ele não merecia.
- Era minha matéria preferida. – ouviu-se continuando de repente, devagar. – E eu era a melhor aluna da classe. E sempre ficava no fim da aula para tirar dúvidas. E então ele começou a se interessar por mim.

De um jeito bem professor e aluno mesmo. Até porque ele nem dava tanta abertura para coisas pessoais... Só que um dia... Tínhamos marcado um trabalho muito importante em sala de aula. E eu tinha ficado doente... E perderia os pontos irrecuperáveis. Corria até o risco de não passar na matéria. Então... Aconteceu o que eu nunca esperei. No mesmo dia, mais tarde, ele bateu à porta da minha casa me perguntando o motivo de eu ter faltado. Eu estava sozinha... E aí ele viu que eu estava doente... Eu insisti que eu poderia fazer alguma coisa do trabalho naquele momento mesmo, para não perder o ponto. Mas ele não deixou. Eu estava mesmo muito mal... Era uma pneumonia... Então ele perguntou onde estavam meus pais e eu disse que estavam trabalhando, não sabiam que eu estava doente. E ele cuidou de mim. E para recuperar o que eu perdi no tempo em que fiquei doente, ele preparou na primeira semana de férias aulas extras só para mim. Ele sabia que eu era uma boa aluna e não podia me reprovar. Mesmo que a faculdade não aceitasse atestados para caso de não fazer trabalho, provas de primeira e segunda chamada. – corou ao lembrar. – Então acabamos ficando mais íntimos. Eu o agradeci infinitamente por ter me dado essa chance... E no último dia das aulas extras acabamos almoçando juntos e depois passeando... E conversando... E... Eu fui conhecer a lendária cerejeira que ele tinha em casa... E acabamos ficando juntos... – apertava os dedos da mão direita nos da mão esquerda com força. – E então começamos a namorar escondidos... Mas algum tempo depois ele quis terminar. Sem mais nem menos. Chamou-me para dizer que era o fim. Que não podíamos mais ficar escondendo e que também não podíamos assumir. Isso mancharia a reputação dele. Mancharia seu nome... E talvez ele não pudesse mais trabalhar. Não que ele precisasse, já que tinha toda a inacabável herança da família, mas... No fim, era melhor que terminássemos, segundo ele. E depois disso... Depois disso eu não quis mais saber de amar...

Refleti e cheguei à conclusão de que era mesmo uma tolice. Há sempre um motivo para terminar. Sempre motivos que acabam sendo maiores que o amor... E as pessoas não sempre dizem que o amor é maior que tudo? Então, por que não provam? – ergueu o rosto para ele. Os olhos enormes estavam profundamente melancólicos, mas ao mesmo tempo, irados.
Estava boquiaberto com a história. Mas seu coração sentiu mais a reação final dela. Explicava tanta coisa...
Sentiu queimar na garganta aquelas palavras. Aquele gesto. Mas tratou de deixar que virassem cinzas. Afinal, não estaria se jogando demais? Se arriscando demais? Estragando um curso que planejou a vida inteira?
Mas a vontade de fazê-la mudar de opinião demorava a queimar totalmente. Os ímpetos de dizer que acreditava e de segurar aquela mão para que ela também acreditasse, ainda era fogo bem vivo.
Mas deixou que acalmasse dentro de si... Apenas continuou sustentando aquele olhar ferido.
Como podia... Como podia já sentir tanto por uma baixinha encrenqueira, fria, cética que o maltratava o tempo todo? Seria mesmo o destino? Ou aqueles olhos, aquele sorriso, aquela doce que gostava de coelhinhos e era capaz de emanar uma força incrível havia realmente feito seu coração balançar?
- O amor existe... – disse muito, mas muito baixinho. – Só que não é encontrado em qualquer lugar.
Ela o ficou encarando. Como era teimoso! Mesmo tendo amado alguém que o fizera sofrer, o humilhara, ele ainda acreditava que encontraria o verdadeiro amor. Como um personagem de um filme de romance.
Quando ele ia acordar para a realidade de que, o amor só dá certo quando é uma troca de conveniências? Quando um é tão igual ao outro, quando um apenas consegue tolerar o outro?
E por que se sentia uma idiota por estar ali naquele jardim naquele momento, quando lembrava dessas palavras? Será que estava mesmo sendo como uma velha amargurada? Será que ele era mesmo teimoso ou ela que desistia fácil demais?
Ele levantou-se. Ela foi obrigada a fazer o mesmo.

Ichigo começou a caminhar de volta. E Rukia ao seu lado. Ele olhava as flores do seu canto. E parecia que as tocava. Os olhos azuis desviaram-se para o céu. Queria afastar aquelas perguntas da sua mente. Estavam ali para relaxar.
- Um doce. – ela disse subitamente.
- Chocolate. – ele respondeu.
- Tayaki. – ela sorriu.
- Uma fruta. – ele perguntou.
- Só comida? Morango.
Ele fez uma careta para ela e ela riu.
- É sério.
- Melancia.
- Uma estação. – ela.
- Verão. – ele.
- Inverno.
Ficaram mais um tempo caminhando em silêncio.
- Algo que gostaria de mudar... – ele voltou a perguntar.
Ela ficou um tempo pensativa.
- Minha fé. – respondeu enfim.
Encararam-se.
Ele não disse nada. Era melhor mesmo que não abrisse a boca.
Chegaram ao fim do caminho.
- Hora de voltarmos, né? – ele suspirou.
- É... – ela sorriu. – Foi uma noite divertida.
-É... – ele jogou os olhos sobre a mão fechada. - Abra a mão.
- Hã? Como? – ela estranhou.
- Abra a mão, ué! Se quer mudar sua fé, devia trabalhar mais nisso.
Meio hesitante e com a bochecha meio inflada, ela abriu a mão. Ele então abriu a dele em cima da dela e despejou seu conteúdo: pétalas.
- O-o que é isso? – ela ficou olhando para os tamanhos, cores e texturas diferentes.
- Pétalas, ora essa! – ele resmungou em resposta. – Uma lembrança... Achei muita covardia sair arrancando as flores.
Ela sorriu. Lindamente.
- É... Muito gentil e criativo. – ergueu o sorriso da mão para ele.
O jovem ficou vermelho. E com o coração disparado. Mas dessa vez não desviou o rosto. Não por uns cinco segundos.
- Eu... Gosto mais dessa azul. – ele disse apontando para uma pétala azul macia.
- Eu também... – ela disse baixinho.
Olharam-se de novo. Será que era a primeira vez que concordavam com algo? De qualquer maneira, aquele era um momento especial. A lua estava bem acima dos dois. Agora eram cúmplices além de uma corrente e dois braceletes.
Continuaram caminhando até o muro, onde dariam um jeito de pular sem deixar uma pétala sequer cair.

Continua...


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